Escavações no "campo santo" de Arruda revelam 2100 anos de história
Responsável pelas escavações em curso diz que elas são particularmente importantes para conhecer a fase da ocupação romana da zona envolvente de Lisboa. Achados deverão ser expostos em Agosto
As escavações arqueológicas realizadas nos últimos três meses junto à igreja matriz de Arruda dos Vinhos puseram a descoberto vestígios de ocupação humana permanente com pelo menos 2100 anos, mas foram também encontradas algumas lascas de sílex e de quartzo de épocas anteriores. A campanha, desenvolvida no âmbito da empreitada de requalificação do chamado "Percurso da Procissão", detectou 30 ossadas e provas de que aquela área foi usada como cemitério durante cerca de 300 anos na época medieval.
Segundo Guilherme Cardoso, arqueólogo da Assembleia Distrital de Lisboa que dirige as escavações, estas descobertas são particularmente importantes para conhecer melhor a fase da ocupação romana da zona envolvente de Lisboa. Durante muito tempo, referiu, pensou-se que a ocupação teria sido relativamente pacífica, mas os vestígios aqui encontrados e anteriormente também na zona do Cadaval demonstram que houve confrontos acesos entre as populações lusitanas e os romanos e, mais tarde, entre facções que disputavam o poder no império. Em Arruda ainda não se conseguiu apurar se existia apenas uma villa romana (aglomerado de construções de grandes proprietários rurais), se algo mais do que isso.
"Este núcleo tinha ocupação humana pelo menos há 2100 anos. Não sabemos ainda o que era, mas sabemos que era importante pelo tipo de materiais encontrados. Temos cerâmicas finas, vidro de janelas do período romano, o que nos diz que o que estava aqui era uma pessoa rica, um grande proprietário ou uma pequena aldeia que dominava esta zona de esporão (língua de terra entre duas linhas de água) e, por sua vez, este vale fértil de Arruda", explica Guilherme Cardoso.
Certo é que foram encontradas lascas de sílex e de quartzo que "demonstram que há ocupações esporádicas desta área já na pré-história". Depois, ter-se-ão fixado povos ibéricos como os lusitanos e os primeiros colonos romanos chegaram por volta de 150 antes de Cristo. O arqueólogo acredita que existia aqui algum tipo de fortificação lusitana, mas ainda não foram encontrados vestígios de uma eventual muralha. "Pelo menos até agora não há vestígios, há é pisos de ocupação dessa época, um tanque e materiais da época de Augusto. A grande força romana nesta zona começa no período do imperador Augusto (época de Cristo)", salienta.
A requalificação da zona antiga de Arruda começou no princípio do ano e os arqueólogos decidiram concentrar a sua atenção a poente da Igreja de Nossa Senhora da Salvação. Desde Fevereiro têm desenvolvido aí as escavações e continuam a acompanhar as obras que decorrem até final de Julho nas ruas vizinhas. Da zona onde concentraram a investigação já havia relatos antigos do aparecimento de ossos e moedas. Trata-se de uma pequena praça situada entre a igreja e o antigo edifício dos Paços do Concelho onde, segundo Guilherme Cardoso, existiu o chamado "campo santo" de Arruda. Depois dos romanos, os visigodos passaram pelo local, deixando vestígios em cerâmicas também agora descobertas. Seguiram-se os povos islâmicos que, diz a lenda, terão construído uma mesquita no sítio da actual igreja.
Pouco tempo depois da reconquista cristã de Lisboa, em 1147, as terras de Arruda foram doadas a um nobre inglês que ali se fixou durante alguns anos (o primeiro foral da vila foi concedido por D. Afonso Henriques em 1160). Não existem mais registos sobre o seu destino, mas os arqueólogos acreditam que, por volta de 1190, os colonos ingleses tenham sido mortos e/ou capturados e feitos escravos no âmbito de uma das razias (surtidas) que os muçulmanos por ali faziam. Certo é que poucos anos depois o rei doou as terras de Arruda à Ordem dos Cavaleiros de Santiago e, a partir dessa altura, em torno de uma ermida que terá sucedido à mesquita, começaram a ser feitos enterramentos no "campo santo" agora posto a descoberto.
"Era um ponto estratégico para a defesa de Lisboa, assim como Sintra e Santarém. Esta zona ainda se mantinha em guerra e era fácil de vez em quando os islâmicos penetrarem, fazerem razias e fugirem. Pensa-se que numa delas terão levado os colonos cristãos ingleses", acrescenta Guilherme Cardoso, referindo que há registos posteriores da permanência em Arruda das mulheres dos cavaleiros de Santiago, as quais, devido à insegurança, acabaram por construir um convento em Lisboa.
"Esta área funcionou pelo menos durante 250 a 300 anos como cemitério. Creio que as primeiras sepulturas podem ser datadas do século XII. São sepulturas do tipo caixa fechada feita com esteios de pedra e lajes toscas. As que encontrámos por cima já são mais simples e não tinham tantas tampas. Funcionou como cemitério até ao século XVI e, por sorte, parece que não funcionou em épocas posteriores; se tivesse continuado, teria destruído tudo. Daí conseguirmos ver as sepulturas em tão bom estado", sublinha o responsável pela campanha arqueológica. Refere que na época medieval as casas foram afastadas do templo e foi criado ali um "campo santo" para sepulturas.
As cerca de 30 ossadas já encontradas incluem pelo menos os restos mortais de uma criança e estão a ser estudadas por antropólogos. Guilherme Cardoso sabe que a Câmara de Arruda dos Vinhos pretende organizar já em Agosto, durante as festas anuais da vila, uma primeira exposição sobre estes achados, eventualmente acompanhada por uma brochura que resuma as conclusões já obtidas.