Depois de uma noite "normal" em Jenin o que temos de fazer é respirar fundo
Incursões do Exército israelita, operações de limpeza da Autoridade Palestiniana, poços de água boicotados, assédio permanente a um famoso teatro que o ano passado perdeu o seu fundador
A tradutora do novo governador de Jenin mostra a barriga de 37 semanas. É uma rapariga, talvez nasça ainda hoje (e, nesse caso, o que é que temos de fazer, respirar fundo?). Olha para o relógio, anota a hora exacta da primeira contracção e depois continua tranquilamente a fazer sala: o nome da filha vai ser Shams (sol, em árabe) porque não há nada que ela mais deteste do que o Inverno na Cisjordânia.
Eis com o que se entretêm quatro mulheres - três portuguesas, uma palestiniana - na sala de reuniões do quartel da Autoridade Palestiniana (AP) em Jenin, enquanto o novo governador, Talal Dweikat, no cargo há pouco mais de um mês, sai de emergência para visitar os estragos da noite passada. Seis poços de água destruídos, eis com o que se entretêm os soldados israelitas numa zona da Palestina ocupada que, de acordo com os termos dos Acordos de Oslo, nem sequer deviam andar a patrulhar.
Meia hora depois, Talal Dweikat senta-se finalmente no seu gabinete e manda servir os cafés. "Fomos surpreendidos esta manhã pela destruição ilegal de uma série de poços em aldeias do distrito de Jenin. São infra-estruturas fundamentais de que depende a agricultura palestiniana. Isto é só uma pequena amostra da política israelita continuada de imposição de obstáculos à nossa vida quotidiana", diz.
Agressão israelita
Israel não estava na agenda do encontro de Talal Dweikat com os dois jornais portugueses que chegaram na segunda-feira a Jenin, uma cidade de 39 mil habitantes no Norte da Cisjordânia, para conhecer a mais internacional das instituições locais: o Freedom Theatre, que em Agosto apresentará um espectáculo em Guimarães. Mas Jenin não pode dormir há dois dias por causa das visitas nocturnas dos soldados israelitas - que na madrugada de anteontem saltaram, encapuzados, o portão da casa do director artístico da companhia, Nabil Al-Raee, casado com a actriz portuguesa Micaela Miranda. Desde então, está incomunicável no centro de detenção de Jalameh, uma prisão militar, por "suspeita de envolvimento em actividade ilegal".
Ainda que Jenin esteja oficialmente sob a jurisdição da AP, o governador não tem meios para exigir a Israel que pelo menos bata à porta antes de entrar. "Esta detenção, tal como a construção de colonatos e o muro, constitui uma agressão à população palestiniana. Adoraríamos que a comunidade internacional exigisse a Israel o fim imediato destas acções", continua o governador.
Business as usual
Fora do quartel onde Talal Dweikat se instalou desde que chegou a Jenin para substituir Kadoura Moussa, o anterior governador, que morreu de ataque cardíaco no passado dia 2 de Maio, depois de um tiroteio à porta de sua casa, muita gente também adoraria que a AP conseguisse impor o respeito pela integridade dos territórios ocupados, mas não à custa da integridade dos palestinianos.
Da cadeira onde o vimos ontem, Talal Dweikat ordenou a detenção de mais de 150 cidadãos de Jenin, a maioria dos quais residentes no campo de refugiados criado em 1953 (última contagem, de 2007: 16 mil habitantes); no início da semana, um despacho da agência Reuters oficializou o descontentamento da comunidade local perante a vaga de rusgas nocturnas conduzidas pelas forças especiais da AP, acusada de reproduzir os métodos de Israel ao manter os detidos na prisão sem acusação formada e recusando-lhes o acesso aos seus advogados.
De Ramallah, o primeiro-ministro Salam Fayyad já mandou dizer que de agora em diante operações destas serão business as usual em toda a Cisjordânia: "Estas detenções representam um esforço continuado de reforço da segurança, não uma campanha com um início e um fim", afirmou à Reuters. A limpeza, que visa oficialmente desmantelar redes criminosas lideradas por uma galeria de "senhores" locais, já fez baixas entre a própria Autoridade Palestiniana.
As feridas de Juliano
O assassinato, a 4 de Abril do ano passado, do fundador do Freedom Theatre, Juliano Mer-Khamis, expôs as feridas de Jenin aos olhos da comunidade internacional. As investigações paralelas das autoridades israelitas e palestinianas ainda não produziram resultados, e entretanto a companhia perdeu não só Nabeel Al-Raeed como outro dos seus fundadores, Zakaria Zubeidi, o ex-líder local das Brigadas de Mártires Al-Aqsa que em 2007 renunciou à resistência armada e se tornou, mais do que uma lenda local, uma figura tutelar da cidade (da sua casa, no topo de uma colina, vê-se Jenin inteira, com o campo de refugiados em primeiro plano). Zubeidi foi detido a 13 de Maio pela AP, que até agora não o autorizou, ao contrário do que estipula a lei, a comunicar com a família. Não é conhecido o motivo da sua detenção.
Apesar das sucessivas baixas, que o director executivo, Jonatan Stanczak, acredita fazerem parte do "assédio continuado aos empregados do teatro e às suas famílias pelo Exército israelita", contra o qual a companhia lançou um apelo internacional, a vida no Freedom Theatre continua. "Isto é normal", diz-nos Stanczak horas depois de Nabil Al-Raee ter sido levado da casa onde vivia com a mulher e a filha, depois de uma noite em claro. Também é normal o genro de Miriyam Abu Aleyah, a cozinheira do Freedom, ter sido levado pela AP e a filha dela anestesiar-se todas as tardes a ver telenovelas enquanto ela vem trabalhar de preto porque, diz, é a cor da vida dela. O que temos de fazer é respirar fundo.
Deve ser o que está a fazer agora a tradutora do governador. Saiu para o hospital assim que terminou a entrevista. As previsões para amanhã dão sol em Jenin.