No mundo dos ebooks em português

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Brian Snyder/Reuters

Os apreciadores de bibliotecas digitais e de ebooks já podem ler em português. Também cá, as novidades editoriais deixaram de ser produzidas apenas para o papel: os livros começam agora a chegar ao mesmo tempo às livrarias e às lojas online, onde os consumidores podem adquiri-los em versão digital, mais barata. O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro (Dom Quixote), é um bom exemplo: o romance está à venda, na sua versão impressa, nas livrarias portuguesas, e está também disponível, mais barato, em formato digital através da livraria Leyaonline (a antiga Mediabooks), das aplicações da Leya (para iPad, iPhone, iPod Touch e Android), da livraria online norte-americana Barnes & Noble e ainda da loja da Apple, a iBooks. Em breve, este e outros livros da Leya vão estar à venda na Google ebooks e na Amazon para compradores da Europa.

Há um ano, esta diversidade não acontecia. Mas agora o grupo Leya está a converter parte do seu catálogo para o formato digital e a integrar as novidades. "Temos visto esta aposta sempre do ponto de vista da visibilidade que podemos dar aos nossos autores, nomeadamente além fronteiras, mas o que é certo é que o número de downloads já começa a ser significativo", afirma o director de marketing de edições gerais deste grupo editorial, Pedro Sobral. "2011 terminou com um número de downloads bastante acima do previsto quer na Leyaonline, quer no site que se dirige essencialmente a quem tem sistemas Android. Na iBooks, da Apple, temos livros à venda desde Novembro. Começaram agora a aparecer nos tops. No ano passado estivemos mais concentrados a resolver as questões operacionais (carregamento de ebooks, metabases, etc) e só em Janeiro começamos a trabalhar na visibilidade dos livros".

Há cerca de um mês, os ebooks de José Saramago em português estiveram em destaque. Quem visitava a iBooks via um anúncio com a frase "Saramago ebooks in portuguese" e a imagem das novas capas. "Isso fez com que os livros vendessem muito. Também fizemos uma campanha com os livros policiais do sueco Stieg Larsson", conta Pedro Sobral.

Apesar deste balanço positivo, a Leya não divulga números concretos de vendas e a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros também não os tem. Mas quando consultámos o top dos livros mais vendidos na iBooks portuguesa, aparecia em primeiro lugar o romance que recebeu o Prémio Leya 2011, cujo ebook pode ali ser descarregado por 9,99€ (13,30€ é o preço do editor para a versão impressa). No segundo lugar, um romance mais antigo, Onze Minutos, do brasileiro Paulo Coelho, numa edição brasileira da Sant Jordi Associados (4,99€). A seguir vinha The Lion King, livro em língua inglesa editado pela Disney (1,49€). Também no top da loja Leyaonline o ebook mais vendido é o romance de João Ricardo Pedro. Só que lá, em formato ePub, o livro está mais barato (8,99€), e é seguido do mais recente romance de Mia Couto, A Confissão da Leoa (11,99€) e de Os Da Minha Rua, de Ondjaki (5,99€).

No final do ano passado, a Leya fez também um acordo com a cadeia de livrarias norte-americana Barnes & Noble, que comercializa o ereader Nook e permite, através de aplicações, que os seus livros sejam lidos em computadores PC e Mac, no iPhone, no iPad e no sistema Android. Por isso, O Teu Rosto Será o Último está à venda nesta loja online, em versão Nook Book, por 13,18 dólares. Como o processo de integração de informação de dados na livraria norte-americana foi mais complexo, só há pouco é que o catálogo da Leya - incluindo as suas edições portuguesas e as brasileiras - ficou disponível. "Tem sido uma surpresa muito agradável. É uma venda muito focada nos EUA, onde o Nook tem uma taxa de penetração alta. Fora dos EUA a venda não é muito relevante. Mas a nossa presença na Barnes & Noble está relacionada [com a possibilidade] de distribuir livros electrónicos para as comunidades portuguesas e para quem nos EUA queira ler livros em português", explica Pedro Sobral.

Já há bastante tempo que a Leya tem um programa de parceria com a Google Books (quando se faz uma pesquisa podem consultar-se excertos de alguns PDF de livros publicados pelo grupo português e brasileiro). Neste momento, está em processo de integração de dados para que a Google ebooks possa vender e distribuir os livros electrónicos Leya através das suas lojas. O passo seguinte será chegar a acordo com a Amazon - e não deve tardar.

A Leya está entre as editoras já contactadas pela Amazon Espanha, que quer ter livros portugueses à venda. Ao que se sabe, não haverá uma loja Amazon portuguesa, tal como vai haver uma loja Amazon brasileira. "Temos vindo a falar com a Amazon muito tranquilamente, quer a Leya Portugal, quer a Leya Brasil", revela Pedro Sobral. "Para nós a questão essencial é que os nossos parceiros e distribuidores tenham as mesmas condições. Isso é sine qua non", acrescenta. Apesar disso, em breve a Leya terá os seus ebooks na versão Kindle à venda na Amazon, acessíveis a compradores europeus.

Um mercado fechado

Quem já tem os seus dicionários à venda na Amazon é o grupo Porto Editora. Para os dispositivos Kindle, estão disponíveis desde Maio os dicionários bilingues de Português-Inglês, Inglês-Português e Português-Francês e Francês-Português. Custam 12,64 dólares cada.

Na App Store, da Apple, o grupo tem desde o ano passado disponível a Diciopédia mobile e o Dicionário da Língua Portuguesa (que são gratuitos) e ainda dicionários bilingues pagos. Entretanto desenvolveu uma aplicação específica para dispositivos com sistema Android e para o Windows Phone 7.

Embora, tal como a Leya, a Porto Editora não divulgue números de vendas, desde Janeiro de 2011 até agora registou 1,3 milhões de downloads de conteúdos mobile. Embora os registos provenham de cerca de 80 países, mais de 70% dessas descargas foram feitas no Brasil, com destaque para a aplicação do Dicionário de Língua Portuguesa.

O projecto Os Miúdos, uma série de histórias infantis com personagens do site Sítio dos Miúdos, está também à venda na App Store (2,99€ cada aplicação). Estas histórias animadas podem ser lidas no iPad e ouvidas em inglês, espanhol, português de Portugal e português do Brasil.

Até aqui os editores compravam o papel e imprimiam os livros onde lhes apetecia. A seguir, tentavam vendê-los onde quer que fosse: livrarias, hipermercados, correios, bombas de gasolina. Nesta era do digital, os editores passaram a estar dependentes das empresas que têm a tecnologia e são também distribuidoras. São obrigados a fazer os seus livros electrónicos num determinado formato e a vendê-los unicamente na loja de determinada empresa: formato exclusivo Kindle para a Amazon, sistema operativo iOS exclusivo para Apple na App Store, formato exclusivo para Nook na Barnes & Noble, etc. Em alguns países (Espanha, França, Brasil), os editores têm tentado juntar-se para melhor protegerem os seus interesses e evitar que seja a venda de hardware a impor as regras no mercado do livro.

"Este é um mercado específico, por isso é que há uma lei do preço fixo do livro em muitos países e não há um preço fixo da gasolina ou das batatas. O livro, todos sabemos, é um bem cultural insubstituível, pelo que ao longo das últimas décadas tem tido um tratamento específico, tanto a nível legislativo como a nível de políticas", defende Vasco Teixeira, administrador e director editorial do Grupo Porto Editora.

"Obviamente, isto não agrada a estes novos agentes do sector. Para eles este é um mercado como qualquer outro. Nenhum vem da área do livro e querem é tratar as coisas caso a caso, porque não lhes interessa que os editores tenham uma frente unida. Mas se este mercado for tratado como qualquer outro vai destruir-se culturalmente muita coisa", acredita o administrador, para quem em Portugal ainda se está no início dos inícios: "Nem sequer começámos a volta de aquecimento."

É por isso que, antes de avançar mais, a Porto Editora está a tentar encontrar soluções tecnológicas mais amigáveis para os utilizadores. O grupo considera que não faz sentido que um editor tenha de fazer um livro técnico ou ilustrado para a Apple, outro para a Amazon e ainda outro para a Barnes & Noble. "A estratégia destes players é fazer o seu mundo fechado para controlar os clientes e contrariar o negócio. A estratégia do editor, na minha opinião, não pode ser fazer o jogo deste mundo fechado. Eu quero um livro que funcione bem em todos os tamanhos de aparelhos e em todos os aparelhos. Com isso estou a aproximar-me daquilo que deve ser a vontade do público".

No ambiente digital, não é fácil para um consumidor, quando faz um download, distinguir se se trata de um livro de dez páginas ou de mil. No mundo físico é fácil, porque na livraria se percebe logo porque é que um livrinho de piadas, a preto e branco, está marcado a dois euros e um livro encadernado e com óptimas fotografias da Phaidon é vendido por 150.

"A Amazon tem uma estratégia de preços própria que é a de tentar vender livros o mais baixo possível. É óbvio que isso vai degradar o valor do sector e o valor dos livros. Se o público aderir a essa compra de livros ao desbarato, os livros verdadeiramente mais difíceis de fazer, mais extensos, cujas traduções custam mais dinheiro, que o autor demorou mais tempo a escrever, ou não têm rendimento nenhum ou [se forem vendidos mais caros] vão ter poucas vendas", lamenta Vasco Teixeira.

O problema do IVA

Se formos espreitar na Wook, a livraria online do grupo Porto Editora, o top dos livros mais vendidos é toda uma outra história. Em primeiro lugar está A Mentira Sagrada, de Luís Miguel Rocha, edição Porto Editora (14,50€). Em segundo lugar aparece E-learning e E-conteúdos, de Jorge Reis Lima e Zélia Capitão, pelas Edições Centro Atlântico, 13,99€); em terceiro, Por Trás do Silêncio, de Heather Gudenkauf, também Porto Editora (13,50€).

Embora a Wook já esteja a vender os ebooks da Porto Editora, ainda não se encontra lá todo o catálogo deste grupo editorial. "Estamos a trabalhar com alguma cautela. Achamos que é demasiado cedo e que há poucos consumidores com aparelhos para consumir estes livros", afirma o administrador. Lembra ainda que há problemas legais "graves", como a questão do IVA, que "estão a atrofiar o mercado digital português": "Temos a certeza que, mais cedo ou mais tarde, isto se vai resolver, mas o mercado só se desenvolverá quando isso acontecer."

Já no ano passado, durante o Congresso do Livro na Praia da Vitoria, Açores, o administrador-delegado da Leya, Isaías Gomes Teixeira, alertara para a necessidade de haver mudanças na lei e para a urgência de se tomarem decisões por causa da concorrência num mundo globalizado. Em Portugal, o IVA aplicado aos livros electrónicos corresponde à taxa máxima de 23%, enquanto o IVA aplicado ao livro impresso é muito inferior, de 6%. Para aumentar a confusão, se um editor português vender actualmente um ebook integrado num suporte físico (um CD-ROM, uma pen, etc), já lhe é aplicado o IVA à taxa reduzida. É por isso que na União Europeia se discute agora o que pode ser considerado um livro electrónico.

"A questão do IVA é muito relevante. Por hipótese: se eu vender um ebook da Porto Editora a um site francês ou luxemburguês, ou mesmo à Apple, eles podem comercializá-lo a um leitor português cobrando 3% de IVA. Se eu vender o mesmo livro directamente através do meu site ou de um retalhista português, tenho de cobrar 23% de IVA. Neste momento há concorrência desleal e desequilíbrio entre os vários países", critica Vasco Teixeira.

A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) tem apoiado os esforços da Federação Europeia de Editores (FED) no sentido de obter a alteração das leis europeias nesta matéria, aproveitando a abertura manifestada pela Comissão Europeia e a deliberação do Parlamento Europeu a favor da aplicação do mesmo IVA a todos os tipos de livros. Tem também defendido esta mesma posição junto das autoridades portuguesas e o Ípsilon sabe que a Secretaria de Estado da Cultura está a trabalhar numa solução para o problema.

"Não podemos dizer que haja desequilíbrio entre Portugal e os restantes países europeus integrados na União Europeia, porque, à excepção da França e do Luxemburgo, que legislaram em contradição com as normas comunitárias, todos os restantes países cumprem a aplicação da taxa normal de IVA no download ou no acesso online a livros electrónicos", explica Henrique Mota, editor e presidente do Conselho Técnico para a Internacionalização da APEL.

O processo negocial está a decorrer e há a expectativa de que vai ser possível encontrar um entendimento entre todos os editores europeus até 2015. "A questão mais controvertida neste momento é a definição de livro, de modo a que esta alteração fiscal não venha a ser usada indevidamente. A FEP tem em mãos este processo de consensualização do conceito de livro entre os vários stakeholders (de todos os países), físicos ou electrónicos, e deve alcançar um consenso antes do final do ano", continua Henrique Mota, admitindo que na próxima Assembleia Geral da Federação Europeia de Editores, a decorrer no Estoril de 28 a 29 deste mês, possa haver alguma evolução importante. É provável, quanto ao IVA, que a União Europeia venha a impor um princípio de territorialidade: um livro digital vendido no Brasil deverá reflectir o IVA à taxa aplicável no país para onde esse livro for enviado. O que significa que, mesmo que um leitor português compre um livro num país em que o IVA seja inferior ao que lhe é cobrado em Portugal, no final a disparidade fiscal não lhe renderá qualquer poupança.

Para o Brasil, e em força

Mas há outra questão que não é linear no ambiente digital. "O direito de autor sempre esteve ligado ao território: à execução física dos livros, à tradução e adaptação à realidade do país, mas também ao próprio circuito comercial e à distribuição locais. Com o digital perdem-se estas fronteiras, mas os direitos de autor e os contratos ainda são territoriais. Não se pode transformar o mercado numa selva. Não posso comprar um livro, traduzi-lo para português e eventualmente para espanhol e pô-lo à venda para todo o mundo. É uma questão complexa", afirma Vasco Teixeira. No congresso dos Açores, Isaías Gomes Teixeira já admitia que no futuro teria de decidir se a livraria online do seu grupo, a Leyaonline continuaria a ser portuguesa ou passaria a ser uma empresa brasileira, já que a Leya opera nos dois países.

O Brasil é um gigante que também fala português. O mercado digital brasileiro é infinitamente mais apetecível do que o nosso. Mas por lá, por causa da burocracia, tudo está atrasado. A Amazon queria ter começado a operar no Brasil em Abril, mas não conseguiu; agora fala-se em Setembro. A empresa norte-americana poderá abrir a sua loja online em português do Brasil antes de chegar a época das vendas de Natal. Já contratou um executivo brasileiro, Mauro Widman, que era responsável pelos livros digitais na Livraria Cultura e está agora negociar com os editores brasileiros. Ao que se sabe as negociações com a Amazon não têm sido fáceis por causa dos termos dos contratos impostos pela empresa norte-americana.

Também a Google contratou no Brasil uma pessoa para negociar com as editoras: Newton Neto. Mas a empresa norte-americana adiou a abertura da loja Google Play no Brasil. O que estará a atrasar o processo é implantação do sistema de pagamento.

Por causa disso, a primeira loja de ebooks da Google num país que não é de língua inglesa acabou por abrir em Itália, país europeu que já tem desde Dezembro uma loja Kindle (da Amazon) e uma iBookstore (da Apple) desde Outubro.

Em Abril do ano passado, a Kobo, outra das empresas importantes no sector dos ebooks, disse que também ia apostar em Itália e lançar uma loja naquele país. Há semanas a Kobo anunciou oficialmente que está a montar uma operação no Brasil.

Ricardo Costa, editor da PublishNews brasileira, acredita que a Amazon e a Kobo vão iniciar as suas operações no Brasil ainda este ano. "Na verdade a Kobo tem uma vantagem sobre a Amazon: a parte financeira, administrativa e burocrática está bem resolvida porque a empresa japonesa que comprou a Kobo, a Rakuten, já tem operação de e-commerce no Brasil - é aliás a maior plataforma de vendas online e fornece para várias empresas no Brasil. A Kobo precisa contratar um executivo e começar a conseguir conteúdo. E acho que pode conseguir isso mais rápido do que os ‘gigantes' Amazon e Google, porque me parece uma empresa bem mais flexível", explica ao ípsilon o jornalista e especialista em mercado digital por email.

Num mercado cada vez mais globalizado e em época de acordo ortográfico já aconteceu editores portugueses quererem comprar os direitos digitais de determinado livro estrangeiro e ser-lhes dito que já não o podiam fazer pois os direitos para língua portuguesa já tinham sido vendidos para o Brasil.

Numa entrevista que deu recentemente ao Estado de S. Paulo, o editor brasileiro Sérgio Machado, do grupo Record, defendia que a salvação para esta guerra pode passar pela aposta nos autores nacionais: "Nesse ambiente do ebook, o que vai fazer a diferença, na hora que a gente estiver na última batalha mortal com a Amazon, é o catálogo nacional. Claro que é confortável e prático comprar num leilão um autor feito no exterior. Mas você tem que realmente construir e trabalhar com o autor nacional. Dá resultado."

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