"Se queremos continuar a viver nas cidades, elas têm de continuar vivas"
Preservar os edifícios e a malha urbana num território tão dinâmico como o da cidade é um dos desafios do património europeu. O congresso da Europa Nostra, que hoje começa, vai pô-lo em debate
Passeamos pelos centros de muitas cidades portuguesas e ficamos com a sensação de que a reabilitação urbana não é uma prioridade. Edifícios devolutos, novas construções que parecem completamente desenraizadas, jardins e praças tornados parques de estacionamento. Mas as coisas estão a mudar, devagar, dirão alguns, ainda que continue a faltar uma estratégia para a revitalização destes territórios cheio de prédios, carros e pessoas, acrescentarão outros.
Para a protecção do património, as cidades são um problema ou, pelo menos, um desafio. Estão sempre a transformar-se e a exigir novas soluções. "Um centro histórico é mais difícil de proteger do que um castelo ou um mosteiro", reconheceu ao PÚBLICO Sneska Quaedvlieg-Mihailovic, secretária-geral da Europa Nostra, associação de defesa da herança cultural, quando esteve em Lisboa em Fevereiro para preparar o Congresso Europeu do Património, que hoje começa (ver caixa). "As cidades são pessoas e as pessoas mudam mais depressa do que a arquitectura."
O encontro da Europa Nostra, organizado com o Centro Nacional de Cultura, termina no sábado e um dos seus pontos altos é o fórum Salvaguardar o Património Ameaçado da Europa, que junta na Fundação Gulbenkian, na sexta-feira, especialistas europeus, norte-americanos e australianos para debater os problemas que se colocam à conservação dos centros históricos e à atracção de mecenato a partir de projectos bem concretos. João Teixeira, vice-presidente do European Council of Spatial Planners, vai falar precisamente de regeneração nas cidades.
O que falta para que haja mais e melhor recuperação de edifícios antigos em Portugal? Por que pensam os políticos pouco em urbanismo, quando falam de património? Que desafios enfrenta hoje o país, quando está ainda em discussão uma nova Lei do Arrendamento e da Reabilitação Urbana? Porque estamos ainda tão longe da média da União Europeia?
Elísio Summavielle, que em Fevereiro assumiu funções como director-geral do Património, diz que em Portugal as mentalidades estão a mudar, mas que há ainda muito a fazer para que se compreenda que o património das cidades tem um valor económico cada vez maior. "Não é só de valorização cultural e de coesão social que falamos, quando discutimos reabilitação urbana. Falamos de economia", diz ao PÚBLICO. E lembra "dados redondos" da União Europeia: "Em Portugal, a actividade da construção na área da reabilitação ronda os 10%, enquanto na União Europeia a média está nos 40%. Nos países nórdicos a recuperação aproxima-se dos 70%."
O ciclo marcado pela especulação imobiliária e pela lógica do betão está a inverter-se, na opinião deste técnico do património que já esteve envolvido em projectos de reabilitação urbana como o da 7.ª Colina, em Lisboa. Mas falta formação às empresas, maior comunicação entre os sectores do património e do ordenamento do território e uma legislação que não burocratize de mais.
Walter Rossa, arquitecto e professor da Universidade de Coimbra, também atribui culpas à "legislação dispersa que leva a duplicidades que não beneficiam o património", mas garante que o principal problema é a ausência de uma visão política para as cidades. "A maior parte dos políticos não percebe, ou finge que não percebe, que a reabilitação urbana tem objectivos que ultrapassam o prazo de validade de um mandato - são para dez ou 15 anos." Tudo, explica este investigador que tem dedicado boa parte do seu tempo à Teoria e História da Arquitectura e do Urbanismo, porque a reabilitação não se limita aos edifícios, dirige-se ao tecido da cidade e passa pela recuperação de empresas e negócios, pela criação de emprego e de condições de fixação das populações.
"A cidade é, por definição, uma comunidade de pessoas cujo dia-a-dia tem depois uma tradução no espaço físico. Muitas vezes contabilizamos metros quadrados sem pensar nas pessoas que os vão usar, no espaço privado ou no que partilhamos."
Para Walter Rossa, é preciso encarar a reabilitação urbana como motor do desenvolvimento económico, "coisa que, aliás, foi reconhecida pela troika no memorando de entendimento". Recuperar os negócios locais é essencial, sublinha Summavielle, defendendo que a reabilitação, para resultar, deve assentar na revitalização de três eixos fundamentais - o dos serviços, o do comércio e o da habitação. "Se as pessoas não tiverem onde trabalhar, onde levar os filhos à escola, onde ir ao médico ou às compras não escolhem ficar, por mais bonito que seja o prédio em que moram." Foi a falta destas e de outras condições que levou à desertificação de alguns centros históricos em Portugal?
"O processo de desertificação começa a inverter-se, mas demora. As mudanças nas cidades são lentas." Lentas mas necessárias, acrescenta Rossa, que acredita que "bons exemplos" como o de Guimarães, que começou com o arquitecto Fernando Távora nos anos 1980, são replicáveis, mas só com uma estratégia definida e sem pressas: "Guimarães é exemplar porque não se preocupou só com edifícios. Preocupou-se com as pessoas, envolveu-as, e criou objectivos estratégicos: primeiro a classificação como Património da Humanidade, agora a Capital Europeia da Cultura... Guimarães foi pensada de forma a que a cidade - o espaço físico e a sua comunidade de pessoas - fosse evoluindo."
O planeamento é a chave
O planeamento integrado é a chave da reabilitação. "Não é só nas cidades pequenas e de média dimensão que a reabilitação deve passar pelo comércio local, pelos pequenos empresários. No Porto e em Lisboa também", diz, referindo como boas práticas de requalificação nestas cidades a intervenção na Ribeira e no bairro da Mouraria. "Apesar dos erros, o património está hoje menos sujeito a descaracterização do que há dez ou 20 anos. Há uma consciência geral de que é preciso protegê-lo e leis que permitem fazê-lo."
A nova Lei do Arrendamento e da Reabilitação Urbana, que foi aprovada em Dezembro e está neste momento em discussão nas comissões parlamentares, deverá entrar em vigor em Outubro. O diploma pretende, segundo o Governo, simplificar o processo de criação de áreas de reabilitação urbana e regulamentar as intervenções nos edifícios.
Walter Rossa, que já foi ouvido numa das comissões e encontra no diploma "inúmeras vantagens", teme, no entanto, que venha a "simplificar demasiado a reabilitação", comprometendo a qualidade das intervenções e facilitando o "acesso a incentivos fiscais que serão dados à custa dos cofres das autarquias". Summavielle, que considera que a actual lei blindou toda a iniciativa privada na reabilitação, está mais optimista. "Precisamos de agilizar processos para que haja mais desenvolvimento, mas sem perder qualidade."
Estimular a economia é também um dos principais objectivos do diploma. E como? Dando mais trabalho ao sector da construção, que vive sérias dificuldades. Dados da Confederação Portuguesa da Construção e Imobiliário (CPCI), divulgados pelo semanário Expresso em Março, apontavam para a existência de 1,9 milhões de fogos no país a precisar de intervenção (34% das habitações), dos quais 820 mil necessitam de obras profundas de reabilitação.
O mesmo relatório da CPCI estimava o valor do mercado da reabilitação de habitações em 28 mil milhões de euros. Um estudo da Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços, de 2010, levava esta estimativa mais longe, prevendo que a reabilitação do património viesse a representar, num prazo de 20 anos, 200 mil milhões de euros.
"O potencial económico é indiscutível", diz Rossa. "Agora só temos de avançar com mais cabeça, mais planeamento." Para isso é preciso sensibilizar mais populações e políticos.
Foi o que fizeram os holandeses. Esther Agricola, directora do Património em Amesterdão, ainda enfrenta dificuldades, mas conta com a ajuda da sociedade civil. "A crise económica levou as pessoas, sobretudo os políticos e os proprietários dos monumentos, a perceber que a reutilização dos edifícios não é só preservação do património, é uma questão de sustentabilidade das cidades", explicou ao PÚBLICO. A secretária-geral da Europa Nostra concorda: "Se queremos continuar a viver nas cidades, elas têm de continuar vivas."