Otelo superficial

Paulo Moura limita-se a reproduzir, de chaçala em chalaça, as auto-representações do biografado.

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Raquel Costa / Stills - colaborador

Otelo Saraiva de Carvalho nasceu em Moçambique, na antiga cidade de Lourenço Marques, em 1936. Foi um dos principais dinamizadores do Movimento das Forças Armadas. Dirigiu as operações do 25 de Abril, a partir de um comando instalado no Quartel da Pontinha. Desde Setembro de 1974, adquiriu uma enorme influência política e militar, que se concretizou em Julho de 1975, quando passou a Comandante do COPCON. Com o 25 de Novembro de 1975, foi preso durante três meses. Apresentou-se como candidato à Presidência da República por duas vezes, nas eleições de 1976 e de 1980. Detido em 1984, na sequência das suas alegadas ligações às FP-25 de Abril, sobre as quais pesava a acusação da morte de 17 pessoas, incluindo a do Director-Geral dos Serviços Prisionais, foi julgado e condenado em 1985. Conheceu de novo a prisão, mas acabou por ser amnistiado 11 anos depois.

Paulo Moura é o seu mais recente biógrafo. Numa escrita escorreita, de repórter experiente, consegue o seu ponto mais alto ao integrar com mestria os depoimentos orais de Otelo. Por exemplo, quando saiu da prisão no início de 1976, uma delegação de trabalhadores pressionou-o a ser candidato à Presidência, ao que ele respondeu: “Eh pá, mas isso não faz nada parte dos meus planos”... Seguindo uma ordem cronológica, como é habitual nas biografias, o autor respeita o tom coloquial e despretensioso da figura que toma como objecto. Por diversas ocasiões, o leitor esquece-se que a história de Otelo tem mesmo um autor que não ele próprio. Esta simples constatação poderá ser considerada, por alguns, o resultado de um processo longo de depuração da escrita e de retorno a uma perspectiva do jornalismo em que a realidade pura e dura é a que conta, ou seja, o que mais importa é reconstituir a evidência dos factos que falam por si. Paulo Moura pertence, com certeza, a esta escola do jornalismo, o que talvez se justifique numa época em que a superficialidade de muitos discursos de opinião ofuscou a ideia de grande reportagem.

Claro que, na mesma biografia, convergem outros elementos. Por exemplo, a propalada intimidade de Otelo surge associada à sua higiene pessoal. Moura segue, então, as informações que recolheu junto do próprio biografado, para descrever o seu cuidado com o corpo. Nada menos que duas horas é o tempo que Otelo leva a arranjar-se, todas as manhãs. A esta espreitadela na vida privada acrescem duas outras. Por um lado, aquela que explica as origens em Shakespeare do nome Otelo. É que existia um gosto ancestral na família pelo teatro e pelo espectáculo. Gosto, aliás, que o mesmo concretizou na Academia Militar, durante a Guerra Colonial, e mais recentemente num pequeno filme erótico para a televisão em que contracenou com uma actriz de telenovelas. Por outro lado, a questão da suposta bigamia do Carvalho, uma vez que se casou na década de 1960, mas desde 1980 acumulou mais uma mulher, uma guarda prisional. Ficou, por isso, com duas.

Pouco importa, nesta crítica de uma biografia que se pretende neutra, impingir juízos de valor. Parece evidente que um olhar sobre o carácter picante e transgressor do biografado, que não se terá feito rogado, agradou ao editor, pois podia estimular as vendas. Quantos personagens conhecemos que tenham conseguido, nos dias que correm, levar uma vida que só não é dupla porque plenamente assumida e aceite por todos? Penso que só Otelo - no seu carácter único, formado por essa espécie de porreirismo que se transformou em poder, mas com carácter efectivo, pelo menos durante um curto período - conseguiu juntar o gosto pelo espectáculo com um lado prático de estratega, associando-lhes uma espécie de superficialidade que lhe permite transgredir, sem ser alvo de qualquer tipo de condenação.

Porém, o problema não parece estar em Otelo, que tem tido, mal ou bem, uma vida mansa, porreirinha, no seu narcisismo de transgressor sempre pronto para a acção... A questão está no modo de contar uma vida que não pode ser explicada apenas em função das auto-representações do biografado. Ou seja, esta biografia de uma figura bem superficial acaba por confundir-se com ela; por isso, não é de estranhar que não existam explicações acerca da ilusão biográfica criada pelo próprio Otelo. Mais. O registo dos depoimentos do biografado coloca todos os temas ao mesmo nível. Como se bastasse ao autor terem sido recolhidos enquanto factos para poderem deter a mesma relevância, no interior de um quadro de suposta objectividade. Assim, Paulo Moura limita-se a seguir na biografia que escreveu o péssimo método histórico e jornalístico de ir acumulando ocorrências e de, aparentemente, desaparecer da sua narrativa. Há um caso, pelo menos, em que o método de Moura de acumulação de factos e ocorrências conduz ao que já foi denominado, em relação a um outro contexto, a “banalidade do mal”. Otelo serviu como capitão em Angola desde o início da Guerra de Libertação, em 1961, até 1963. Neste mesmo quadro, foi colocado em Malange. Um dia, na parada do quartel em que era alferes, comunicou uma ordem proveniente de Luanda: “Tenho aqui esta proposta e quero que se pronunciem, se são a favor ou contra. Porque não a aplicarei se vocês votarem contra”, disse Otelo, confiante na humanidade e no bom senso das suas tropas. “A ordem é para, quando estivermos no mato, cortarmos as cabeças de todos os inimigos que consigamos capturar: Quem concorda com isto?”. Como mais de 80 por cento dos soldados votassem a favor, Otelo, apanhado de surpresa - por achar “inconcebível” uma tal técnica “para espalhar o terror e intimidar o inimigo” -, nunca cumpriu a ordem. “Mas muitos faziam-no, e orgulhavam-se disso. Certa ocasião, alguém trouxe a Otelo uma série de fotografias de cabeças de negros espetadas em paus, dispostas ao longo de uma picada. Um colega seu do curso de Artilharia tinha sido o autor da proeza (...). Uma vez um camarada de Otelo que ele tinha por particularmente sensível e humano recusou-se também a cortar cabeças à catanada. Foi chamado pelo seu superior, um capitão conhecido pela sua dureza. ‘'Você é um cagado, uma merda'’, disse o capitão. ‘'Os seus camaradas já mataram para aí gajos à brava, e você nada. Você é uma desgraça''”.

Até que um dia, na sequência de uma emboscada, o jovem oficial acabou por cortar uma cabeça de um dos mortos, meteu-a num garrafão com formol, e veio apresentá-la ao capitão... Para Paulo Moura, Otelo estava à margem de todas estas práticas: recusou-se a cumprir a ordem vinda de Luanda, que a ter existido, sob a forma de texto escrito, fora dada pelo General Venâncio Deslandes, embora não se perceba se terá sido ele só que não cumpriu ou, se nessa recusa, terá envolvido o seu próprio pelotão; e ficou também surpreendido, se não mesmo chocado, com a conivência dos soldados, provenientes desse mundo rural e arcaico da metrópole, que ele desconhecia e que contrastava com os hábitos de viver nos trópicos de quem lá nascera. Em suma, Otelo nada tinha que ver com a violência e com o terror gerados pela Guerra. Logo o seu retrato é, mais uma vez, o de um porreirinho.

Choca-me a superficialidade com que Paulo Moura descreve um episódio de tamanho horror. Nenhuma convenção de escrita jornalística, modelo de retórica ou reivindicação pseudo-literária podem justificar a banalização do mal. Como jornalista, se resolveu contar tal história, Moura terá de a provar: onde está essa ordem? Se foi transmitida por escrito, em que arquivo se encontra? Quem a assinou, uma vez que o “Quartel-general em Luanda” não se poderia substituir à figura de Deslandes? Se este último a assinou, agiu autonomamente ou terá contado com o apoio ou a inspiração de Adriano Moreira, então Ministro do Ultramar, e do seu Gabinete de Negócios Políticos? Aceitando que a ordem existiu e que Otelo lhe resistiu, será suficiente o depoimento de uma única testemunha para o provar?

A formulação de todas estas questões prende-se com uma hipótese - que raras vezes tem sido explorada, entre outras razões por ser fácil de enunciar, mas difícil de demonstrar - em relação às guerras de libertação das antigas colónias portuguesas em África: na ausência de recursos militares, sobretudo no seu início, era necessário efectuar operações exemplares de aterrorização tendo estas sido decididas e planeadas pelas hierarquias militares e políticas. Será mesmo possível demonstrar que Salazar, Adriano Moreira e o General Deslandes que, ao ser nomeado governador-geral, fora investido de uma missão de “concentração de poderes”, estavam bem informados acerca da necessidade de tais operações? A documentação existente nos Arquivos de Salazar e da PIDE na Torre do Tombo e a do antigo Ministério do Ultramar, no Arquivo Histórico Ultramarino, pode prová-lo. Porém, as investigações a efectuar são de carácter moroso e muito delicado. Terão de se alargar a outros arquivos, à guarda de diferentes hierarquias militares. Mas nem por um momento só se julgue que existe uma espécie de transparência da documentação dos arquivos, como se estes fossem depósitos de factos que falassem por si...

Ora, se à primeira vista acabo por corroborar a ideia de Paulo Moura de que o terror e o horror da barbaridade, concentrados no corte ritual das cabeças dos inimigos africanos já mortos, provavelmente existiram, a minha discordância de fundo em relação ao seu método e ao seu estilo é total. Primeiro, trata-se de um assunto cuja gravidade não é compatível com a leveza do estilo e, sobretudo, com um pseudo-método de prova baseado num testemunho singular. Ao seguir esta via, Moura não fornece um contributo - mais uma achega! - para o trabalho de reconstrução histórica que importa empreender acerca da Guerra iniciada em 1961 em Angola. Pelo contrário. Moura, com a sua superficialidade no tratamento do mal, com a sua indiferença, limita-se a reproduzir mais uma chalaça do seu biografado. Em segundo lugar, os moldes em que reproduz essa mesma chalaça são os habituais, ao longo do livro: o alferes Otelo, o porreirinho sempre disposto à acção, sempre em desafio com a autoridade, um democrata já antes de o ser, depois de ter posto em causa o seu próprio capitão num episódio de confronto com um soldado, reuniu “as tropas em parada” e submeteu à sua votação uma ordem do General Deslandes (?), porque com ela não concordava. Quem, com um conhecimento mínimo do modo como funcionava um exército, que operava em Angola a partir de 1961, poderá aceitar esta simples descrição? Por último, ao seguir as auto-representações do seu biografado, reproduzindo não só os factos, os episódios, mas também as suas explicações, Moura alimenta o mito português de vida mansa nos trópicos, desta feita protagonizado pelo próprio Otelo. Tal como se as sociedades africanas colonizadas pelos portugueses tivessem vivido numa espécie de cordialidade ou de convívio racial - sem violência, sem expropriações, sem uma exploração desenfreada de sucessivas formas de escravatura e de trabalho forçado, sobretudo sem uma violência difusa exercida ao nível do quotidiano - que só a Guerra interrompeu.

Esta crítica sem contemplações à biografia de Otelo escrita pelo jornalista Paulo Moura é feita com duas ressalvas. Primeira, ao pôr a descoberto a superficialidade de Otelo, nem por sombras se pretende invalidar a importância de um processo revolucionário ou de transição para a democracia. Que não haja equívocos a este respeito! Segunda ressalva, pouco se sabe das condições de trabalho em que este livro foi escrito. Imagino, no entanto, que terão envolvido uma excessiva acumulação com muitas outras actividades. Ainda por cima, sempre sob pressão de uma indústria cultural em busca desenfreada de sucessos para consumo rápido, cujos critérios de gestão tendem a organizar-se em função da “comunicação e marketing”, sem deixar margem para a produção de conteúdos sérios e aprofundados.

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