Carreiras médicas: morte confirmada
Sou do tempo em que ter uma boa carreira médica era motivo de orgulho e satisfação. Sou da época em que triunfar nos concursos públicos era razão para festa. A saudável competição contribuía para um estudo aprofundado e permitia premiar o mérito. Dizia-se que o médico tinha de estudar sempre para não falhar. Trabalhar num serviço prestigiado valorizava o curriculum.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) estruturava-se em carreiras que asseguravam um excelente conjunto de profissionais, disponíveis para os doentes e em permanente actualização técnica. Os chefes de serviço não eram muitos, mas quase sempre eram os melhores, pois tinham um percurso profissional exigente, avaliado pelos seus pares e legitimado por uma longa prática profissional. Existiam equipas e unidades funcionais nos serviços, chefiadas pelos mais experientes, verdadeiros locais de formação para os mais novos. As hierarquias estavam bem definidas e, quando existiam problemas, as responsabilidades eram sempre dos mais credenciados.
Há anos tudo acabou. Foi a morte anunciada das carreiras médicas. Quando se passou aos "contratos individuais de trabalho", as influências e compadrios aumentaram. Nem sempre se recrutaram os melhores. Em certos hospitais, sobretudo privados, desapareceram as reuniões de equipa e a responsabilidade foi diluída. Noutros, dezenas de médicos trabalham individualmente e são elogiados pelo número de consultas, sem qualquer verificação de qualidade. Interessam números, pouco importam as pessoas.
Esta morte anunciada das carreiras médicas foi agora confirmada. O Governo mandou publicar no DR de 14/5/2012 um chamado procedimento de concurso público para contratação de médicos para instituições do SNS, através de empresas privadas prestadoras de serviços. Não existe qualquer exigência de qualidade, os médicos contratados têm de fazer quatro consultas/hora e cumprir "atendimento pediátrico", sem que seja pedida, à partida, qualquer formação específica em Medicina Familiar e Pediatria. Acabam assim os concursos (sucessivamente adiados) e a lógica parece ser a de contratar a baixo custo, com diminuição da qualidade e ausência da valorização de carreira. A exigência do trabalho em equipa, características dos bons serviços de saúde de todo o mundo, está agora comprometida. A privatização desordenada dos serviços de saúde, numa lógica do quanto mais barato melhor, está em marcha.
Compreendem-se bem os protestos dos sindicatos e da Ordem dos Médicos, numa unidade que há muito não existia. Não é possível fazer de conta que nada se passa. E há mais: prepara-se o fim do "ano comum" do Internato Médico, um ano de formação que precede a especialidade e que assegura uma formação diversificada aos jovens licenciados em Medicina. Em breve existirá um vasto grupo de médicos sem acesso à especialidade e teremos médicos de primeira e de segunda.
É caso para dizer que a saúde dos portugueses é um assunto demasiado importante para ficar só por conta do Governo. Compete aos profissionais denunciar estas medidas, sem que deixem de assegurar a qualidade na prestação dos cuidados de saúde. Dos cidadãos espera-se vigilância permanente, porque a hora é de atenção e de protesto.