O que é que o médico Sousa Martins tem a ver com o turismo na serra da Estrela?
Uma mal conhecida expedição científica, dirigida pelo africanista Hermenegildo Capelo e por Sousa Martins, o médico a que muitos ainda chamam santo, foi evocada na serra da Estrela. A aventura faz este Verão 131 anos e é considerada o momento fundador do turismo local. A sua história é uma inspiração para os que querem inverter o paradigma do turismo sazonal e de massas na serra mais alta de Portugal. José António Cerejo
"As tempestades que atormentam os mares agitam e alteram as ondas do lago" e "muitas vezes presenteiam-no com destroços de barcos".
O lago de que assim falava Juan Caramuel, um célebre matemático e bispo espanhol nascido em 1606, era, imagine-se, a lagoa Escura, uma das 25 que salpicam a serra da Estrela de azul e negro. Dois séculos depois, também o escritor Herman Melville fixou nas páginas do clássico Moby Dick a lenda que diz haver na cordilheira mais alta de Portugal, a uma centena de quilómetros do Atlântico, "um lago em cuja superfície flutuam as carcaças de navios naufragados no oceano".
E era assim nos finais do século XIX, feita de prodígios e de mistérios, que a serra preenchia o imaginário dos portugueses, numa altura em que os seus antepassados e alguns ilustres contemporâneos já tinham desvendado mitos e desbravado terras de além-mar. Centrada no continente africano por razões económicas e políticas, a curiosidade dos cientistas reunidos na Sociedade de Geografia de Lisboa virou-se então para as terras beirãs, para os antigamente chamados Montes Hermínios, onde sobravam lendas e patranhas, mas sobre os quais a ciência nada sabia.
Na origem desse súbito interesse, conta Emídio Navarro, um escritor que também foi ministro das Obras Públicas do reino, terá estado a tenacidade e a capacidade persuasiva do seu amigo Sousa Martins, um médico brilhante ainda hoje alvo de um enraizado culto popular. Embora de forma "disfarçada", notou no livro Quatro Dias na Serra da Estrela, a intenção do filantropo prendia-se sobretudo com a comprovação das virtudes da altitude e do clima local na luta contra a tuberculose, a moléstia que então fazia razia entre ricos e pobres.
Daí nasceu, sob a direcção de Hermenegildo Capelo, já então um veterano das campanhas de África, e do próprio Sousa Martins, a Expedição Científica à Serra da Estrela, realizada durante o mês de Agosto de 1881. Mais de 100 pessoas, incluindo muitos cientistas de 12 áreas distintas, desde a medicina à botânica e à geologia, organizados de uma forma quase militar, esquadrinharam montes e vales, revolucionaram a forma como a serra era vista e lançaram as bases da sua exploração turística, em particular do turismo de saúde.
"A logística da expedição ocupou 23 vagões de caminho-de-ferro e incluía laboratórios inteiros para análise das águas, sismógrafos, barómetros, termómetros, tudo em duplicado", conta a historiadora Helena Gonçalves Pinto, docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, que ainda este ano deverá publicar um livro sobre este momento único e mal conhecido da história da ciência portuguesa. Precursora da actividade turística na serra, a expedição foi evocada em Abril no quadro das comemorações do Centenário do Turismo em Portugal - uma iniciativa que se tem desenrolado nos últimos doze meses e que assinala os 100 anos da abertura da Repartição de Turismo, o primeiro serviço de promoção do sector criado no país.
Turismo quatro estações
Volvidos 131 anos, a serra é outra, mas é a mesma. Onde os penhascos imperavam, solitários nas encostas nuas e nos planaltos pelados, surgiram as florestas, por vezes de espécies exóticas e valiosas como as pseudotsugas, ou até as portentosas sequóias e as bétulas. Onde os socalcos se enchiam de centeio, de pão, estão agora, por sorte nem sempre, terras abandonadas e courelas incultas. Mas onde os rios nasciam, o Zêzere, o Mondego e o Alva continuam a nascer. Onde a imponência da paisagem nos apequenava e agigantava, continuamos a sentir-nos nada e tudo. Onde o oxigénio rareava e a tuberculose se curava, continuamos a respirar fundo, e fresco, e a entontecer.Em plena rota do Poço do Inferno, um dos muitos percursos pedonais que a Câmara de Manteigas e alguns privados criaram ou reabilitaram no coração da serra, uma centena de participantes num passeio evocativo da grande expedição de 1881 extasia-se com as quedas de água da ribeira de Leandres. De um lado, quase a pique pela encosta acima, reina o xisto, do outro o granito. Por toda a parte a biodiversidade expõe-se e dispensa explicações. As cores são as explosivas da Primavera, abraçadas às melancólicas do Outono tardio. Mas os farrapos brancos do Inverno ainda dançam na retina de quem vem das Penhas Douradas nesta manhã de fim de Abril. E o amarelo dos piornais casa com o branco das giestas, o roxo dos urzais, a sinfonia verde-alaranjada dos musgos e dos líquenes.
Rafael Neiva, um engenheiro florestal do Parque Natural da Serra da Estrela que partilha com 22 colegas a infinita responsabilidade de preservar um tesouro espalhado por mais de 100 mil hectares e seis municípios, transborda paixão em cada palavra e em cada gesto. Fala do que vê aos expedicionários de 2012, que espreitam os trilhos dos de 1881, dos muretes de pedra que no início do século passado, à força de braços, formaram nas encostas íngremes os terraços onde a florestação assentou arraiais, das colossais pseudotsugas que se tornaram quase invasoras e exigem agora um apertado controlo, do laborinho que "é muito bom para consolidar taludes", ou dos arbustos que testemunham a transformação e a aptidão dos solos. Mas fala também do que não vê e do que espera acontecer. Dos mil problemas de um território imenso que conhece como a palma das mãos e da anunciada fusão dos parques e dos serviços florestais - com ganhos, assim o espera, para a conservação da natureza e para as populações. Da expedição de 1881 é que nada diz, porque só fala do que sabe, e muito, e dela nunca ouvira falar.
O conhecimento sobre a expedição é pouco, até na serra, mas Helena Pinto não tem dúvidas. "Ela corresponde a uma mudança de paradigma." Não só no que respeita aos novos saberes que produziu, mas também em relação à maneira de ver e viver a serra. Tudo mudou com a também chamada excursão científica de Hermenegildo Capelo e Sousa Martins, assevera João Tomás, um entusiástico empresário que criou a Casa das Penhas Douradas, modelar unidade hoteleira ali nascida de uma pensão-sanatório do início do século XX. Foi a expedição que abriu as portas ao turismo de saúde, em vários locais da região, com a construção de estabelecimentos próprios e de chalets de cura livre para tratamento dos tísicos. E foi a partir dela que a serra se transformou num dos principais destinos turísticos do país.
Descobertos os antibióticos no final dos anos 1920 e vulgarizado o seu uso no tratamento da tuberculose depois dos anos 1940, a cura pela rarefacção do ar da montanha, que dilatava e limpava os pulmões, foi perdendo terreno, ao mesmo tempo que a neve e os automóveis traziam cada vez mais gente às alturas da Estrela. Foi assim que a majestosidade dos seus picos, os enigmas das suas lagoas, a rudeza dos seus penedos erráticos, ou a grandiosidade dos seus vales glaciares, se tornaram um privilégio de alguns e a neve pouco mais do que um sonho para todos. Foi o tempo da monocultura turística, da cegueira branca e fria, dos projectos megalómanos, da obsessão pelo turismo de massas em busca da neve incerta.
Nos últimos anos, porém, tudo começou a mudar, como se a expedição de 1881 inspirasse os actores locais do mundo turístico e empresarial, resume João Tomás. Passou-se a falar em turismo de quatro estações, apostou-se no turismo de natureza, no turismo de aventura, no turismo cultural, no turismo de saúde. Também o presidente da Câmara de Seia, Carlos Figueiredo, diz que "o paradigma do turismo assente na neve está a ser invertido, nomeadamente com o conceito de aldeias de montanha". A propósito do lançamento, no passado dia 30 de Abril, de uma série de guias da serra, integrado no programa do Centenário do Turismo em Portugal e da recriação da expedição de 1831, Carlos Figueiredo apontou o caminho: "Pretende-se uma serra da Estrela das quatro estações e do turismo de natureza em complemento do turismo de Inverno e da sazonalidade."
E lá por trás, na nascente do futuro, assegura João Tomás, o antigo advogado que foi de Lisboa para Manteigas apostar em projectos de escala humana, ancorados nas riquezas e nos saberes locais, estão as sementes lançadas por Capelo e Sousa Martins há 131 anos. A evocação desse feito cultural e científico, promovida pela Comissão Nacional do Centenário do Turismo de Portugal, presidida pelo arquitecto Jorge Mangorrinha, com a colaboração da Casa das Penhas Douradas e de várias câmaras da região, "há-de ser o embrião de uma coisa qualquer", acredita João Tomás. "Vemos isto como uma pedrada atirada ao lago."
A Fugas viajou a convite da Comissão do Centenário do Turismo em Portugal e da Casa das Penhas Douradas