O novo herdeiro Salman bin Abdulaziz talvez mude a Arábia Saudita
Em menos de um ano, o reino do petróleo perdeu dois herdeiros do trono, Sultan e Nayef. O novo sucessor do rei Abdullah é um príncipe conservador e pragmático
Há um "incidente" que define o perfil do futuro rei da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz, 76 anos, sucessor do príncipe herdeiro Nayaf, que morreu no sábado, aos 78. O episódio remonta a 1979, quando um extremista dos Ikhwan (Irmãos Muçulmanos), Juhayman Al-Otaybi, arregimentou centenas de fiéis e, tendo subornado funcionários do grupo de construção Bin Laden, infiltrou armas e munições na Grande Mesquita de Meca.
Juhayman pertencia a uma das tribos de beduínos que ajudaram o primeiro rei, Abdul Aziz, a expandir o poder saudita até à costa do mar Vermelho, conta o britânico Robert Lacey, autor da biografia Inside the Kingdom. Estes guerreiros que não hesitavam em matar os kuffar (infiéis) desobedientes à rígida doutrina de Mohammed ibn Abdul Wahhab conquistaram pela espada Meca, Medina e Jidá.
Em 1925, Abdul Aziz (ou Ibn Saud) pagou em ouro os serviços dos mujahedin, bravios e barbudos, e mandou-os regressar aos seus acampamentos rurais. Mas eles, refere Lacey, recusaram a sedentarização forçada, e continuaram as batalhas. Após mais de um ano de tentativas frustradas de conciliação, numa madrugada de Março de 1929, Abdul Aziz dirigiu-se para a vasta e ventosa planície de Sibillah, no Norte, à frente de uma coluna de veículos munidos de metralhadoras. Ofereceu uma última oportunidade aos combatentes montados em camelos, mas eles não se renderam. Centenas de "irmãos" e os seus animais foram "massacrados", descreveu Lacey.
Entre os sobreviventes estava Mohammed bin Sayf al-Otaybi, um crítico, que voltou ao acampamento de Sajir onde, no início dos anos 1930, nasceu o seu filho Juhayman. Em árabe, o termo traduz-se por "Cara Zangada", nome proibido, mas tradicional entre os nómadas, porque fealdade e dureza previnem, em seu entender, sarilhos futuros.
Em 1979, num acto de vingança, determinado a derrubar a "ocidentalizada" família real e acreditando que estava iminente a chegada do Mahdi (Messias), Juhayman apoderou-se do lugar mais sagrado do islão. Sem levantar suspeitas, depois de ter aprovisionado a cave com água, tâmaras e iogurtes, fez entrar enxergas fúnebres com arsenais ocultos debaixo de lençóis. Era 20 de Novembro de 1979 (1400 da era islâmica) e, nesse dia, nascia uma nova lua, um novo mês, um novo ano e um novo século. A partir da primeira oração matinal, às 5h18, os rebeldes encerraram o templo, disparando para o ar e sequestrando crentes.
Consultadas as autoridades religiosas para legitimarem, com uma "fatwa de emergência", um assalto à "Casa de Deus", a tarefa de "libertar" a mesquita foi atribuída aos irmãos do então rei Khaled: Sultan, ministro da Defesa; Nayef, titular da pasta do Interior, e Salman, governador de Riade e agora príncipe herdeiro. Com a ajuda de forças especiais francesas, o cerco à Grande Mesquita de Meca terminou a 4 de Dezembro de 1979: contaram-se 127 soldados mortos e 461 feridos. Morreram também 117 rebeldes e mais de uma dezena de reféns. Juhayman foi decapitado.
Na praça central de Riade, concentraram-se os sequestradores que escaparam às balas, algemas nas mãos e correntes nos pés. Salman, o filho de Abdul Aziz cuja fisionomia mais se assemelha à do rei que afrontou os Ikhwan, tinha uma lista na mão. Uma testemunha revelou a Robert Lacey que o príncipe verificou todo os apelidos tribais dos soldados, para ter a certeza de que seriam eles a executar os seus parentes rebeldes.
A forma implacável como Salman lidou com o "caso Juhayman", ainda hoje um tabu oficial, deverá ser o modo como enfrentará dissidências internas inspiradas pela Primavera Árabe, a Al-Qaeda (na Arábia Saudita e no Iémen), o rival Irão e o movimento pró-democracia entre os xiitas do Bahrein. Prosseguirá, assim, as políticas do predecessor, que morreu numa clínica em Genebra - o segundo príncipe herdeiro em menos de um ano (Nayef sucedera em Outubro de 2011 a Sultan, de 80 anos, que também não sobreviveu a múltiplas doenças).
Círculo restrito opaco
"Desde há muito tempo que o príncipe Salman faz parte da elite que toma as decisões políticas da família real, por isso, ele representa a continuidade", diz ao PÚBLICO, por email, Gregory Gause, autor de The International Relations of the Persian Gulf (2011) e professor de Ciência Política na Universidade de Vermont (EUA). "Como governador de Riade, cargo que ocupou durante décadas até se tornar ministro da Defesa, ganhou reputação de ser um gestor duro e interventivo" - com ele, a capital transformou-se numa cidade vibrante e moderna, mais flexível nos códigos de conduta social.
"Ideologicamente, não é possível identificar Salman como reformista ou conservador, porque representa a continuação das linhas políticas gerais no que diz respeito a questões cruciais", adianta Gause. "Temos de esperar para ver se defenderá, por exemplo, maior participação das mulheres na vida pública, como o actual rei Abdullah [89 anos], ou se vai ser um conservador nesta matéria, como Nayef.
Foi a escolha de Salman consensual? "Não sabemos o que se passa no círculo restrito da família real, porque é muito opaco. Há apenas rumores, e estes são de confiança dúbia", responde o académico norte-americano. "Salman era o candidato natural, dada a sua senioridade e experiência governamental. Não creio que a sua ascensão tenha grandes efeitos em termos de política interna ou externa, já que, repito ele sempre participou nas decisões que regem o país."