A aldeia da ex-RDA que recebe "turistas de energia"

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Feldheim conta hoje com mais torres eólicas do que com casas JOHN MACDOUGALL/AFP

Na antiga Alemanha de Leste, há 37 famílias que fazem da auto-suficiência energética uma fonte de emprego e de inspiração. Tudo serve para produzir luz e calor: o vento, a terra, os porcos, o milho e o sol, que até nem é muito

É preciso entrar muito devagar na aldeia de Feldheim, para não correr o risco de só dar por ela pelo retrovisor. Com 140 habitantes, alinha-se em poucos metros, no coração de Brandenburgo, na antiga RDA, a 80km a sudoeste de Berlim. Os carros quase não passam por ali e as pessoas também não, à excepção de estrangeiros que vão confirmar se ela é ou não um caso de sucesso. O anfitrião, Werner Frohwitter, diz logo aos que chegam: "Este não é um lugar espectacular."

Em Feldheim, os Trabant ainda estacionam na rua, não se vendem souvenirs e a terra e o vento são abundantes. A aldeia orgulha-se da sua marca "auto-suficiente em energia", das torres eólicas que se espalham pelos campos, do aproveitamento do biogás gerado na exploração com quase sete centenas de porcos, da fábrica de subcomponentes para painéis fotovoltaicos, dos empregos bem pagos que criou e da história que tem para contar.

Feldheim convenceu a gigante eléctrica E.On a fazer o que a empresa não queria: detém a sua própria rede, envolveu os seus habitantes na gestão da energia e faz questão de dizer que é "exemplo único" no país. A teimosia da população de Feldheim não fica longe da aldeia de Astérix, no tempo em que não havia porcos mas javalis.

No último ano, a aldeia de agricultores recebeu a visita de três mil pessoas interessadas apenas em ver como funciona o laboratório vivo em que se transformou, um interesse que cresceu depois do desastre de Fukushima e da decisão alemã em abandonar o nuclear. Aos "turistas de energia", políticos, ambientalistas, cidadãos, escolas e jornalistas, os habitantes mostram, em pequena escala, a aplicação no terreno da "revolução" que a Alemanha quer liderar nas energias renováveis e como a "revolução" pode ter sucesso.

A sala de recepção aos visitantes é um contentor branco improvisado, à beira da estrada, enquanto se aguarda pela construção de um centro de informação e de debates e um restaurante, em 2013. E descobre-se que há condições em Feldheim que a tornam mais única do que os outros exemplos que se encontram pela Alemanha, com várias regiões e municípios a reclamarem serem também 100% renováveis, auto-suficientes ou a caminho disso.

Esta espécie de corrida nacional que distingue a Alemanha dos seus parceiros é incentivada pelos subsídios dados às renováveis, pela vontade alemã de ser exemplo mundial de uma revolução energética e de desenvolvimento económico através das renováveis e pela necessidade urgente de encontrar respostas fiáveis para o fim da produção de energia nuclear. O Governo mantém as metas ambiciosas do seu plano energético para 2020 e 2050, decidido há dois anos, apesar de ter entretanto antecipado o fim do nuclear. A Alemanha quer ter 35% de electricidade de fonte renovável em 2020 e 80% em 2050, contribuindo ao mesmo tempo para a criação de emprego, para a segurança do abastecimento e para a redução de emissões de gases com efeito de estufa.

A corrida de Feldheim começou em 1995, com a instalação da primeira torre eólica. Mais tarde, percebeu que a sua exploração de suínos podia ser fonte de muito mais receita, se convertesse o estrume em biogás, até chegar ao sistema integrado de produção de electricidade e calor distribuído a toda a aldeia, incluindo instalações industriais. O novo projecto é armazenar energia em baterias com capacidade para dois dias de consumo, para os dias "sem vento e sem sol".

O pensamento foi sempre o mesmo, diz Werner Frohwitter, que representa a Energiequelle, a empresa que desenvolve o projecto e dá a cara pela sua divulgação. À medida que o número de turbinas eólicas ia crescendo no campo onde o vento sopra forte, a população de agricultores "queria progredir e que o dinheiro não saísse", diz. O dinheiro não saiu, entrou, com o apoio político e financeiro do município de Treuenbritzen e do estado de Brandenburgo, ajudas da União Europeia, investimento dos aldeões de Feldheim, reunidos numa cooperativa, e a ligação à Energiequelle.

Feldheim conta hoje com mais torres eólicas do que casas: 43 turbinas eólicas, com a potência de 74 megawatts (MW), suficientes para abastecer uma cidade de 20 mil famílias. Parte das turbinas é propriedade da aldeia, que construiu entretanto uma rede local de distribuição de energia eléctrica para alimentar 37 casas.

Para além do vento, aproveitam o sol. São 284 conjuntos de painéis fotovoltaicos instalados em 45 hectares onde durante 40 anos funcionou uma das centrais de comunicações da ex-RDA e que a Energiequelle desmantelou. O parque fotovoltaico tem uma potência de 2,25 MW, o que equivale ao consumo eléctrico de 600 famílias em média, e que também é enviada para a rede. Menos de 1% da energia produzida é consumida localmente. Para vender os outros 99% à rede nacional, mantendo o consumo local assegurado, precisava de uma nova ligação para a rede da E.On, mas a companhia eléctrica recusava. Até que a aldeia pagou do seu bolso a ligação para a rede nacional sob compromisso de fornecimento contínuo, sem quebras - o que era o grande receio da operadora eléctrica.

Paralelamente, construiu uma central de biogás de 500 kW, alimentada com o estrume dos seus 600 a 700 porcos, mais o restolho dos campos, e instalou uma rede local de aquecimento por toda a aldeia, que serve a própria exploração pecuária e a fábrica de subcomponentes. Tem também uma pequena central a biomassa para completar as necessidades de consumo dos períodos de pico de frio no Inverno. "Toda a rede é da aldeia", sublinha Frohwitter. Nenhum dos edifícios se avista da estrada e só quem toma o caminho de terra largo em direcção ao campo encontra as torres eólicas, os painéis solares e os pequenos edifícios industriais.

A riqueza, tal como os aldeões queriam, fica em Feldheim. A população trabalha na agricultura, na cultura do milho, na gestão e manutenção da rede local de energia, na exploração pecuária e na fábrica de subcomponentes. A produção de electricidade evita as perdas no transporte, a produção de calor a partir do biogás produzido na exploração é de elevada eficiência, de quase 90%, evitando o consumo de gasóleo para aquecimento, e garante no total 60 empregos "bem pagos" para uma população de 140 pessoas. Para aproveitar o calor que não consome no Verão, a aldeia está a pensar vendê-lo à piscina municipal.

"Não temos desemprego na aldeia, a revolução da energia na Alemanha não se faz nas cidades, mas no campo. O desafio não é apenas energético, é de demografia e de emprego. Com tanta gente da parte leste da Alemanha a ir para Berlim à procura de futuro, precisamos destes empregos e de uma nova oportunidade para o mundo rural", pede.

Para estados como Brandenburgo, onde as dificuldades económicas levam a taxas de desemprego de 12%, o investimento em energia é encarado como um passaporte para o desenvolvimento, como Feldheim fez. No final, a aldeia poupa 30% na factura da luz e 10% no aquecimento, sem contar com as emissões de CO2 evitadas.

Frohwitter reserva o valor do investimento total, mas vai dizendo quecada uma das 37 famílias gastou 3000 euros no projecto que tem um retorno previstode 12 a 15 anos. Não há lucros e as receitas obtidas servem para reinvestimento. A 38.ª família da aldeia opõe-se ao projecto comunitário e ao ruído das torres eólicas. A mais próxima da aldeia está a 800 metros.

O que a aldeia brandenburguesa acabou por criar para a gestão integrada deste fluxo de energia foi uma rede inteligente e que quer agora desenvolver através da criação de um laboratório, visando consumos mais eficientes e com novas necessidades, por exemplo, o carro eléctrico. O plano faz parte de um projecto de investigação, de três anos, e conta com a participação de várias instituições científicas da Alemanha, como o Instituto Fraunhofer, o centro de investigação em energia e de consultoria em energia da Baixa Saxónia, a Converteam e a Energiequelle.

A Alemanha tem casos famosos de auto-suficiência e de uso de energias renováveis, mas Frohwitter garante que nenhuma se compara. Foram o campo, o vento, os porcos e o milho que fizeram a diferença, na descrição de um autarca alemão também à procura de um passaporte para o crescimento económico. Para além da teimosia.

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