Jesus Cristo Bebia Cerveja, o novo romance de Afonso Cruz, não sendo do reino do fantástico, está tão eivado de acontecimentos improváveis que adquire uma qualidade quase “irrealista”, o que não é o mesmo que inverosímil. A sua personagem central é Rosa, uma garota entregue aos cuidados da avó - a mãe, alcoólica, fugiu; o pai enforcou-se; e o avô atirou-se para dentro de um poço, após ser perseguido e espancado pela polícia, que o julgava culpado de uns assassínios que assolavam a terra (um lugarejo no Alentejo). O culpado dos crimes era a esposa do polícia e este detalhe pode funcionar como símbolo do que é o romance: uma espécie de Riço Direitinho atarantinado, crónica de uma ruralidade bruta, marcada pela morte e por acontecimentos bizarros.
A narrativa segue o crescimento de Rosa: é colocada como criada numa casa de gente rica onde o patrão se amanceba com a outra criada; é despedida porque a esposa do patrão julga que é ela a prevaricadora; inicia a sua sexualidade com o pastor Ari; procura tratar da avó, que tem um único sonho: ir a Jerusalém. O professor Borja irá posteriormente tentar ajudar Rosa a concretizar essa ida, momento em que o livro se tornará quase delirante.
Quando ainda é nova, Rosa tem de chamar os bombeiros porque a avó não está bem; um dos bombeiros prepara-se para violá-la, mas o abuso não se concretiza - ainda assim, o desamparo da rapariga e a violência do local tornam-se bastante claros e pungentes. Cruz maneja com facilidade este tipo de cenas, que realçam a impunidade dos fortes ou a aceitação da fraqueza por parte dos fracos. Veja-se o despedimento de Rosa: a patroa anuncia às duas empregadas que uma delas vai ser mandada embora; Rosa, inocente mas mais desprotegida, está nervosa, o que a torna, aos olhos da patroa, culpada. Perde o emprego, enraivecendo-se, urinando pelas pernas abaixo.
Rosa é sofrida e selvagem, tem buço e a mania de chupar pedras como se fossem rebuçados - estes detalhes “enchem” uma personagem. O mesmo cuidado é posto nas restantes: nas menores, como a empregada de Miss Whitmore, que quando se irrita com a patroa executa as tarefas muito devagarinho; nas importantes, como o professor Borja, proto-cientista que carrega às costas o peso emocional de duas mortes; e nas que são relevantes mas não proeminentes, como o padre Teves, que quando disse ao pai que queria ser padre levou com o cinto no rabo, o que determinou a sua forma de ver o mundo (simultaneamente hilariante e trágica). Há uma certa tendência para o exagero. Vejam-se o professor Borja e Miss Whitmore: o primeiro foi contratado pela última como parte de um círculo de sábios cuja função é entreter, com discussões filosóficas, as refeições dela. Borja pinta, às escondidas, no muro branco da propriedade da inglesa, frases de Diógenes de Oenoanda, o que provoca a ira do caseiro e da polícia local - estes pormenores serão fundamentais na muito bem urdida trama final.
Miss Whitmore é abastada, tendo comprado toda a aldeia, e dorme dentro de um cachalote. É preciso um certo esforço para aceitar que num país democrático um indivíduo pudesse encomendar seres humanos; e se a isto juntarmos a cama de cachalote e outras particularidades da senhora conclui-se não que a personagem seria impossível na “realidade” (esta ultrapassa sempre a ficção), mas que o autor pede ao leitor uma margem de confiança alargada, o que no caso acaba por conseguir, graças ao seu manifesto humor (notório em alguns diálogos magníficos). A acumulação massiva de episódios trágicos e/ou rocambolescos na vida das personagens só consegue ser verosímil graças à eficácia da escrita.
A tendência para o exagero é notada na adjectivação. Quando o padre Teves pensa em ser padre incumbe-se a si mesmo de “uma fabulosa missão apostólica” (p. 186); Miss Whitmore tem uma cave “absolutamente fascinante”. Exemplos assim abundam, e estendem-se às acções: Rosa vai a casa de miss Whitmore, senta-se numa cadeira branca com a sua saia suja, o forro da cadeira fica cheio de pó, ela tenta sacudi-lo e “esfrega as mãos com tanta força no tecido que chega a queimar-se” (p. 191). Mas a maior objecção que coloco a Jesus Cristo Bebia Cerveja é a propensão de Cruz para as frases simbólicas ou filosóficas de pendor poético. Exemplos: “De cada vez que deixamos de ser percebidos, morremos” (p. 88). Há um momento em que Borja aperta o casaco mas, diz o narrador numa frase que bordeja a literatura cor-de-rosa, “sentimentalmente, está apenas a tapar o buraco que tem no peito” (p. 163). “As memórias são as cinzas das palavras” (p. 164).
Note-se que Cruz também é capaz de iluminar uma personagem, uma situação, com uma frase. A avó de Rosa sonha com pardais e por isso “leva migalhas para a cama para [lhes] dar de comers” (p. 205), o que nos diz da degradação mental da senhora. “Rosa nunca se sentiu única” porque tudo o que lhe acontece é minimizado pela avó, que lhe diz “isso também já me aconteceu” (p. 157). Isto é de uma humanidade imensa e é feito com simplicidade.
Admitindo poder aborrecer os leitores que de tanto quererem defender a liberdade da literatura a condenam à auto-complacência, arriscaria dizer que num romance é perigoso criar uma sucessão de frases de significância forte (que funcionem como iluminações); a maior parte das frases de um romance desempenha uma função operativa: complementam, delimitam, etc. Só uma pequena percentagem procura a “profundidade”. Demasiada profundidade consecutiva provoca tonturas.
Esta longa enumeração de pecadilhos não deve obnubilar a imensa capacidade narrativa de Cruz, patente não apenas no minucioso encadeamento das situações como no cinzelar de cada cena, nos diálogos (não é de mais elogiá-los de novo) ou no talento para colocar uma personagem em movimento. É óbvio que este é um mundo particular, em que as personagens estão muito presas ao passado ou ao mundo que as criou e não “aprendem” propriamente com a experiência - mas isso é, digamos, consequência do “lugar”. Elas enfrentam escolhas morais, e o facto de não se redimirem não é ocasional nem falha literária, antes define o território mental, a mundividência que encerra Jesus Cristo Bebia Cerveja.
Afonso Cruz edita em simultâneo Enciclopédia da Estória Universal - Recolha de Alexandria, prolongamento da sua Enciclopédia da Estória Universal que lhe valeu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco. Este tipo de enciclopédias acaba por servir como demonstração da wit de um escritor, como delimitação de um universo. A cada entrada é dada uma definição que pretensamente ilumina um ângulo ainda não revelado da questão em causa. No caso em concreto há um notório fascínio pela mistura de saberes: há entradas cientificizadas (referências a ácidos e bases, doenças oftalmológicas, etc) e definições mais próximas do popularucho (como “Roubar aos ricos para dar aos pobres”, que acaba com a citação: “Um governante não governa, governa-se”). Há uma constante remissão para textos antigos e obscuros (falsos, claro), uma plêiade de assuntos que vão da sedentarização a baratas, e aforismos como o de Babel: “A maldição de Babel não foi os homens desentenderem-se por falarem línguas diferentes, mas sim desentenderem-se falando a mesma língua”.
Nesta Enciclopédia há pelo menos uma dezena de entradas com potencial para serem citadas em jantares e encontros sociais - é para isso que estes objectos serve,: são lúdicos e, quando bem feitos (é o caso), ocasionalmente reveladores. Mas o seu interesse termina aí: não é em duas pinceladas que verdadeiramente se pensa o mundo. Pelo que, mais do que como um repositório de erudição ou análise do mundo, a Enciclopédia deve ser vista como uma homenagem aos almanaques: uma curiosidade lúdica cuja gratificação é imediata e a correspondente recompensa intelectual de longo prazo quase nula.