Retrato de um escritor que gosta de heresias, inventa enciclopédias, faz cerveja no Alentejo e acredita que ninguém morre só uma vez
Afonso Cruz, 40 anos, vive com a família num monte no Alentejo há quatro anos e é lá que fabrica a cerveja que bebe e oferece aos amigos, marca artesanal Vale da Vaca (teor de álcool: 8,3). Vivia em Lisboa e sempre desejou viver no campo. Por isso foi a olhar para o olival que escreveu Jesus Cristo bebia cerveja, o seu novo romance. Algumas das personagens que dão ambiente ao livro são daquela terra, como o senhor, doente de Alzheimer, que vai aos correios constantemente ver se tem cartas e quando acaba de sair dá meia volta e volta a entrar. A coluna vertebral do livro, nas palavras do seu autor, é a história de uma senhora alentejana cujo último desejo era visitar a Terra Santa; na impossibilidade de o fazer, alguém se lembra de recriar Jerusalém numa aldeia alentejana. É um livro sobre transformação, sobre aquilo em que nós nos tornamos, e sobre e se uma aldeia alentejana pode ou não ser sagrada.
Há um ano, nas comemorações do centenário de Manuel da Fonseca, a Associação Portuguesa de Escritores (APE) pediu a Afonso Cruz para falar sobre o escritor neo-realista sem saber que ele nunca o tinha lido. "Acabei por ler a obra toda dele e no dia da cerimónia falei do Alentejo que conheço e que não me parece ser assim tão diferente do Alentejo de Manuel da Fonseca" conta o autor no pátio do seu monte. O primeiro capítulo de Jesus Cristo bebia cerveja está escrito no presente - o que nunca aconteceu nos livros anteriores de Afonso - por influência de Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. "Mal chegámos aqui um familiar do nosso empreiteiro atirou-se para dentro de um poço à frente do filho e do neto. Acontecia nos romances do Manuel da Fonseca e continua igualzinho. O Alentejo ainda é uma zona de muito isolamento, no outro dia apareceu uma mulher morta no rio. Todas estas histórias davam um Fargo [filme dos irmãos Coen] sem neve", afirma o escritor, que antes de se dedicar à escrita e à ilustração fazia cinema de animação.
Jesus Cristo bebia cerveja é um romance cómico-trágico com personagens como Rosa, uma rapariga que chupa as pedras, um professor que publicou o livro Apologia das Minhocas e uma inglesa que dorme dentro de um cachalote que um antepassado seu caçou nos mares do Sul - a sua cama está instalada entre as costelas e tem quase três metros de comprimento. "Na verdade não há assim uma grande estranheza nisto", diz Afonso. E lembra que alguns dos seus livros anteriores - O Pintor Debaixo do Lava-loiças (a história do pintor Ivan Sors) e A Boneca de Kokoschka (a história do artista Oskar Kokoschka, que se apaixona por Alma Mahler e manda fazer uma boneca igual a ela) - partem de histórias verdadeiras e são muito mais estranhas do que viver dentro de uma ossada de um cachalote, como faz Miss Whittemore. Acredita que o que sobrevive em nós são as coisas que vivemos com muita intensidade. Tal como acontece com a rapariga que chupa pedras como rebuçados: esses são os momentos especiais da vida dela. "Se ela contar a sua vida é isso que vai dizer, vai falar das coisas que realmente foram importantes, não vai dizer que naquele dia tomou café. É muito mais realista contar coisas estranhas do que [coisas] supostamente realistas".
Rosa, além de gostar de chupar pedras, lê westerns antes de adormecer e passa a vida a citar um em especial: A Morte não ouve o pianista - Ninguém morre só uma vez. Afonso Cruz tem imensos westerns que eram do seu pai e divertiu-se a escrever de propósito este, um micro-livrinho que acompanha o romance (num dos seus romances anteriores, A Boneca de Kokoschka, já havia um livro dentro do livro, com capa e contracapa).
Às personagens de Jesus Cristo bebia cerveja, aconteceu-lhes sempre alguma coisa de terrível. Os animais, tal como as pessoas, são maltratados. Das memórias que já leva do campo, Afonso Cruz sabe que, na cidade, gostamos muito de manter as tradições e achamos excelente que se mantenha aquele enchido. "Mas se formos ao campo, manter aquele enchido é exactamente o oposto do que pensamos para os animais. A verdadeira ruralidade não é aquele sonho asséptico que temos enquanto pessoas que vivem na cidade. No campo, os animais têm um fim - acima de tudo - utilitário. Na cidade são a nossa companhia, têm direitos. Aprendi que no campo eles servem é para alguma coisa."
Se a lição a tirar de Jesus Cristo bebia cerveja é que ninguém morre só uma vez, Afonso Cruz lembra que, apesar de o seu romance ter muitas mortes, cada personagem trata a morte de uma maneira diferente. Há sempre muitas mortes nos seus livros. "As nossas memórias são feitas dos momentos de felicidade, de reencontro, de morte, dos equívocos que se resolveram ou que não se resolveram. São as situações de morte e de desespero que mais nos marcam. Perceber a morte é uma das nossas maiores preocupações. Passamos o tempo a arranjar maneiras de conseguir dar a volta a um jogo que à partida já está perdido e apesar disso temos vontade de viver. Apesar de ser um absurdo, tentamos sempre dar a volta a esse abismo". A literatura para Afonso Cruz é como aquelas filas de trânsito em que paramos para ver um acidente. "Temos um fascínio pela morte porque é a nossa maneira de compreender. Tentamos saber o que aconteceu para não cometer o mesmo erro. É uma maneira de aprendermos, de passarmos ao lado de alguns sofrimentos ou de tentarmos evitá-los, ao ver aquilo que aconteceu aos outros. A literatura serve de purga ao autor, mas também aos leitores", diz o autor, que tem fascínio por todas as heresias que surgiram à volta da igreja ao longo dos séculos. Se não existisse cerveja, acredita, não existiriam livros nem bibliotecas porque o homem se tornou nómada graças ao "pão em estado líquido".
O tempo dos avós
Antes de se enfiar num monte no Alentejo, Afonso Cruz andou a viajar pelo mundo. Em aviões militares, à boleia, e muito a pé. Comprava um bilhete de avião e ia para sítios para onde ninguém vai de férias. No romance O Pintor debaixo do Lava-Loiças, baseado num caso que aconteceu com os seus avós, uma das personagens diz que os portugueses não são descendentes dos que partiram nas caravelas mas dos que ficaram cá. "É curioso porque durante uma década da minha vida eu viajava muito - durante três a seis meses por ano - e nunca encontrava portugueses", conta. Há uns sete anos esteve no Gana e visitou dois ou três fortes construídos por portugueses. "Os guias dos fortes ficaram tão espantados ao ver-nos porque finalmente tinham portugueses à frente! Para eles, os portugueses eram quase um mito. Tivemos muita emigração mas não somos um povo de viajantes".
Um dia Afonso Cruz contou ao ex-editor da Caminho, José Oliveira, a história da sua família. Este editor publicou os dois livros infanto-juvenis que Afonso Cruz escreveu até agora. Os Livros que Devoraram o meu Pai (2010), provavelmente o que mais vendeu, já saiu no Brasil e na Sérvia e recebeu o Prémio literário Maria Rosa Colaço: é "uma espécie de Crime e castigo para jovens passado dentro de livros". E o premiadíssimo A Contradição Humana (2010) que Afonso Cruz também ilustrou. Ao ouvir a história do pintor debaixo do lava-loiça, José Oliveira achou que dava um livro. Nele, Afonso Cruz conta e reinventa a história do pintor judeu Ivan Sors, que nasceu em Bratislava e em 1940 dormia, na Figueira da Foz, debaixo do lava-loiças, ao pé do borralho. A família dos avós, a criada sem um dedo, a casa escavada na árvore são memórias verdadeiras. "Os meus avós, bem como quase toda a família, sempre tiveram inclinação para acções semelhantes a esconder pintores debaixo do lava-loiças", diz.
O seu avô, Afonso Costa Cruz, foi preso três vezes durante o Estado Novo (era afilhado de Afonso Costa). Tinha um irmão que escrevia poesia, desenhava e era músico, chamava-se Emanuel Cruz. "Os meus pais ganharam uns dois ou três concursos de poesia com poemas dele que enviavam para ganhar prémios, relógios, etc." Ele não queria saber disso. Trabalhou a vida toda na Câmara Municipal. "Vivia num quarto alugado cheio de livros e quando morreu tinha um saco plástico cheio de lâminas de barbear usadas. Ninguém percebeu qual era o motivo do coleccionismo. Escrevia os poemas em recibos e facturas. Tudo o que tenho dele está nas costas de facturas, páginas de actas e coisas desse tipo". Outro dos irmãos do avô de Afonso foi jogador de futebol. "Tinha algum jeito, chegou a jogar no Sporting e depois desistiu porque não dava dinheiro. Tornou-se inspector de casinos", conta. Por fim, o irmão mais velho do avô do escritor foi um pioneiro da aviação, com viagens de Portugal para Timor, Índia e colónias africanas. "A minha avó morreu com 99 anos e também teve uma vida muito preenchida. Dizia que Deus se tinha esquecido dela. Foi praticamente um século a ver que a maior parte da bondade humana é pura maldade."
A história que Afonso Cruz conta no livro aconteceu quando o avô protegeu um judeu. "Ouvi essa história em criança. Na verdade ele não vivia debaixo do lava-loiças, dormia debaixo do borralho, mas eu fiquei sempre com a sensação de que era um pintor polaco que tinha dormido debaixo do lava-loiças do meu avô. Falei com o meu pai que me disse que não era polaco, era de um outro país de Leste. Fomos ver a assinatura do quadro que ele pintou da minha avó. Descobrimos que era Ivan Sors. Fui reconstruindo o que pude reconstruir. Mudei-lhe o nome próprio, mantive o apelido." Afonso Cruz gosta que os seus livros tenham uma estrutura, uma história, e que as personagens tenham uma motivação. E que haja um final também. "Se calhar é um defeito do cinema de animação: quando se faz um braço a mexer, desenham-se o primeiro, o último e o do meio, e depois continua-se a preencher os intervalos. Para criar uma história também faço esse tipo de coisas. Crio um esqueleto, que depois vou enchendo com músculos, pele, etc.", explica.
Milhares de cabeças
"Não vou descansar até que todos os leitores descubram o Afonso Cruz. Já prometi usar de violência física para obrigar um a um a ler a maravilha que ele escreve, e não estou a brincar. Faz-me a alma luxuosa. Passo a ter jóias na imaginação", escreveu Valter Hugo Mãe na cinta que envolve Jesus Cristo bebia cerveja, primeira obra de Afonso Cruz a ser editada pela Alfaguara, editora para onde se mudou depois de ter tido "uma oferta irrecusável", e que é também a editora do autor de O Filho de Mil Homens. Ao mesmo tempo, a Alfaguara publica um novo volume da Enciclopédia da Estória Universal - Recolha de Alexandria, uma variante do primeiro livro que Afonso Cruz escreveu. "Tive a ideia de escrever uma enciclopédia fictícia com factos inventados", recorda. Começou a escrevê-la, por gozo, num blogue privado a que alguns amigos tinham acesso. Quando já tinha uma série de entradas percebeu que se calhar tinha ali um livro e enviou-o para a Bertrand. A editora Lúcia Pinho e Melo gostou do livro, mas acabou por lhe pedir para escrever um romance, pois na editora consideram a Enciclopédia muito difícil para primeiro livro. "Escrevi em dois meses um thriller que me parece que vendeu muito menos do que a Enciclopédia quando esta depois foi publicada", conta Afonso Cruz. Chamou-lhe A Carne de Deus, foi publicado em 2008 e passou a ser a sua estreia literária, apesar de não ter sido o primeiro livro que escreveu. Não o renega, mas gostava de lhe dar uma volta. Um ano depois saiu a Enciclopédia da Estória Universal (Quetzal), que recebeu o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco da APE.
Continua a gostar muito de escrever essas entradas, onde tudo começou, porque lhe permitem construir pequenos textos com características completamente diferentes. A Alfaguara publicará anualmente um dos vários volumes da Enciclopédia da Estória Universal. Aquela que acaba de sair é a Recolha de Alexandria, todas as que se seguirem terão um subtítulo para as diferenciar. Afonso Cruz inventa tribos, inventa autores que não existem, inventa povos. "Já tenho mais dois volumes escritos, um deles tem muito a ver com uma tribo da Amazónia que são os Abokowo - não existem, inventei-os e depois descrevo costumes e as crenças. Nesta enciclopédia as maiores entradas têm a ver com um prédio que em cada apartamento tem uma cidade lá dentro. E dentro dessa cidade aparecem outros apartamentos com cidades dentro. É o infinito dentro do infinito." Afonso Cruz está sempre em permanente jogo com o leitor. Se errar o nome de um matemático ou de um escritor - cita muito de memória - não se preocupa nada. Até gosta disso. Para não se perder neste universo inventado anda sempre a reler o que escreveu. Mas para ele a Enciclopédia é um livro com muitas cabeças."Somos uma espécie de trono em que temos um rei durante uns segundos e depois ele sai e entra outro que pensa de maneira diferente. Percebemos isso facilmente quando apanhamos uma bebedeira: à noite está sentado um rei que adora beber e no outro dia senta-se um rei que diz "nunca mais hei-de beber na vida". E claro, à tarde já está outro rei sentado a dizer outra coisa qualquer. Achamos que somos uma individualidade mas não. Um girassol não é uma flor, são milhares de flores: aquela comunidade de flores tornou-se uma flor grande para atrair os insectos. É uma metáfora também daquilo que somos: temos milhares de cabeças."
Este bem podia ser o retrato de Afonso Cruz, que além de escritor é também ilustrador, produtor de cerveja artesanal e músico da banda The Soaked Lamb. Os pais - divorciados e bancários - sempre lhe disseram que não tinha jeito para a música. Ele insistiu. Foi tendo bandas até que deixou praticamente de tocar. "Um dia, já em Lisboa, o meu carro foi rebocado. Eu tinha as moradas desfasadas e a multa era de mais de 100 euros. Quando fui buscar fui recebido por outro polícia, que não viu os documentos, e só paguei só a multa de estacionamento. Na minha cabeça, eu tinha acabado de ganhar uns 70 contos. Saí dali e fui comprar uma guitarra acústica", conta o músico. Também foi sócio do bar, a Baliza, em Lisboa. Para a festa de lançamento, reuniu uns amigos e o cunhado e formaram a "primeira banda de cozinha", alimentada com muitos ensopados de borrego. Esta semana a banda está a lançar um novo disco, Evergreens, de versões que não morrem.
Em Novembro, já sairá um novo livro de Afonso Cruz. Passa-se no Oriente e é sobre um homem que perde um filho.
Ver crítica de livros pág. 30 e segs.