“Cega Paixão” (“On Dangerous Ground”), de Nicholas Ray (1952)
Temos uma história partida pelo cenário: a cidade fria, de espaços exíguos, onde a violência é a regra, sem explicações, e o campo tranquilizador, de largos espaços e amplos horizontes, onde a violência é excepcional e justificada, e onde cada pessoa vale mais
Robert Ryan, actor interessante de seguir e cuja imagem prevalecente é a de um olhar distante de olhos miúdos mais ocultadores do que reveladores de estados de espírito, é Jim Wilson, um polícia à paisana que os americanos designam por detective, assolado pela solidão e por uma violência irreprimível e crescente no modo como lida com suspeitos no decurso das suas investigações. Como os filmes são como as conversas e as conversas são como as cerejas, encontramos aqui um ponto de partida semelhante ao de “Where the Sidewalk Ends”, de Otto Preminger, com Dana Andrews, ambos nossos conhecidos.
Em “Cega Paixão”, temos uma história partida pelo cenário: a cidade fria, de espaços exíguos, onde a violência é a regra, sem explicações, e o campo tranquilizador, de largos espaços e amplos horizontes, onde a violência é excepcional e justificada, e onde cada pessoa vale mais.
A história arranca em composição de filme negro e mantém-se assim durante toda a primeira parte citadina, correspondente à trajectória de endurecimento de Jim Wilson, cuja perdição, como polícia e como homem solitário, vamos adivinhando, enquanto com ele vamos no carro-patrulha, acompanhado de dois colegas, um com uma família demasiado grande, outro com uma demasiado pequena. De agressão em agressão, a situação atinge o seu limite quando um dos colegas o confronta com a dureza com que ele desempenha a profissão, sem dar nada de si mesmo, sem coração, e quando é chamado pelo comandante da esquadra, capitão Brawley, para uma séria reprimenda.
Esta é uma das cenas mais extraordinárias do filme, que também nos serve para nos determos momentaneamente na arte de representação desse actor “secundário” chamado Ed Begley, um daqueles que já vimos em tantos papéis mas de que não sabemos o nome, assegurando uma grande qualidade às produções cinematográficas daquela época (veja-se, por exemplo, o seu trabalho em “Doze Homens em Fúria” ou “Os Gigantes Dominam”): o capitão chama Jim ao restaurante onde costuma almoçar e, sentado a uma mesa cheia de comida, vai-lhe dando uma repreensão, entre elogios à sopa, pedidos de mais ervilhas, o seu consumo guloso, seguido de elogios às mesmas e um esgar de espanto e enfado da parte do empregado de mesa que o serve.
Na vez seguinte já não há comédia: Jim é transferido para a investigação de um caso de homicídio 70 quilómetros a norte da cidade, um castigo que ele próprio caracteriza como “a Sibéria”. E dá-se a mudança de cenário e a segunda parte da história, durante a qual, numa casa isolada na neve, conhece uma mulher que vive num pequeno mundo, com um irmão que dela depende, mas que se constitui como figura importante para Jim. Mary Malden é interpretada pela actriz Ida Lupino, um nome hoje praticamente desconhecido, mas que então recebia a distinção de primeiro lugar no genérico de abertura, acima do aparente protagonista Robert Ryan. Além de actriz em mais de uma centena de filmes (“O Último Refúgio”, de Raoul Walsh, com Humphrey Bogart) Ida Lupino colaborou na realização “Cega Paixão” e realizou longas-metragens interessantes como “O Bígamo” (1953) e episódios de séries televisivas, numa época em que muito poucas mulheres o fizeram.
Finalmente, outra menção indispensável: ao autor da música original, Bernard Herrmann, que imediatamente associamos a Alfred Hitchcock, pela colaboração feliz que entre ambos existiu. Aliás, penso ser impossível deixar de notar semelhanças entre o tema musical da “perseguição na neve” de “Cega Paixão” e o tema do genérico de “Intriga Internacional”, de Hitchcock.