Juízes contra entrega de partilhas litigiosas a notários
Magistrados dizem que proposta do Governo é inconstitucional. Notários disponíveis para que decisão final seja sempre do juiz
O Governo quer que os processos de partilhas litigiosas de bens de heranças ou divórcios saiam dos tribunais e passem para os notários. A proposta de lei para o novo Regime Jurídico do Processo de Inventário visa descongestionar os tribunais, mas os juízes alertam para a sua inconstitucionalidade.
"Não somos contra as opções do Governo, mas a decisão neste tipo de conflitos é da competência dos juízes. Não há dúvida. A proposta é inconstitucional. É impensável que um notário possa dirimir estas questões. Não tem competências", disse ao PÚBLICO o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Mouraz Lopes.
Num parecer ao qual o PÚBLICO teve acesso, a ASJP defende que "os inventários devem continuar a ser tramitados nos tribunais por serem matéria de resolução de conflitos que não pode nem deve ser atribuída a instâncias extrajudiciais". Os juízes não aceitam que a decisão passe para a esfera privada dos notários nem que o Ministério Público (MP) seja afastado destes processos.
"A eliminação pura e simples da intervenção do MP no processo de inventário será motivo de inconstitucionalidade da proposta de lei", alegam os juízes, lembrando que o estatuto do MP, como consagrado na Constituição da República Portuguesa, estabelece que "compete ao MP representar o Estado, as regiões autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta".
PGR não foi consultado
O Ministério da Justiça (MJ) pretende assim diminuir a pendência de processos. Os mais de 21 mil processos de partilhas litigiosas actualmente parados mantêm-se nos tribunais. A proposta irá incidir apenas sobre os novos. Os tribunais recebem em média oito mil processos por ano.
Ao PÚBLICO, o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, garantiu não ter sido consultado, como é habitual, pelo MJ sobre a nova proposta de lei que afasta a intervenção do MP. "Até agora não me chegou nada. Não sou muito adepto da desjudicialização", confessou. O MJ enviou no final de Abril ofícios para os vários agentes do sector da Justiça, nomeadamente à ASJP e ao Sindicato dos Magistrados do MP requerendo pareceres. O MJ não respondeu, até ao fecho desta edição, às questões colocadas.
Os notários, por seu lado, estão abertos ao consenso e "disponíveis para colaborar e descongestionar os tribunais portugueses, como, aliás, está previsto no memorando com a troika". "O que sabemos é que a situação, como está, não está bem", defende o bastonário da Ordem dos Notários (ON), João Maia Rodrigues.
O responsável, que para já não se pronuncia sobre a eventual inconstitucionalidade, sublinha que a ON está aberta ao diálogo para "limar arestas da proposta" e ultrapassar todas as questões. "Se existir alguma questão de inconstitucionalidade e o problema for a homologação dos juízes, então estamos disponíveis para que o processo seja tramitado pelos cartórios e que a decisão final - a homologação - fique a cargo dos juízes, desde que não tenhamos de esperar por ela um ano", refere.
A passagem destes processos para o campo dos notários, privatizados desde 2005, poderá ter consequências no volume de trabalho dos profissionais da área, compensando perdas de negócio desde que a actividade foi privatizada. "É verdade que é expectável que passe a haver muito trabalho. Trabalho não vai faltar. Faltará saber se irá compensar patrimonialmente", explica o bastonário.