O grito feito canto

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Bouchra Ouizguen e as três aïtasque trouxe dos cabarés de má fama para o palco em Madame Plaza

As aïtas, artistas que cantavam nas festas e nos casamentos em Marrocos, foram relegadas para cabarés e bares de má fama. Bouchra Ouizguen trouxe três delas para o palco do teatro e, num trabalho de corpos (grandes), de vozes (profundas) e de intimidade, pô-las a contar a vida em Madame Plaza, que hoje chega ao Alkantara.

Cena 1: O teatro

A sala de teatro do Instituto Francês em Marraquexe está mergulhada na escuridão. Há apenas uns focos de luz no palco e quatro mulheres vestidas de negro, ténis brancos e lenços brancos amarrados à cabeça. Ao fundo ouvem-se as vozes e os risos das crianças que brincam no recreio do liceu ao lado.

Uma das mulheres começa a abanar a cabeça, lançando a ponta do lenço para a frente e para trás num movimento rítmico. A pouco e pouco as outras mulheres juntam-se a ela. Durante longos momentos agitam-se assim, ritmadamente, lançando apenas um som - "ha, ha, ha" -, entre o grito abafado, o sopro e uma espécie de riso antes de nascer.

O ritmo vai em crescendo, e o sopro transforma-se em grito, e os gritos em canto, mas canto gritado, vindo das profundezas, e os movimentos transformam-se em saltos, os pés batem no chão, as mulheres parecem possuídas por uma força animal. E gritam, e saltam. Até que, num momento, tudo pára. Silêncio. Agora são apenas três corpos grandes e um mais pequeno num palco, e a luz no rosto delas - rostos que parecem já ter visto tudo. Bouchra pede para pararem.

Apanhámos o ensaio de Ha!, o mais recente trabalho da coreógrafa marroquina Bouchra Ouizguen, num momento delicado. A coreógrafa e as quatro artistas - Fatima El Hanna, Naïma Sahmoud e Kabboura Aït Ben Hmad - estão quase de partida para Lisboa, onde vão apresentar (hoje e amanhã às 21h no Teatro Municipal São Luiz), no Alkantara Festival, a peça anterior, Madame Plaza, e estão, ao mesmo tempo, a ultimar Ha!, para apresentar ali, no Instituto Francês de Marraquexe, no dia seguinte àquele em que o Ipsilon lhes entrou pelo ensaio dentro.

Há, no ambiente, a tensão que sempre existe quando um trabalho de muitos meses se aproxima do momento de ser mostrado. As coisas ainda não estão prontas. Bouchra sente que faltou força na cena que acabámos de ver. As quatro mulheres sentam-se no chão e conversam em árabe. Bouchra fala, gesticula, e as três intérpretes - os tais três corpos grandes - ouvem, contrapõem, sugerem, de vez em quando sorriem.

Conhecem-se já muito bem, estas quatro mulheres. Apesar de três delas virem de um mundo, e a quarta, Bouchra, vir não só de outra geração mas de um outro mundo muito diferente. Ou, se calhar, não tão diferentes assim, como ela irá explicar-nos.

Fatima, Naïma e Kabboura são aïtas, pertencem a um universo de mulheres artistas em Marrocos que há mais de 100 anos percorrem o país para cantar em festas e casamentos, e que nas últimas décadas se viram relegadas para cabarés de má fama. Madame Plaza, o espectáculo que Bouchra traz a Lisboa, é sobre as aïtas.

Mas antes de irmos perceber melhor este mundo, vamos assistir a mais uma cena de Ha!, uma peça em que as quatro artistas decidiram trabalhar sobre a loucura. Começaram a pesquisa numa residência em duas "aldeias de loucos" que existem em Marrocos - Bouya Omar, onde estão pessoas que sofrem de uma loucura mais profunda, e Sidi Rahal, onde existe aquilo a que Bouchra chama uma "loucura doce".

Aí as pessoas vão voluntariamente para se tratarem através da música e da dança. As artistas instalaram-se em Sidi Rahal durante uma semana, seguindo todos os rituais, e Ha! é o resultado dessa experiência. Vamos ver mais uma cena - até porque é importante para percebermos o método de trabalho desta equipa.

Uma das mulheres está sentada no chão como se fosse uma criança grande. Puxou o lenço para a frente e deu um nó debaixo do queixo. Ao fundo da sala. Bouchra fala em árabe (o espectáculo é acompanhado por vários textos escritos por elas). O corpo da mulher agita-se e de dentro do lenço sai uma gargalhada, que se repete durante muito, muito tempo. O espectáculo (tal como Madame Plaza) vive inteiramente dos corpos e das vozes destas mulheres - ambos impressionantes.

Os corpos agitam-se e contorcem-se, e a gargalhada continua até, muito lentamente, tudo se extinguir - movimento e gargalhada. Para onde vão os loucos quando deixam de gritar? E de onde vieram antes?

Mas não nos dispersemos, é outra a razão pela qual estamos aqui: o que queremos é saber de onde vieram estas mulheres, as aïtas, e como elas e Bouchra chegaram até aqui.

Cena 2: O cabaré

São 11 da noite em Marraquexe e o homem baixo, encorpado, de bigode fininho aparado na perfeição sobre o lábio superior, não pára de cantar. Aproxima-se da nossa mesa, de microfone na mão, e, com olhar de galã, desfia o que julgamos ser mais uma canção romântica marroquina. Ao fundo da sala escura, em tons de vermelho, está o acompanhante, a tocar um órgão de feira. A bola de espelhos gira e pequenas bolinhas vão dançando nas paredes à nossa volta.

Tínhamos perguntado às três aïtas de Madame Plaza qual seria o melhor cabaré de Marraquexe para irmos conhecer esse mundo de onde elas vêm. Sugeriram-nos O Tajine, e é aí que estamos, um cabaré na parte europeia da cidade, numa zona de bares e restaurantes. Na primeira incursão, pelas dez e meia, estava completamente vazio. Quando voltamos, uma hora depois, há alguns seguranças sentados pachorrentamente à porta, e lá dentro o homem do bigodinho começou a cantar.

Perguntamos se vai haver também mulheres a cantar, e o empregado, que entretanto transformou a nossa mesa no depósito de cervejas frescas que vai distribuindo pelos outros clientes, diz que sim, elas hão-de cantar, não se percebe se já a seguir, se daqui a uma hora. Tudo bem, esperamos.

E, de facto, há um momento em que o homem do bigodinho, que já tinha olhado várias vezes para o ecrã luminoso do telemóvel, e o seu companheiro do órgão electrónico se calam, e um grupo de cinco mulheres corpulentas, maquilhadas e com vestidos brilhantes, vermelhos ou negros, que tinham estado sentadas no fundo da sala a beber cervejas, se levantam e se distribuem numa fila em frente do palco. Atrás delas sentam-se vários homens, um que parece ser o mais importante e que toca violino e canta, e outros que tocam instrumentos vários. É isto que Bouchra nos tinha descrito como uma troupe, dessas que percorrem Marrocos para animar festas.

Mas aqui, no cabaré, tudo parece um pouco mais triste. As mulheres dançam abanando ligeiramente as ancas e fazendo agitar o lenço de lantejoulas que trazem amarrado abaixo da cintura. Avançam até às mesas e pedem dinheiro para dançar mais. Alguns homens começam a bater palmas, marcando o ritmo. Um homem grande, sentado sozinho, fuma narguilé. Outro levanta-se e ensaia alguns passos de dança. Uma das mulheres canta, com a mesma voz profunda e intensa que têm as aïtas que agora trabalham com Bouchra.

Afinal, foi daqui que elas vieram.

Bouchra, as aïtas e Madame Plaza

Quando era pequena, em Ouazarzate, Sul de Marrocos, onde nasceu em 1980, Bouchra Ouizguen, vivia fascinada por estas mulheres. "Aos seis, sete, oito anos, sempre que havia um casamento, a minha primeira pergunta era se haveria um grupo de cantores ou cantoras. Podemos dizer que foi a minha primeira escola de dança", conta.

As troupes que chegavam às vilas e às cidades tinham um mestre de cerimónias, o tal homem que canta e toca violino ou violoncelo, e uma mulher também mestre de cerimónias, que é a cantora principal. As outras são sobretudo dançarinas. "Mas não foi com estas que decidi trabalhar, e sim com as mestres de cerimónias, que também fazem uma espécie de dança codificada", explica.

Sentia-se atraída "pela maquilhagem delas, a forma de estar, a liberdade". Sentia que "existia ali, naqueles corpos, naquelas danças, um vento de liberdade". E, diz, isso fazia-a "fantasiar sobre o futuro". Sonhava um dia ser como elas.

Essa primeira "escola de dança" acabou por levá-la, mais tarde, às danças orientais. Viveu algum tempo em França e quando voltou a Marrocos, aos 15 anos, começou a dançar por brincadeira, no liceu, e um dia, numa festa de final de ano, apresentou um solo que foi comprado por uma família que estava a assistir. Viu-se assim a estudar e a dançar, uma ou duas vezes por semana, em festas privadas ou em restaurantes.

E isso já a fazia sentir mais próxima das aïtas? "Estive sempre próxima das aïtas. Continuei a ir aos locais onde elas cantavam para ouvir boa música marroquina. Não é uma música tradicional, para mim é uma música totalmente actual. Improvisa-se sobre a vida, retoma-se um reportório, é uma coisa viva. Isso nunca me abandonou."

Mas Bouchra não é de ficar parada numa coisa - percebe-se isso na forma entusiástica e intensa como fala de tudo, enquanto bebe cafés e sumo de laranja. Quando uma coisa a aborrece, sabe que é altura de seguir em frente. E a dança oriental começava a aborrecê-la.

"Tentava fazer coisas diferentes, introduzia palavras, textos, poemas, que não têm nada a ver com a dança oriental, começava a triturar a música, a introduzir a guitarra eléctrica em vez da percussão, algo mais rock do que oriental. Começava a jogar com as coisas, a tentar quebrar, nos limites do possível. Alguns dos sítios onde dançava começaram a dizer-me que preferiam uma coisa mais sensual. E houve um momento em que senti que não podia mais fazer concessões, e decidi tornar-me dançarina."

Aproveitou então uma oportunidade oferecida pelo Instituto Francês - todos os anos, vinham a Marraquexe coreógrafos franceses apresentar espectáculos, e davam depois estágios de dança contemporânea para quem estivesse interessado. Ela estava, mas aparentemente era a única rapariga de Marraquexe que estava. Viu-se no meio de uma turma de 30 rapazes.

Estávamos em 1999, as aulas eram à noite, e não era assim tão fácil para as raparigas de Marraquexe fazerem uma coisa destas. "Marraquexe é hoje muito aberta, mas em 99 não se viam raparigas a fumar nos cafés como se vêem hoje." Além disso, a dança contemporânea "era algo de bizarro". Bouchra suspeita mesmo que a grande maioria dos rapazes que frequentavam os estágios não dizia nada às famílias.

Mulheres políticas

Ser a única rapariga tinha algumas vantagens, e ela acabava por se destacar, o que lhe permitiu vir a ter uma bolsa para estudar um ano em Montpellier e depois mais outro em Paris. Formou-se com Mathilde Monnier e Bernardo Montet. Mas, ao fim de um ano, "tinha absolutamente de voltar para casa". Regressou a Marrocos e procurou as aïtas.

"Procurei intérpretes que não eram de forma nenhuma dançarinas contemporâneas. Sentia que tinha estado longe e que podia continuar a minha escola no meu país". Pôs-se a estudar a história e o canto das aïtas, procurou arquivos dos tempos do protectorado francês, viajou pelo país.

Descobriu muito sobre estas mulheres que, a partir dos cânticos berberes de apelo, cantavam o amor, a traição. "Nada é ligeiro. Elas improvisam em torno da vida - há algo da ordem da escrita. E isto implica mulheres que assumem posição". É um trabalho que começa por ser de improvisação, mas quando uma canção tem força suficiente é adoptada e passa a fazer parte de um repertório.

Mas houve um momento em que o estatuto das aïtas mudou. "No passado, eram consideradas mulheres superiores, artistas, iam a lugares onde se cruzavam com homens de poder, e não estavam ali apenas para divertir, tinham coisas a dizer, politicamente. Há até casos em que ousam criticar o poder - a uma delas raparam os cabelos porque tinha criticado um poderoso da aldeia".

Na época do protectorado francês, estas mulheres começaram, a pouco e pouco, a ser relegadas para "bairros de Casablanca ou de Marraquexe onde se misturavam mulheres de prazer e artistas", para cantar em hotéis e bares de má fama.

Para escolher Fatima, Naïma e Kabboura, viu "muitas, muitas mulheres". Ficaram estas. "Se as escolhi foi porque elas me escolheram a mim também. Há um desejo de percorrer um tempo comum de partilha de questões, de aprendizagem mútua". Não sabia, no início, onde tudo isto iria conduzir. "Ao escolher trabalhar com elas sabia sobretudo onde tudo isto não iria conduzir."

O trabalho começa sempre por residências, em sítios distantes da sala de espectáculos. "Cozinhamos em minha casa, cada uma fala de alguma coisa, é uma mistura muito livre de vida comum em torno de interrogações que nos parecem importantes". Madame Plaza nasceu assim - para os espectadores nem tudo é claro. Percebe-se que há uma linguagem de intimidade entre aquelas quatro mulheres - há momentos em que riem, outros em que dançam, rebolam no chão, cantam com as suas vozes profundas, um cântico a lembrar o fado. Contam, através das emoções, as suas vidas. E isso é algo que só se consegue com tempo - por isso, Bouchra demora dois ou três anos a apresentar um novo projecto.

Um texto da Deutsche Welle sobre o espectáculo, quando este foi apresentado na Alemanha, diz que talvez o mais impressionante seja o facto de "os quatro corpos femininos em palco parecerem tão à vontade uns com os outros que parece quase rude olhar". Mas diz também que "a confiança, a ternura e o humor partilhados entre elas não necessitam de tradução".

Nem sempre é assim, conta Bouchra. Houve sítios em que Madame Plaza não funcionou. "Mostrámos o espectáculo em Marrocos, no Mali, nos Estados Unidos, em Itália, na Alemanha. Gosto que as reacções se dividam. Há os que dizem: "O que é isto? Não é dança". Pode ser dança para uns e não ser para outros. No Líbano, onde há um grande culto do corpo feminino, um dueto com uma das intérpretes não funcionou de todo. Não estávamos dentro dos padrões de beleza. Mas na Tunísia, no Mali, em Marrocos, houve óptimas reacções." E, de qualquer forma, para elas "a incompreensão é um motor para criar". Chega mesmo a ser um ponto de partida para trabalhar.

O que as preocupa - ou melhor, o que preocupa sobretudo Bouchra - são os estereótipos que olhares exteriores insistem em colar-lhes porque são mulheres, marroquinas, árabes, muçulmanas. "Estou-me nas tintas quanto à questão do que é permitido ou não no meu país. Faço o que me parece importante, tento estar o mais próxima possível das coisas que nos tocaram. É excitante ver os possíveis. O campo do "não posso fazer isto no meu país" não é um campo que me interesse."

De qualquer forma, em Marrocos, onde a dança contemporânea praticamente não existia há uns anos (e onde continua a não haver qualquer apoio financeiro oficial), foi surgindo "uma abertura muito grande do lado do público". E há, no fundo, uma outra forma de liberdade: "O que é genial num país como este é tentarmos as coisas sem termos de perguntar-nos se já foi feito ou não".

Por muito duro que seja no final "resumir numa hora meses de complexidade", o delas é um trabalho de exposição. E para Bouchra só pode ser assim. "Se não, prefiro ir vender especiarias ou fazer outra coisa. No dia em que não conseguir que a minha dança seja assim, isto deixa de me interessar. Se não estiver lá esta noção do jogo, do que nos enerva e nos revolta na vida, se não houver vida lá dentro... eu não tenho vontade de me mexer apenas por belos movimentos. Aliás, eu não sei sequer o que é um belo movimento."

A estética não lhe interessa. Interessa-lhe a vida em estado puro - bela, feia, triste, alegre, dorida, marcada. Como a cantam as aïtas nos cabarés de Marraquexe.

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