Chefe das secretas é um sobrevivente
Tem uma autêntica devoção pelos Açores, fama de trabalhador meticuloso e de fiel às hierarquias. Nomeado por Sócrates, o chefe das secretas tem a confiança de Passos. Por Nuno Ribeiro
Quando, na passada segunda-feira, em resposta a perguntas do PCP, Francisco Ribeiro de Menezes, chefe de gabinete de Pedro Passos Coelho, referia que o primeiro-ministro reiterava a sua confiança no secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), Júlio Pereira já estava na China. O chefe do SIRP partira na véspera para uma visita há muito programada. A tempestade que afecta a credibilidade dos serviços não levou à mudança da agenda do responsável que, contra "ventos e marés" e muita opinião publicada, se mantém à frente do órgão de cúpula das "secretas".
"Não há timing de saída". A frase sintetiza a situação de Júlio Pereira, nomeado em 19 de Abril de 2005 para o cargo de secretário-geral do SIRP, meses depois de José Sócrates ter conseguido a primeira maioria absoluta do PS. Pereira, por alguns conhecido como "Cavaquinho", numa referência ao disco que popularizou o músico com o mesmo nome, substituiu no cargo Domingos Jerónimo, designado por Pedro Santana Lopes e que fora secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros nos governos de Durão Barroso e Santana. Com a chegada de Passos Coelho a São Bento, era dada como certa a sua substituição à frente do SIRP. Pereira pôs o cargo, equivalente ao de secretário de Estado, à disposição do primeiro-ministro. Para surpresa de não poucos observadores, inclusive de elementos do gabinete do primeiro-ministro, foi confirmado no cargo.
"Está tranquilo, criou uma boa relação pessoal, mesmo cordial, com Passos Coelho, que valoriza o trabalho que ele fez", revela, ao PÚBLICO, um perito em questões de segurança. Noutras versões, as múltiplas vicissitudes porque têm passado os serviços secretos, nomeadamente a constituição como arguido de Jorge Silva Carvalho, ex-chefe de gabinete de Júlio Pereira e antigo responsável do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), levariam à sua substituição. No entanto, a imagem de uma "secreta" pouco discreta e com casos na primeira página dos jornais não lhe fez dano. "Sair do SIRP equivaleria a uma assunção de responsabilidades", precisa um crítico de Júlio Pereira que solicita o anonimato.
"Os inquéritos internos apuraram responsabilidades de natureza administrativa", contrapõe quem o defende. "Há prova que só pode ser recolhida por métodos judiciais", prossegue. Esta é, aliás, a argumentação esgrimida na resposta do gabinete de Passos às perguntas dos deputados comunistas António Filipe e Bernardino Soares: "As medidas recentemente tomadas após o despacho de acusação resultaram de factos que não poderiam ser apurados no âmbito de inquéritos de natureza administrativa." Ou seja, que não houve autogolo por omissão. Uma assinalável sintonia de posições que contraria a tese da falta de actuação do secretário-geral do SIRP em episódios que decorreram nos últimos anos nos dois serviços, SIED e Sistema de Informações de Segurança (SIS), que estão sob a sua tutela.
"Júlio Pereira é o homem da confiança pessoal", comenta um analista em questões de segurança com décadas de experiência. Ou seja, que ganha a confiança da hierarquia. No seu caso e nas funções que desempenha a do primeiro-ministro de Portugal. Foi assim com José Sócrates, que o nomeou, escolha a que não foi estranho João Almeida Ribeiro, então chefe de gabinete de Sócrates e oriundo do SIS. E assim tem continuado a ser com Passos Coelho.
Com o actual primeiro-ministro, Pereira comparte raízes transmontanas: o secretário-geral do SIRP nasceu em Montalegre; a família de Passos é oriunda de Vila Real, para onde regressou de Angola após o 25 de Abril de 1974. Mais decisivo no bom relacionamento será, sem dúvida, a comunhão sobre o futuro dos serviços. Ambos defendem a fusão do SIED e SIS. "Pessoalmente, estou convencido que a tendência para a evolução do SIRP será a existência de um único SI [serviços de informação]", declarou em Outubro de 2010 à revista Segurança e Defesa. Uma alteração que justifica pela globalização das ameaças e racionalização de recursos.
"Fiel à hierarquia"
A fusão também está no programa do PSD, embora tenha a oposição do parceiro de coligação, o CDS/PP. Contudo, um dirigente centrista preferiu não comentar se a actual situação das "secretas" implica uma alteração da sua posição de princípio: "Não nos queremos pronunciar sobre essa questão, achamos que neste momento deve haver tranquilidade nos serviços." Já o PS, cuja contribuição é decisiva para uma mudança de rumo, mantém o "não" rotundo.
Em 2005, quando chegou ao SIRP, "Cavaquinho" não era um desconhecido dos meios da intelligence portuguesa. Fora director-geral adjunto do SIS sob a direcção de Rui Pereira, que mais tarde foi ministro da Administração Interna de Sócrates, e de 2001 a 2003 foi responsável pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. A sua relação com o ex-titular do MAI levou a duas conclusões: proximidade ao PS e filiação maçónica. A primeira não é negada. A segunda foi já desmentida pelo próprio: "O signatário não pertence nem nunca pertenceu a qualquer loja maçónica", afirmou em resposta a um artigo do Diário de Notícias que o conotava com a loja "Universalis". Na mesma carta desmentiu qualquer relação com a empresa Ongoing, de Nuno Vasconcelos, para a qual trabalhou Silva Carvalho.
"É um quadro da administração fiel à hierarquia", sintetiza quem o conheceu nas duas passagens pelos meios judiciais nortenhos: foi delegado do procurador da República em Fafe e procurador no Tribunal Administrativo de Círculo do Porto. A condição de magistrado levou-o a Macau como delegado do procurador e alto-comissário adjunto contra a Corrupção e a Ilegalidade Administrativa. Foi uma passagem profícua e que lhe abriu horizontes: do seu currículo consta um mestrado em Estudos Chineses e o curso de língua e cultura chinesa. Com, entre outras, uma tradução prática: Júlio Pereira domina o mandarim. Foi também em Macau que observou as mudanças chinesas, o que lhe deu um capital de conhecimento e de informação não negligenciáveis. Hoje, na China, permanece uma das cinco "antenas" exteriores que restam ao SIED - as outras são Angola, Moçambique, Índia e Brasil -, depois da aplicação de medidas de austeridade no conjunto do SIRP. Entre outros cortes, levou a uma diminuição de 38,5 por cento nos cargos dirigentes dos serviços.
Esta redução não contabiliza as demissões suscitadas pelas recentes investigações internas, pelo menos quatro, nem outras saídas. Como a do agora arguido Jorge Silva Carvalho, acusado de seis crimes pelo Ministério Público. No seu longo percurso nas "secretas", Silva Carvalho foi chefe de gabinete de Júlio Pereira, antes de passar a liderar o SIED.
As suas ambições, entre as quais a de pretensamente vir a ser secretário-geral de um futuro serviço único, substituindo "Cavaquinho", terão surpreendido Pereira. Aliás, ainda antes de o antigo director do SIED sair de forma inesperada, em vésperas da cimeira da NATO de Novembro de 2010, já se tinha perdido o bom relacionamento entre os dois. "As relações eram tensas", confirma ao PÚBLICO um perito. "O último ano de convivência foi mau", corrobora um analista de temas de segurança. Critérios diferentes sobre a aplicação de medidas de austeridade terão estado na génese do problema.
Com 58 anos e há sete à frente do SIRP, Júlio Pereira tem pela frente um desafio hercúleo: tirar da agenda noticiosa uns serviços que, pela sua natureza, e para serem eficientes, têm de ser discretos e sem sombra de mácula. "Estas coisas marcam sempre", comenta um analista. "Está tudo parado nos serviços", lamenta, em versão menos benigna, outro perito. "No que se refere à credibilidade dos serviços, e mais especificamente do SIED, não se verifica qualquer quebra no âmbito da colaboração com serviços congéneres", ressalva a resposta do gabinete de Passos Coelho ao PCP.
"Ele é trabalhador, escrupuloso, meticuloso e culto", aponta-lhe estas qualidades quem conheceu há décadas a actividade do magistrado Júlio Pereira. Uma hipotética saída do SIRP não seria um salto no escuro. Levá-lo-ia a um território conhecido. "Ele tem interesse em voltar à magistratura, mas nem pensar em sair agora dos serviços", contrapõe um conhecedor da intelligence. No mar encrespado em que navegam as "secretas", e quando não poucos comentadores lhe recomendam a assunção de responsabilidades políticas, um eufemismo de demissão, Júlio Pereira tem o conforto do apoio do Governo.
De natureza reservada, é-lhe conhecida a devoção pelos Açores e uma preferência clubística nortenha: a do campeão desta temporada futebolística, Futebol Clube do Porto. Contudo, há uma característica que unanimemente lhe reconhecem: Júlio Pereira é um sobrevivente.