1925-2012 Dietrich Fischer-Dieskau, o mestre incomparável
Foi um supremo cultor do Lied. O barítono, que morreu ontem, impôs-se por uma excepcional inteligência interpretativa
O barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau, que ontem faleceu, dez dias antes de completar 87 anos, foi seguramente o maior intérprete vocal masculino da segunda metade do século XX - senão mesmo de todo o século.
Foi um mestre incomparável, supremo cultor da canção alemã, o Lied, mas também de ópera, de diferentes tradições e estilos, e de repertório de concerto, um cantor - além de, nos últimos anos da sua longuíssima carreira, também maestro - que, mais do que propriamente pelas características da sua voz, se impôs por uma inteligência interpretativa sem paralelo. Fischer-Dieskau fica assinalado entre os que se distinguiram como superlativos exemplos do que é a arte da "interpretação", do toque distintivo dado às obras abordadas.
A sua carreira prolongou-se por assombrosos 50 anos, com início em 1942, tinha ele 17 anos, e logo com o mais difícil dos grandes ciclos vocais, a Viagem de Inverno, num recital nos arredores de Berlim, interrompido por um bombardeamento aliado. Recrutado para o Exército, foi capturado em Itália pelas forças americanas, em 1945, sendo libertado dois anos depois, dando real início à sua carreira internacional.
O lendário produtor discográfico da EMI Walter Legge, cedo o contratou, a ele e a Elizabeth Schwarzkopf. E, ainda que não possam ser esquecidos intérpretes anteriores, foram verdadeiramente esses dois que impuseram o Lied como prática regular na programação de concertos. Ambos deixaram um legado incomparável, não só pela indelével distinção interpretativa, como pelos muitíssimos novos cantores que formaram.
Fischer-Dieskau gravou centenas e centenas de registos fonográficos - nenhum outro cantor nos deixou uma tão abundante discografia! Ainda assim, nesse vastíssimo repertório, com muitas obras várias vezes abordadas ao longo dos anos, é impossível não destacar o seu contributo crucial para a interpretação das canções de Wolf, Mahler e sobretudo Schubert.
De Mahler, nomeadamente, são paradigmáticas as suas interpretações das Canções de Um Companheiro Viandante, com Wilhelm Furtwängler, as Canções das Crianças Mortas, com Rudolf Kempe, ou, muito mais tarde, A Canção da Terra, com Leonard Bernstein.
Só de canções de Schubert são centenas os discos, tendo inclusive realizado, com o pianista Gerald Moore, um dos mais arriscados projectos de toda a história do registo fonográfico, a integral das canções para voz masculina daquele compositor. E dos três ciclos, A Bela Moleira, a Viagem de Inverno e o Canto do Cisne, ficaram registos paradigmáticos com diferentes acompanhadores, Moore, Jörg Demus ou Christoph Eschenbach, mas também Alfred Brendel. E como não citar esse prodigioso registo dos Mörike Lieder de Wolf com Sviatoslav Richter?!
Destacado intérprete de óperas de Mozart a Strauss e à Elegia para Jovens Amantes de Henze e o Lear que Aribert Reimann compôs para ele, Fischer-Dieskau foi também, caso raríssimo num cantor alemão, um enorme barítono verdiano. Aliás, os seus Macbeth, Rigoletto, Falstaff ou Posa no Don Carlos são mesmo, com o Conde nas Bodas de Fígaro de Mozart, e o Holandês no Navio Fantasma e Hans Sachs nos Mestres Cantores de Wagner, aqueles papéis em que é mais patente a sua distinção interpretativa, qual caso à parte, inconfundível.
O alemão Dietrich Fischer-Dieskau foi também, com o tenor inglês Peter Pears e a soprano russa Galina Vishnevskaya, um dos intérpretes escolhidos por Britten para a estreia do War Requiem em 1962, num momento carregado de simbolismo e memorável.
Ele foi o incomparável entre os mestres-cantores. A muito poucos intérpretes devemos tanto - muito obrigado Dietrich Fischer-Dieskau.