A imagem fabricada de uma "grande nação"

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Um dos dois mais importantes filmes de propaganda nacional - o outro é, Revolução de Maio, também de Lopes RibeiroOs investigadores Maria do Carmo Piçarra e José de Matos-Cruz

O chefe da propaganda de Salazar, admirador de Mussolini, antecipou o sucesso da estética de Leni Riefenstahl, a cineasta que filmou a ascensão de Hitler. Através do cinema, António Ferro criou uma imagem idealizada do Estado Novo. Nenhum olhar pessoal - e alternativo - era tolerado. Ana Dias Cordeiro

Nas várias camadas de um filme, há o que não se vê mas se adivinha. Planos e formatos impostos, legendas que enaltecem a política do Governo, cenas revistas, diálogos alterados por ordens ou recomendações subtis. São os retoques para chegar à imagem idealizada e projectada pelo Governo de Salazar (de si próprio).

Quando se preparava para filmar A Revolução de Maio (1937), António Lopes Ribeiro, cineasta do regime, expõe num documento de 1936 os "pontos cardeais" da obra: servir o cinema português, o público português, a propaganda do regime, a política de Salazar. Num só: servir Salazar.

António de Oliveira Salazar não era cinéfilo, no sentido de dedicar muito tempo à sétima arte. Mas era sensível à força das imagens e escolheu, para dirigir a propaganda do regime, um homem que admirava Mussolini e que olhava para o cinema (e para a arte) como uma forma de servir o poder.

"António Ferro era o nosso Goebbels", diz Maria do Carmo Piçarra, investigadora que estuda a memória cinematográfica do colonialismo durante o Estado Novo e autora de Salazar vai ao Cinema - "O Jornal Português" de Actualidades Filmadas (2006) e Salazar vai ao Cinema II - A "Política do Espírito" no "Jornal Português" (2011). A especialista conta que, nos anos 1930, para A Revolução de Maio, Ferro e Lopes Ribeiro tentaram contratar, sem êxito, um director de fotografia que mais tarde trabalhou com Leni Riefenstahl nos filmes de propaganda do regime nazi. "Durante o período António Ferro, há efectivamente uma vontade de instrumentalizar o cinema e uma crença nas suas possibilidades", aponta. Começa por haver dinheiro para a projecção de filmes estrangeiros, depois para a produção de actualidades cinematográficas e finalmente o investimento foca-se na ficção e em filmes como A Revolução de Maio e O Feitiço do Império. Mais tarde é criado um Fundo do Cinema Nacional que apoia filmes se forem nacionalistas - casos de Camões, de Leitão Barros, ou Chaimite, de Jorge Brum do Canto.

Por fim, são concedidas bolsas a jovens para estudarem cinema no estrangeiro. Sem saber, a propaganda estava a alimentar um cinema de ruptura; é quando surgem realizadores como Manuel Faria de Almeida ou Joaquim Lopes Barbosa, que oferecem um olhar alternativo sobre as colónias mas não o podem mostrar. Catembe e Deixem-me ao menos subir às palmeiras de um e de outro, respectivamente, são proibidos. Com 103 cortes, Catembe foi o filme mais censurado de sempre. Mesmo depois dos cortes, não foi autorizada a sua exibição. Como aconteceu a António de Sousa com O Esplendor Selvagem e a António Campos com A Invenção do Amor, parábola sobre o país totalitário inspirada num poema de Daniel Filipe que circulava na oposição.

O que distingue estes quatro filmes - cada um com o seu registo distinto - da lista de censurados (como Maria Papoila, Os Verdes Anos e outros) foi o impasse em que colocaram os seus autores. Não reviveram com o 25 de Abril. Não tiveram estreia comercial. Ficaram restritos a pequenos círculos, ou foram esquecidos.

A Política do Espírito

É de Ferro a ideia de criar o Cinema Popular Ambulante e as suas sessões de propaganda, em 1935. Duas carrinhas - o Cinema A e o Cinema B - percorrem o país e chegam a lugares recônditos para mostrar filmes com um pendor nacionalista ou militarista, vindos dos EUA ou da Alemanha, e produções nacionais de propaganda explícita, de actualidades ou ficção, como A Revolução de Maio, "usadíssimo nessas sessões", diz Carmo Piçarra.

Este é o primeiro dos dois mais importantes filmes (o segundo é O Feitiço do Império, também realizado por António Lopes Ribeiro, em 1940) da propaganda explícita do Estado Novo. Em ambos, o protagonista tem um momento de revelação a partir do qual se deslumbra com o Governo: no primeiro caso, quando ouve um discurso de Salazar; no segundo, quando viaja para África e fica rendido à obra do regime nas colónias.

Oficialmente, como especificado num decreto-lei, compete ao Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) de António Ferro utilizar o cinema "como meio indispensável da sua acção". E garantir que as legendas alusivas ao Estado Novo são obrigatoriamente incluídas nos filmes. Quando sai do Secretariado Nacional da Informação (SNI), que entretanto substituira o SPN, em 1949, Ferro deixa como herança a Política do Espírito, apoiada na noção de que era possível, por via da cultura, construir uma ideia de nação.

Mais tarde, com o advento da televisão, em 1957, o poder das imagens transfere-se, em parte, para o pequeno ecrã. "Mais importante do que a película, para a influência sobre a população, era a produção televisiva da época, em séries, reportagens e nas próprias mensagens de Natal e Ano Novo com os soldados a combater nas colónias", diz o investigador José de Matos-Cruz. "O contexto emocional, de coacção psicológica, era aí muito mais forte."

Essa estética de poder é fruto da propaganda; e da censura. Da Inspecção-Geral dos Espectáculos, espera-se que cumpra a "rigorosa interdição", instituída pela censura em 1927, de exibir "fitas perniciosas para a educação do povo, do incitamento ao crime, atentatórias da moral e do regime político e social vigorante."

O Ministério do Interior, o Ministério do Ultramar e a Agência Geral do Ultramar também interferem - estes dois últimos depois de 1961, com o início da guerra colonial.

Os cortes na película eram entregues pelo realizador aos censores - e destruídos. Mas ainda se encontram, nos arquivos da Cinemateca Portuguesa, latões com alguns cortes, recuperados dos gabinetes dos censores no Palácio Foz, depois do 25 de Abril, diz Joana Pimentel.

Um cinema estropiado

Na maioria dos casos, porém, é um material que desaparece "para sempre", frisa Carmo Piçarra. "Em relação à produção portuguesa, houve muitas vezes necessidade de restaurar os filmes fragmentados, estropiados", considera José de Matos-Cruz. "A versão final que chegou ao público acabou por ser uma versão incompleta. Muitas vezes era completamente impossível restaurar o olhar ou a expectativa dos cineastas que os produziram ou realizaram", acrescenta o autor de dezenas de obras sobre cinema, entre as quais O Cais do Olhar, Prontuário do Cinema Português ou 30 Anos com o Cinema Português. Para ele, isso é "trágico".

O realizador Fernando Matos Silva não viu o seu primeiro filme cortado - viu-o proibido. Hoje recorda uma noite, no princípio de 1974, em que conseguiu, com o distribuidor, organizar uma sessão clandestina de O Mal-Amado na antiga sala do Cinema Roma, em Lisboa. "No passe-a-palavra, a sala quase encheu", diz ao Ípsilon.

Como o seu O Mal-Amado, também Sofia e a Educação Sexual, de Eduardo Geada, Nojo aos Cães, de António de Macedo, Índia, de António Faria, e outros só puderam ser exibidos depois da queda do Estado Novo.

O olhar crítico sobre a guerra colonial, a repressão sobre os estudantes, a questão familiar - com a libertação que o protagonista João (João Mota) propõe às irmãs, a cena em que a mãe (Helena Félix) questiona as amarras que a prendem a um papel imposto, pela moral, à mulher na sociedade, e o sexo quase explícito entre Inês (Maria do Céu Guerra) e João - faziam de O Mal-Amado um filme previsivelmente proscrito. O guião não foi enviado ao exame prévio como era obrigatório e o realizador não se autocensurou. Filmou e concluiu a longa-metragem - "um objecto cultural com uma posição clara de denúncia" - como se vivesse num país livre. E, como se adivinhasse que um 25 de Abril se preparava, esperou tranquilamente até poder exibi-la. O Mal Amado foi o último filme a ser proibido pela censura e o primeiro a ser estreado depois de Abril de 1974.

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