Samuel Pepys na era dos blogues
Um súbdito de Carlos II escreveu um diário durante quase uma década no século XVII. Há dez anos, o webdesigner Phil Gyford teve a ideia de o pôr num blogue, dia a dia. A tarefa termina a 31 de Maio
Phil Gyford vive em Londres e gosta da cidade onde vive. Por isso, há dez anos pensou que lhe faltava ler os diários de Samuel Pepys (1633-1703) - membro do Parlamento inglês que trabalhou no Almirantado britânico e foi responsável por importantes reformas navais - por serem um "documento tão interessante sobre a história da cidade".
Na altura, este webdesigner e programador acompanhava muitos blogues, que eram actualizados com posts diários, e o paralelo entre um diário e um blogue pareceu-lhe tão óbvio que pensou que já alguém se teria lembrado de transpor o diário de Pepys para aWeb. "Afinal, descobri que não, por isso pensei que o devia fazer. Achei que ler uma entrada dos diários por dia ia ser menos intimidante do que pensar em lê-los e visualizar uma prateleira cheia de calhamaços", conta Phil Gyford à 2, por email.
A edição impressa dos diários - que vão de 1 de Janeiro de 1660 a 31 de Maio de 1669 - é composta por vários volumes. Pepys deixou de escrever o diário, que se prolongou quase por uma década, quando começou a ter problemas de visão, pois temia ficar cego.
Phil Gyford, 41 anos, começou a trabalhar neste projecto no final de 2002 e transcreveu a primeira entrada destes diários do século XVII no blogue The diaries of Samuel Pepys (www.pepysdiary.com/) no dia 1 de Janeiro de 2003. O seu método de trabalho tem sido preparar as entradas do blogue e mais recentemente do Twitter (@samuelpepys) para a semana inteira. E depois, dia a dia, os posts são publicados automaticamente, sem a sua intervenção. Quando se ausentava ou ia de férias, preparava com antecedência as entradas e assim aguentou a tarefa durante quase uma década. Fez esse trabalho sozinho e alguns voluntários que escreveram artigos para o site foram apontando erros e fazendo sugestões. Quando lhe perguntamos se alguma vez teve dúvidas em levar a tarefa até ao fim responde: "All the time!" [sempre]
Confessa que não se preocupava muito com as estatísticas do site - que foi tornando públi-cas - mas se soubesse que quase ninguém estava a ler os diários provavelmente teria parado. "Seria uma tarefa demasiado aborrecida e prolongada no tempo para se continuar a fazer se ninguém estivesse a tirar proveito disso. Como tinha alguns leitores, e havia pessoas a colocarem anotações, foi o suficiente para valer a pena."
A sua tarefa vai terminar na próxima semana, a 31 de Maio, dia em que colocará a última entrada. Depois disso, Gyford não tem planos. "O site vai continuar onde está mas não voltará a ser actualizado", explica, apesar de alguns leitores lhe terem sugerido que voltasse ao princípio.
Para comemorar o fim do projecto, aquele que também ajudou a construir o site TheyWorkForYou.com (que aproximou os membros do Parlamento dos britânicos), organizou, a 26 de Maio, uma visita guiada pela Londres de Samuel Pepys seguida de almoço. Jeannine Kerwin, que já escreveu para o blogue,vai fazer um artigo longo sobre como foi a vida de Samuel Pepys e da sua mulher depois de terminado o diário e que ficará disponível online.
Desde o início que Phil Gyford acreditou que estes diários dariam um óptimo blogue, mas, quando queremos saber se ao longo destes anos as suas expectativas foram superadas, não tem a certeza. O que sabe é que os diários se transformaram "num bom blogue".
Para não ter problemas de direitos de autor, Phil Gyford escolheu pôr online a versão dos diários publicada em 1893, que foi digitalizada por voluntários do Projecto Gutenberg [a mais antiga biblioteca digital, fundada por Michael Hart] e já estava disponível na Internet em 2003. É uma edição vitoriana a que faltam alguns dos excertos mais "deliciosos" mas tem várias notas explicativas.
"É interessante que Samuel Pepys tenha escrito um diário tão detalhado, todos os dias, durante quase dez anos - e que haja poucos, se é que há algum, exemplos similares em que se façam relatos do quotidiano de há tantos séculos. Mas o que o torna ainda mais interessante é que Pepys combina eventos de altíssima importância (como encontros com o Rei, organização da Marinha, etc.) com a descrição de experiências corriqueiras do dia-a-dia do século XVII: compra de roupas novas, doenças, comida, as conversas com as criadas, visitas ao teatro, viagens pelo país, etc. Ele é mais conhecido pelas infidelidades que contou no diário - as descrições que fez delas e a culpa de as ter feito tornaram-no mais real e honesto e mostram que não escreveu o diário para se exibir para uma audiência", afirma Gyford.
Numa das entradas, Samuel Pepys descreve uma discussão que teve com a mulher, Elizabeth Pepys (1640-1669), com quem se casou tinha ela 15 anos. Conta que acordou na manhã de 9 de Janeiro de 1663, uma sexta-feira depois de uma noite passada no teatro, e viu Elizabeth em lágrimas. Ela queixava-se de se sentir muito sozinha. Entre soluços, pediu à criada Jane para ir buscar um pequeno baú de onde tirou uma série de papéis, entre os quais uma carta que tinha escrito ao marido há dois meses, onde lhe explicava as razões de toda a sua infelicidade. Era uma carta que ele não tinha lido e tinha queimado, mas ela, previdente, tinha feito uma cópia e ia lê-la em voz alta para que ele a ouvisse. Samuel Pepys escreve no diário que sentiu que tudo aquilo que ela lhe estava a ler era "tão verdadeiro", que ele ficou com medo que fosse parar às mãos de outras pessoas. A partir daqui faz uma descrição da sua disputa por aqueles papéis que a mulher segurava enquanto ele se levantava da cama e se tentava vestir.
Este episódio é referido pela biógrafa Claire Tomalin em Samuel Pepys - The Unequalled self (2002 Whitbread Book of The Year, editado pela Penguin), que comenta: "Sabemos tudo isto porque ele próprio o descreveu. Ao passá-lo para o papel, Samuel Pepys distanciou-se do homem em cena. Olhou para si próprio tal como olhou para Elizabeth, ou para a criada Jane; tal como olhara na noite anterior para os actores e para a audiência no teatro. As emoções conflituosas que transmite - indignação e raiva, pena pela mulher e ao mesmo tempo reconhecimento de que havia uma justificação para o que ela tinha feito -fazem desta descrição uma cena tão absorvente como a que vemos numa peça de teatro ou lemos num romance. É a vida, mas pela forma como ele a descreve transforma-se em arte; e é a arte de um diarista genial, alguém que não escolhe atribuir a si próprio o beau rôle."
Claire Tomalin defende também na sua biografia que o que marca a diferença entre os diários de Samuel Pepys e outros diários da mesma época, que também falam de política, de viagens e vida espiritual "é que mesmo aqueles que dão alguns detalhes sobre a vida doméstica são discretos nas referências às discussões entre casais". Para a biógrafa, o que é "extraordinário" em Pepys é que ele entrou em áreas que na época mais ninguém se lembraria de deixar escritas para a posteridade.
Importante é também o seu testemunho histórico crucial para o conhecimento do período da Restauração. Durante a década em que Samuel Pepys manteve o diário aconteceram em Inglaterra várias tragédias a que ele assistiu e descreve com "olho de repórter": a Grande Praga de Londres, em 1665 (a epidemia de peste), o Grande Incêndio de Londres, em 1666, e o ataque holandês no Medway, em 1667. Como no reinado de Carlos II havia censura (só existia o jornal oficial London Gazette) e nem sequer os debates parlamentares podiam ser reproduzidos, "Pepys prestou um serviço público", escreve Claire Tomalin.
A leitura dos diários nesta versão na Web, em que além do texto original existem hiperligações, notas, comentários e acesso a discussões (que ali nasceram), tornam mais legível o texto original. "Não faria muito sentido tentar transformar o meu website num livro - ele funciona por causa das suas hiperligações, dos mapas, da possibilidade de se fazerem comentários. A versão dos diários que está editada pela Latham & Matthews já é muito boa, tem notas detalhadas e muita informação de background", afirma o britânico, que não tem nada a ver com as aplicações com os diários que entretanto apareceram na App Store da Apple.
Em 2003, Clay Shirky, académico norte-americano especialista em novas tecnologias, afirmou numa conferência que, quando soube do compromisso de uma década de Phil Gyford com o seu The diaries of Samuel Pepys, percebeu que os blogues iam ter uma vida duradoura.
Recentemente contactado por Russel M. Davies, da revista britânica Wired, disse que Gyford tinha sido visionário, ao apostar em 2003 (ano em que surgiu por exemplo a rede social Friendster de quem ninguém hoje fala) numa estrutura que se mostrou fiável. Só no Twitter, tem agora mais de 30 mil seguidores. Phil não acha que a explosão das redes sociais tenha tido algum efeito negativo no blogue. "Espero (mas não tenho a certeza que aconteça) que mais pessoas leiam Pepys no Twitter ou no blogue." No entanto, não crê que sejam os mesmos leitores num sítio e no outro. "São experiências muito diferentes", diz. Também não tem a certeza de que o tipo de interacção que os leitores têm com o blogue tenha mudado com o passar dos anos. "Mas as tecnologias mudaram. Quando eu comecei o projecto, era muito difícil ou mesmo impossível mostrar mapas como os que temos agora. Se eu soubesse na altura o sucesso que as wikis [páginas na Internet que todos podem editar, como na Wikipedia] iam ter relativamente à possibilidade de colaboração de toda a gente, teria feito a parte da enciclopédia mais como uma wiki."
Depois do sucesso do The diaries of Samuel Pepys,surgiram outros projectos parecidos. Em 2008, o Institute for the future of the Book lançou o projecto The Golden Notebook. Um grupo de sete escritoras e jornalistas britânicas e norte-americanas leram o livro The Golden Notebook, da Nobel de Literatura Doris Lessing, em ambiente Web, e colocaram notas nas margens. Quem se ligava ao site conseguia ler essas anotações, tinha acesso a um blogue e ao fórum de discussão. Bob Stein, o director do instituto, tem defendido a importância destes conteúdos feitos em colaboração com leitores e especialistas. Acredita que, no futuro, as pessoas vão pagar para ter acesso às discussões à volta dos livros que andam a ler. "Nunca pensei nos aspectos comerciais do site. Com toda a atenção dada a coisas como a oferta pública de venda do Facebook é fácil esquecermos que muitas das coisas mais interessantes e feitas em colaboração, e das mais valiosas que encontramos na Internet, foram criadas por amor e genuíno interesse, não por dinheiro."
Sente, tal como Russel M. Davies sugeriu na Wired deste mês, que fez história com este blogue? "Não tenho nenhuma ideia, lamento. Temos ainda de esperar bastante tempo para saber se é esse o caso."