O património cultural, a Cinemateca e a Lei do Cinema

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Há neste país quem saiba que o que aconteceu com a Cinemateca Portuguesa nos últimos trinta anos não foi uma coisa banal. Tenho orgulho em ter participado nisso, mas estou à vontade para o dizer porque quem sabe isso sabe também que esse facto extraordinário teve um condutor bem identificado chamado João Bénard da Costa. Na sua história de seis décadas, a Cinemateca ganhou muito com a estabilidade directiva e a competência dos seus directores, começando com Félix Ribeiro e passando por Luís de Pina. No tempo de Bénard da Costa, pelo que se fez em termos de conservação patrimonial e divulgação da história do cinema, a Cinemateca entrou noutra galáxia, que foi (e peso cada palavra) a das cinco ou seis melhores cinematecas europeias. Houve nisso outros factores decisivos (como a autonomia institucional obtida em 1980), mas o que interessa agora são os resultados e esses podem sintetizar-se assim: ganhámos um verdadeiro centro de conservação, restauro e pesquisa patrimonial, avançámos muito na preservação do nosso cinema e mantivemos um centro de exibição e edição que marcou a vida cultural do país (ao qual se deve aliás muita outra coisa que aconteceu à volta, a começar com a emergência de novos realizadores). É este conjunto que, hoje, estamos em risco de perder.

Em números redondos, esta fase da Cinemateca custou ao Estado, e aos agentes taxados no âmbito da Lei do Cinema, um total que, na primeira década deste século, foi em média de quatro milhões e meio de euros anuais, dos quais perto de três e meio foram verbas de funcionamento arrecadadas através da Lei do Cinema e um milhão e pouco foi atribuído como verba de investimento destinada a edificações e equipamentos (total a que se somou depois cerca de um milhão anual proveniente da arrecadação de saldos e outras receitas próprias directas). Na conjuntura actual, o cúmulo da receita atribuída pelas duas fontes iniciais caiu para quase metade (menos 41% em relação a essa média), na sequência da erradicação das verbas de investimento (PIDDAC) e, agora, da redução dos proventos oriundos da taxa sobre a publicidade de televisão. Com esta dupla quebra muita coisa decisiva começou já a declinar, ou a parar, e o mais importante agora é perceber como sair disso. De tudo o que está a ser afectado, a maior fatia tem que ver com a infra-estrutura, e nesta com a área de conservação. Que ninguém mostre surpresa: se a Cinemateca é o garante da salvaguarda de uma componente decisiva do património cultural do país, isso estará sempre dependente da possibilidade de lidar com a forte base tecnológica das imagens em movimento. Neste momento, os novos depósitos climatizados estão por utilizar adequadamente por falta de estantes; o núcleo de imagem electrónica está em declínio por obsolescência de equipamento e suspensão de reparações; a conservação e a exibição dos novos suportes de "cinema digital" continuam a não ser feitas; todo o desenvolvimento das bases de dados está interrompido... A questão deixou de ser pontual e já não vale a pena discuti-la casuisticamente. O bloqueio é de fundo. A solução terá de o ser também.

Sublinhe-se que o problema maior não pode ser resolvido pela anunciada conversão da Cinemateca em EPE (Entidade Pública Empresarial), por sua vez concomitante com a integração num Agrupamento Complementar de Empresas que agregará o sector empresarial da cultura. A conversão em EPE pode ajudar a Cinemateca no seu funcionamento, aumentando-lhe a eficácia administrativa e agilizando alguns mecanismos através dos quais pode ser obtida maior receita própria directa (como no laboratório de restauro, que já está a trabalhar para outras instituições museológicas estrangeiras). Mas não há que esperar que resolva por si o problema da sustentabilidade da Cinemateca, seja porque não é o principal instrumento do seu financiamento, seja porque, na área em que mais pode contribuir para isso (a das receitas geradas pela actividade), há que equilibrar o objectivo da receita com a própria natureza de base de um organismo cujo motivo de existência é poder ser independente dela. Face ao problema de financiamento global, esta medida é supletiva - coisa que é aliás coerente com o facto de a proposta de nova Lei do Cinema, essa sim, continuar a perfilar-se como o instrumento de suporte da actividade das duas instituições do Estado português para a área, que são o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e a Cinemateca.

Com os pés bem assentes na terra, a solução não pode então deixar de ser procurada nesta outra lei, de resto apresentada, e bem, como suporte de uma política integrada para o sector. O que está em causa é justamente saber qual a importância relativa que atribuímos à conservação e valorização patrimonial nessa política integrada e dentro das funções do Estado para o sector. Ora, a verdade é que, por ora, se a actual proposta de lei prevê um reforço do apoio estatal ao cinema, praticamente nada desse reforço está previsto para a Cinemateca. Dito de outro modo, se "o cinema" terá mais apoio financeiro do Estado, o património cinematográfico, esse, continuando a receber o mesmo que antes (a que corresponde a situação agónica atrás mencionada), passará, em termos relativos, a ter menos. Fará isso sentido?

Fará isso sentido num contexto em que volta a estar em risco a própria conservação do cinema português? Fará isso sentido quando, além do mais, vivemos a encruzilhada histórica da conversão ao digital (a necessidade de manter o arquivo fotoquímico e ao lado dele erguer uma nova estrutura destinada a conservar o padrão profissional de "cinema digital")? Fará isso sentido quando, por outro lado, a consciência do estatuto patrimonial do cinema está mais viva do que nunca - o que pode aliás ser comprovado pelo recente gesto histórico do Estado português, que classificou o património de uma empresa cinematográfica (a Tobis), declarando-o "tesouro nacional"? Se, hoje, o património já não pode ser visto como um serviço unilateral do Estado (porque integra uma cadeia, além do mais económica, e exige partilha de responsabilidades com criadores e produtores), não creio que se possa duvidar de que tem de continuar a ser um serviço inalienável do Estado.

A solução está portanto à vista e não parece complicada. Não tendo podido ser acolhida antes, deve agora ser adaptada à versão final da lei que vier a ser aprovada no Parlamento. Em concreto, com os dados de que dispomos hoje, a solução natural, equilibrada e óbvia, é simplesmente a da manutenção da percentagem actual consignada ao património (20%) mas aplicando-a ao total das verbas arrecadadas, incluindo a nova componente de receita. Haverá ainda espaço para o considerar?

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