60 anos de Barca Velha
Só 17 colheitas deram origem ao Barca Velha, o famoso e exclusivo vinho que Fernando Nicolau de Almeida criou em 1952. A última, de 2004, foi apresentada no passado dia 16, no Douro, onde o mito se continua a perpetuar segundo os ditames do seu criador
A frase é desconcertante: "Hoje, é muito fácil fazer o Barca Velha. O mais difícil é decidir sobre o Reserva Especial [o segundo vinho na hierarquia da Casa Ferreirinha]", diz Luís Sottomayor, o actual responsável pelo mais famoso e exclusivo vinho tinto português. Há mais modéstia do que verdade nesta sentença, mas os tempos e os conhecimentos são outros. Quando o vinho nasceu, em 1952, era quase preciso rezar, para que nada falhasse. As condições eram tão rudimentares que só mesmo uma perfeita alquimia entre génio e alguma sorte permitiram ao seu criador, Fernando Nicolau de Almeida, cumprir o sonho de elaborar um vinho capaz de se bater com os melhores de Bordéus e da Borgonha.
Há 60 anos, como escreveu Ana Sofia Fonseca no seu livro Barca Velha - Histórias de Um Vinho, era mais "difícil ir ao Meão do que a Luanda". O Vale Meão, onde nasceu o vinho e o mito, tinha sido o último sonho fundiário de Dona Antónia Adelaide Ferreira, "a Ferreirinha", que, já no final da sua vida e possuidora de uma fortuna colossal, ainda se lançou na tarefa de construir uma quinta de raiz no deserto duriense. Visionária, concluiu em 1879 a compra em hasta pública de 300 hectares de terra virgem à Câmara de Vila Nova de Foz Côa, situados entre um cotovelo do rio Douro, mesmo junto à foz do Sabor, a poucos quilómetros do Pocinho. Era uma espécie de derradeiro destino, um lugar perdido no meio do dossel montanhoso do Douro, muito frio no Inverno e abrasador no Verão.
Em 1886, um ano antes de o comboio ter chegado ao Pocinho, Dona Antónia começou a plantar as primeiras vinhas e a construir casas e armazéns. No auge da empreitada, chegaram a trabalhar no Vale Meão cerca de mil pessoas. A quinta ficou pronta em 1895. No ano seguinte, "a Ferreirinha" morreu. No dia no seu funeral, a 26 de Março, segundo notícia de O Primeiro de Janeiro, cerca de 300 mil pessoas, muitas de joelhos, juntaram-se ao longo dos quatro quilómetros que o cortejo fúnebre percorreu entre a Quinta das Nogueiras e a igreja da Régua para se despedirem da lendária empresária, "a mãe dos pobres", como era conhecida. Ao longo da sua vida, mostrou-se sempre mais próxima dos necessitados do que dos poderosos e financiou estradas, pontes, hospitais e misericórdias, deixando um legado social que quase a santificou.
Entre o final do século XIX e meados do século XX, a área de vinha foi crescendo no Douro, mas a dureza da região pouco mudou. Não havia as estradas que há hoje e uma viagem de carro desde o Porto, onde Fernando Nicolau de Almeida vivia, e o Vale Meão demorava quase um dia. Nesse tempo, o Douro era mesmo a terra de todas as alquimias, o lugar onde homens, mulheres e crianças desafiavam as leis da física e da resistência e transformavam xisto e sol em vinhos doces e imortais.
"Vais para o Douro? Dizem que o Inferno é mais fresco", atirou um dia Fernando Guedes, o patriarca da família que domina a Sogrape, hoje proprietária da Casa Ferrerinha, a Luís Sottomayor. Fernando Nicolau de Almeida sofria mais do que ninguém com o calor do Douro, que considerava "pior do que o de África". Mesmo assim, sempre que ia ao Vale Meão na vindima, não dispensava os fatos engomados e o chapéu de feltro ou palhinha. E, apesar do calor, adorava tomar chá quente e meter-se na cama debaixo de vários cobertores de lã.
Fernando Nicolau de Almeida era um homem caprichoso e excêntrico, o mais british dos portugueses ligados ao vinho. Tinha tanto de genial como de intimidador. A sua presença metia respeito. Quando entrava na adega, "ouviam-se as moscas do Douro inteiro" (Barca Velha - Histórias de Um Vinho), como recordou o seu filho José Nicolau de Almeida, irmão gémeo de João Nicolau de Almeida, o criador do vinho Duas Quintas e administrador da Ramos Pinto.
Era também um sonhador. A ideia de fazer um grande vinho de mesa do Douro, numa altura em que a região só produzia vinho do Porto, começou a bailar-lhe na cabeça na década de 40. "Fernandinho", como o tratavam, nasceu em 1913, no Porto, no seio de uma família ligada ao vinho. Com apenas 16 anos entrou na Ferreira, onde o pai era o chefe dos provadores. Com a morte do pai, em 1950, herdou-lhe o lugar. "A promoção foi anunciada na sala de provas, então junto ao arquivo. No seu melhor, Bernardino [Bernardino Ferreira da Silva, adjunto do pai na sala de provas] soltou a língua:
- Ó senhor Fernandinho, até que enfim! - os pêsames nas entrelinhas. O provador endireitou as costas, a voz. E, sem esboçar sorriso, logo assumiu poderes:
- A partir de agora, deixo de ser Fernandinho e passo a ser senhor Fernando Nicolau de Almeida. Entendido?
- Sim, senhor Fernandinho - responderam todos, a uma só voz." (Barca Velha - Histórias de Um Vinho)
Cheirista sem diploma universitário, Fernando Nicolau de Almeida formou-se na sala de provas e nas inúmeras visitas que foi efectuando às principais regiões vitícolas do Velho Mundo do vinho. Bordéus, Borgonha, Rioja, lugares famosos pelos seus vinhos de mesa, vinhos que duravam décadas e dispensavam a pisa em lagar, o único método de vinificação usado na altura no Douro. No Château Mayoux, em França, Fernando Nicolau de Almeida percebeu que fermentar o vinho em balseiros grandes em vez de lagares permitia conservar melhor os aromas, desde que a temperatura da fermentação fosse controlada. Manter o vinho abaixo dos 30 graus, a linha vermelha da fermentação, era o grande obstáculo, ainda mais numa região tão quente como o Douro. No vinho do Porto não havia esse problema, porque a fermentação é interrompida com a adição de aguardente. Mas para conseguir um grande vinho de mesa é necessário que a fermentação seja feita de forma lenta, de modo a aumentar o contacto pelicular e a extracção de aromas, cor e taninos, elementos que dão complexidade, estrutura e longevidade a um vinho.
Em 1949, numa visita ao Château Calon-Segur, em Bordéus, Fernando Nicolau de Almeida conheceu um método de refrigeração que podia resolver o problema da temperatura. Mas não era fácil transpô-lo para o Douro, muito menos para a quinta onde, pela qualidade das suas uvas, pretendia fazer o vinho, o Vale Meão, e onde não havia sequer electricidade (só chegou em 1963). Estávamos em 1949. Em 1952, apesar do pouco entusiasmo e do muito pessimismo de quase todos os responsáveis da Ferreira, Fernando Nicolau de Almeida resolveu finalmente avançar para a produção do vinho com que sonhara durante tantos anos. A colheita prometia. No Inverno anterior, mandou construir em Gaia uma tina de madeira com um metro de altura por um metro de largura. Na véspera de começar a vindima, fez seguir para o Vale Meão camionetas carregadas de blocos de gelo envolto em serrim que comprou numa fábrica de conservas em Matosinhos.
Fernando Nicolau de Almeida chegou ao Vale Meão vestido num fato branco de linho. Viajara do Porto até à Régua no seu Chevrolet azul-metalizado de duas portas. Na Régua, como fazia sempre, contratou um taxista para o levar até à quinta.
A vindima arrancou em meados de Setembro, com bom tempo. As uvas chegavam à adega em cestos de 70 quilos carregados às costas pelos homens mais fortes da roga. Eram primeiro desengaçadas num ralador manual colocado em cima de um balseiro e em seguida esmagadas e pisadas por dois homens. Quando arrancava a fermentação, o mosto era então puxado com uma mangueira para a tina pequena que o "mestre", inspirado no sistema do Château Calon-Segur, mandara construir e onde iam sendo colocados, envoltos num caixilho estanque, os blocos de gelo, novidade absoluta no Douro. Ao passar pelo gelo, o mosto arrefecia. Apesar de arcaico, o sistema tinha algo de revolucionário, pois permitia em simultâneo baixar a temperatura da fermentação e fazer a remontagem do vinho (regar as películas em suspensão com o próprio mosto, para extrair cor e taninos e evitar a oxidação da parte mais exposta ao ar). O mosto saía da parte inferior do balseiro directamente para a tina refrigeradora e regressava já fresco ao balseiro pela parte superior.
Com este método, Fernando Nicolau de Almeida conseguiu estender a fermentação por dez dias. No final, passou o vinho para barricas de carvalho nacional de 250 litros, onde completou a segunda fermentação, ao tempo, também desconhecida da maioria dos produtores, a chamada "fermentação maloláctica", que transforma o ácido málico em ácido láctico e deixa o vinho mais suave.
E assim nasceu o primeiro Barca Velha. Foi feito no Vale Meão, mas nem todas as uvas eram provenientes desta quinta. Para dar frescura e equilíbrio ao vinho, Fernando Nicolau de Almeida juntou uvas compradas a lavradores das partes mais altas e graníticas (com maior acidez) da Meda. A graduação final ficou pelos 13,5. O lote era composto por Tinta Roriz (50%), Touriga Nacional e Touriga Franca (40%) e Tinto Cão, Barroca e Tinta Amarela (10%).
O vinho só saiu para o mercado ao fim de alguns anos e foi um sucesso, passando a marcar presença em cerimónias especiais e nas mesas mais abastadas. Nessa década, Fernando Nicolau de Almeida voltou a fazer Barca Velha em 1953, 1954 e 1957. O seu criador era o mais exigente da cadeia de decisão. O vinho só seria feito em anos excepcionais, quando a qualidade das uvas atingisse um nível superior.
Em 1962, a Casa Ferreirinha lançou um segundo vinho de mesa, o Reserva Especial, destinado a reforçar a exclusividade do Barca Velha. Desde então, o grande desafio é decidir nas melhores colheitas se o vinho irá ser declarado Reserva Especial ou Barca Velha.
Em 60 anos, só 17 colheitas deram origem a Barca Velha. E ao longo deste tempo só três enólogos foram responsáveis pelo vinho. Fernando Nicolau de Almeida reformou-se em 1987, tendo sido substituído na direcção técnica por José Maria Soares Franco, o primeiro licenciado em Enologia a entrar na Ferreira. Soares Franco começou como adjunto de Nicolau de Almeida em 1979 e manteve-se na empresa até 2007, ano em que abdicou de um dos cargos mais apetecidos e cobiçados do país para, juntamente com João Portugal Ramos, criar do zero um novo e ousado projecto vitivinícola no Douro Superior chamado Duorum. Com a sua saída, o "senhor Barca Velha" passou a ser Luís Sottomayor, que entrara na Ferreira em 1989, a convite de Soares Franco. Hoje, Luís Sottomayor tem como adjunto António Braga, por quem, se a tradição se cumprir, mais ano menos ano, deverá passar o futuro do vinho.
Nicolau de Almeida teve a última palavra em relação a 12 colheitas de Barca Velha (1952, 1953, 1954, 1957, 1964, 1965, 1966 e 1978, 1981, 1982, 1983 e 1985), Soares Franco a três (1991, 1995 e 1999) e Luís Sottomayor a duas (2000 e 2004). O Barca Velha 2000, ainda orientado por Soares Franco mas lançado já sob a supervisão de Luís Sottomayor, foi o último a ser vinificado na Quinta do Vale Meão.
Com a compra da A.A. Ferreira pela Sogrape em 1987, a maioria das uvas destinadas ao Barca Velha começaram a vir da Quinta da Leda, em Almenda, também no Douro Superior. Com o negócio, a Quinta do Vale Meão passou para alguns herdeiros de Dona Antónia Ferreira, acabando mais tarde por ser comprada pelo trineto da empresária e actual proprietário, Francisco Olazabal. Em 1999, Olazabal lançou o seu próprio vinho, o Quinta do Vale Meão. No primeiro ano, o vinho foi feito na Quinta do Vallado, mas em 2000 já seria vinificado na própria quinta, cuja adega teve de ser partilhada com o Barca Velha. A vindima foi algo caótica, mas Soares Franco continua a acreditar que o Barca Velha 2000 é um dos melhores de sempre.
Apartir de 2001, a Sogrape deixou de contar com uvas do Vale Meão e passou a vinificar exclusivamente na moderna adega da Quinta da Leda, onde, somada à área da vizinha Quinta da Granja, possui 160 hectares de vinha. O Barca Velha 2004 foi, pois, o primeiro a ser vinificado na Leda. Essa foi também a última vindima em que a Sogrape recorreu a uvas de lavradores da Meda. Nas colheitas seguintes, os lotes com potencial para Barca Velha foram enriquecidos com uvas das zonas mais altas (600 metros) de uma outra propriedade da Sogrape, a Quinta do Sairrão, em São João da Pesqueira.
Do segundo Barca Velha do século XXI só foram cheias 26.068 garrafas, Cada uma vai custar 100 euros. O vinho foi apresentado no passado dia 16, no Douro, onde o mito continua a ser perpetuado. Muito mudou desde que o Barca Velha foi criado, em 1952. A adega é diferente, o método de vinificação e a madeira também (o carvalho português foi trocado pelo francês), as uvas têm outra origem e a composição do lote já não é mesma. As castas que hoje dominam são a Touriga Nacional e a Touriga Franca. A tecnologia também não tem parado de evoluir e é cada vez mais difícil enumerar os grandes vinhos de mesa que se produzem no Douro. Mas, ainda assim, o Barca Velha continua a ser o grande vinho do Douro e do país. Apesar de todas as mudanças, o vinho continua a respeitar a filosofia do seu criador e a manter a mesma exigência de qualidade, só saindo para o mercado ao fim de vários anos de estágio em garrafa (normalmente, oito anos após a vindima), quando os aromas e sabores começam a entrar na sua fase gloriosa.
Se fosse vivo (faleceu em 23 de Dezembro de 1998), Fernando Nicolau de Almeida iria gostar do último Barca Velha, da sua complexidade e classicismo, e iria ter orgulho da lealdade conceptual dos seus discípulos, bem expressa no teor alcoólico do vinho. Com tanta mudança, a colheita de 2004 tem os mesmos 13,5% de álcool do primeiro Barca Velha. No essencial, a receita continua a ser a mesma e, como todas as bebidas míticas, é inimitável.
Barca Velha - Histórias de Um Vinho, da jornalista Ana Sofia Fonseca, tem uma edição recente com novos capítulos e uma "carta" saudosa de José Nicolau de Almeida ao pai (Oficina do Livro).