Ray Bradbury (1920-2012), o poeta da ficção científica
O autor de Fahrenheit 451 deixa uma obra vastíssima, cuja qualidade literária não teve o reconhecimento crítico que mereceria
Celebrizado pelo seu romance Fahrenheit 451 (1953), adaptado ao cinema por François Truffaut, o escritor Ray Bradbury morreu anteontem à noite em Los Angeles, na Califórnia, aos 91 anos. A informação foi ontem enviada à imprensa pela sua filha Alexandra.
Visto como um escritor de ficção científica - muitos dos seus livros saíram em Portugal na colecção de bolso Argonauta, da Livros do Brasil -, esse rótulo pode, no seu caso, ser simultaneamente equívoco e redutor. Se a qualidade literária de Bradbury e a intensidade poética das suas estranhas narrativas faz dele um grande escritor tout court, não é sequer certo que o essencial da sua obra seja enquadrável no género da ficção científica em sentido estrito. Ele próprio afirmava que Fahrenheit 451 - título que evoca a temperatura a que o papel arde - fora a única novela de ficção científica que publicara, já que o mundo concentracionário que aí descreve, do qual os livros tinham sido banidos, poderia vir a tornar-se uma realidade. Tudo o resto que escreveu, argumenta, são obras de fantasia, que tratam de coisas que "não podem acontecer".
Esta sua assumida filiação na literatura fantástica não impede, todavia, que a vastíssima obra que deixou - publicou largas dezenas de novelas e contos, e ainda peças de teatro, livros de poemas e argumentos para televisão e cinema (escreveu, entre muitos outros, o guião do filme Moby Dick, de John Huston) - tenha uma forte dimensão de crítica do mundo contemporâneo, alertando, por exemplo, para o papel potencialmente alienador dos media.
Nascido em Waukegan, no Illinois, em 1920, Bradbury mudou-se com a família para a Califórnia, quando tinha 14 anos, e aí permaneceu durante o resto da sua vida. Após ter completado o liceu, não seguiu estudos universitários e teve vários empregos, incluindo o de ardina. Mas passava boa parte do seu tempo livre em bibliotecas públicas, e foi numa delas, a Biblioteca da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que escreveu, numa máquina de escrever alugada, a novela The Fireman [O Bombeiro], que depois expandiria e à qual daria o título de Fahrenheit 451.
Leitor compulsivo desde criança, Bradbury apreciava especialmente Edgar Allan Poe, Júlio Verne, H. G. Wells e, talvez acima de todos, o autor de Tarzan, Edgar Rice Burroughs, cujo romance de ficção científica Warlords of Mars o entusiasmou tanto que, aos 12 anos, escreveu a sua própria sequela da história.
Aos 18 anos, ingressou numa associação de escritores de ficção científica de Los Angeles, onde se tornou amigo de Robert A. Heinlein, que o ajudou a conseguir publicar as suas primeiras histórias em revistas da especialidade. Durante os anos 40 publicou muitos contos, alguns deles premiados, mas a sua obra só começou a ter amplo reconhecimento público a partir de 1950, quando publicou Crónicas Marcianas, uma recolha de 26 histórias que levou o prestigiado crítico literário Christopher Isherwood a escrever que Bradbury era "verdadeiramente original" e tinha um "grande e invulgar talento". Um juízo que não tardaria a tornar-se consensual, com a publicação, três anos mais tarde, de Fahrenheit 451.
Mas o aplauso de Isherwood e de alguns outros autores nunca o reconciliou verdadeiramente com a crítica, que acusava de negligenciar a "ficção de ideias". Numa extensa entrevista dada nos anos 70 e que só viria a ser publicada recentemente na Paris Review, Bradbury ironiza: "Se tivesse sabido que Norman Mailer gostava de mim, ter-me-ia suicidado."
Ao longo da sua extensa carreira de escritor, recebeu muitos prémios literários, mas talvez nenhum o tenha sensibilizado tanto como a homenagem que a comunidade científica lhe prestou em 1992, baptizando um asteróide que acabava de ser descoberto com o nome 9766 Bradbury.