Wilco Curso livrede jardinagem

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De início, Jeff Tweedy tinha até medo do que fazer com tanto espaço em cima dos palcos dos festivais. Depois, percebeu que esse espaço podia ser ocupado num outro plano: carregando o lado cinematográfico dos Wilco

Estão hoje preparados para os palcos que lhes exigem o estatuto de clássicos do indie americano. Lugar conquistado quando, há 11 anos, se tornaram heróis do outro lado das multinacionais. Por Gonçalo Frota

Há um lado quase acidental no heroísmo indie de uma banda como os Wilco. Em 2001, após ter gravado o disco que passaria a definir o seu antes e depois, Yankee Hotel Foxtrot, a banda liderada por Jeff Tweedy apresentou o resultado à editora. Acontece que o álbum não cumpria com o sonho de alt-country-rock-pop talhada para conquistar um ainda muito lucrativo mercado alternativo acalentado pela Reprise, uma subsidiária da Warner. Em vez de um conjunto de temas que prometesse um fervoroso culto em seu redor, quem sabe uns novos R.E.M. ou uns enteados de Neil Young, o disco foi entendido como portador de um experimentalismo não condizente com os gráficos desenhados pelo departamento de vendas. E foram chamados ao castigo. A Reprise não quis lançar o álbum, rescindiu contrato e o grupo, antecipando um comportamento entretanto generalizado, provou a sua firme fé no material ao colocar a totalidade do álbum em streaming gratuito no seu site. Quando finalmente saiu, em Abril de 2002, Yanke Hotel Foxtrot tornou-se o disco mais vendido dos Wilco, alcançando 670 mil unidades vendidas.

O gesto de insubmissão perante a Reprise colocaria a credibilidade indie da banda de Jeff Tweedy nos píncaros. O resto da subida aos céus ficaria por conta da música de Yankee Hotel Foxtrot. Aquilo que os escritórios da editora falharam em identificar na altura foi o potencial das canções que para alguns representaram o OK Computer da música alt-country. Apesar do manifesto exagero na comparação, a verdade é que os Wilco - com a preciosa ajuda de Jim O"Rourke - davam provas de ser capazes de agitar as águas relativamente paradas do género. E começavam nesse ponto uma carreira feita de ligeiros mas persistentes ziguezagues estilísticos, sofrendo por vezes de alguma incompreensão para com as posteriores entradas na discografia sempre que o risco aparecia domado, como aconteceu, por exemplo, com o mais beatleniano dos seus álbums - Sky Blue Sky (2007).

Para Tweedy, é o que sempre acontece com música imperscrutável: perante canções directas ninguém se sente pouco confiante para fazer piadas ou ser abertamente crítico, enquanto na presença de música mais elaborada "ninguém quer parecer estúpido e dizer algo negativo sobre ela". "Se fizermos qualquer coisa mais esotérica", acredita com um bom humor que a voz não trai, "as pessoas não vão ligar nenhuma ou, se ligarem, vão proteger a própria pele". Daí que, preservando uma boa relação apenas com o seu crivo, Tweedy nos diga que a única preocupação dos Wilco reside na certeza de jurarem pela alma de Gram Parsons de que aquilo que fica registado em disco consegue reunir as seguintes características: "ser bom, valioso, compensador, não magoar nem matar ninguém - que seja uma coisa globalmente positiva para acrescentar ao mundo".

O ponto de partida para essa injecção de algo com que valha a pena importunar o mundo parte da velha regra de gravar um disco que não exista nas prateleiras de casa. "Mas ao contrário do que se costuma dizer, não penso que os nossos discos sejam assim tão loucamente diferentes uns dos outros", acrescenta. Na verdade, defende, trata-se apenas de uma consequência pouco planeada de uma curiosidade musical que lhes está colada à pele e de saber assumir a sua voz colectiva. "Toda a gente tem dentro de si música diferente de todos os outros. É uma questão de ver se estão dispostos a defendê-la".

Cuidar do jardim

A carga mítica de Yankee Hotel Foxtrot sairia mais reforçada ainda pela sua data de edição original prevista pela Reprise - 11 de Setembro de 2001. A capa, conta-se, deveria ter duas torres (mantém-nas, ainda assim, mas de forma menos óbvia) e canções como Ashes of American Flags e Jesus, Etc pareciam servidas com néons a apontar para as Torres Gémeas. Durante anos Tweedy tem explicado que o fenómeno não é diferente daquele que se passa com as canções de amores desfeitos em que sempre soa a quem ouve que as canções foram feitas à medida da sua vida. Era, afinal, um disco não premonitório sobre quaisquer acontecimentos vindouros mas antes uma reflexão sobre a identidade norte-americana. Quis o momento histórico que a luz derramada sobre versos como "Tall buildings shake/Voices escape singing sad, sad songs" tivesse uma leitura inesperada.

A recusa dos Wilco em vergar-se à tentativa de imposição de uma sonoridade mais tipificada não destoa das pouco grandiosas expectativas relativamente ao percurso da banda, iniciado em 1994 quando Tweedy e Jay Farrar se separaram enquanto Uncle Tupelo. Na altura, Tweedy ficou feliz por lhe ter calhado nas partilhas do pós-relação um contrato discográfico que lhe permitiu lançar com a nova banda as canções por si compostas para o disco seguinte dos Tupelo. O plano mestre para os Wilco era apenas um: retomar onde a banda com Farrar tinha parado, continuar a fazer digressões e esperar que houvesse gente suficiente a ouvi-los para que fosse viável viver da música. "Atingimos muitos objectivos que nunca traçámos para nós e isso aconteceu porque mantivemos um certo nível de curiosidade, interesse e paixão por aquilo que fazíamos".

Um desses objectivos involuntários é o de subirem aos grandes palcos dos festivais. De início, confessa Tweedy, tinha até medo do que fazer com tanto espaço em cima do palco. Depois, percebeu que esse espaço podia ser ocupado num outro plano, carregando o lado cinematográfico da música dos Wilco. Na primeira edição da versão portuense do Primavera Sound, as canções com essa missão são as do último The Whole Love. Composto na ressaca de um longo período de estrada, Tweedy precisou de uma pausa para deixar que toda a música com que andara em digressão fosse esquecida e os dedos na guitarra não fossem à procura do comodismo das músicas repetidas noite após noite. "Mais cedo na nossa carreira isso nem era uma grande questão, mas agora temos muitas canções das quais cuidar. Gasta-se muita energia mental a tratar dessas canções e depois é imperativo afastarmo-nos durante algum tempo, pararmos de cuidar desse jardim para encontrarmos a liberdade para fazer coisas novas".

Por isso, a fórmula foi (e continua a ser) outra: "Oiço discos até não aguentar mais e querer fazer uma canção e leio até não aguentar mais e querer escrever algo. É assim que funciona". E, de facto, funciona.

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