Timor-Leste: Os bastidores das negociações

Já poucos acreditavam que Timor conseguisse a independência. Mesmo em Portugal. Algures entre a "feitiçaria africana" de Kofi Annan, a queda de Suharto e a sabedoria da diplomacia portuguesa de propor ideias sem que parecessem suas está o segredo do sucesso desta história improvável.

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Ali Alatas, Kofi Annan e Jaime Gama a 5 de Maio de 1999, quando as três partes assinaram o acordo que deu lugar ao referendo em Timor-LesteJamsheed Marker, mediador da ONU, em Díli, no dia da "consulta popular"Os embaixadores indonésio Nugroho Wisnumurti e português Fernando Neves, que acompanharam os ministros ao longo dos últimos dois anos de rondasXanana Gusmão com Marker PETER MORGAN/REUTERS

Este artigo foi originalmente publicado a 18 de Maio de 2012. É agora recuperado por ocasião da morte de Kofi Annan, antigo secretário-geral que teve um papel determinante no processo timorense.

Acabara mais uma ronda de negociações entre Portugal e a Indonésia e os jornalistas queriam saber quais tinham sido os progressos — se algum. E é então que Jaime Gama, sempre misterioso e sisudo, diz sobre Ali Alatas, ministro indonésio dos Negócios Estrangeiros, a mais inesperada das frases: "Alatas parecia um diplomata português a falar de Timor-Leste. Quase o cumprimentei com 'Bom dia, Sr. Gama'."

Na sala, diplomatas e jornalistas soltaram uma gargalhada. É conhecido o humor desconcertante do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros português — surge quando não se espera e sem provocar a mínima alteração na sua cara. Mas estava-se a 7 de Fevereiro de 1999 e a reunião à porta fechada fora decisiva. 

Mais ou menos adormecida na agenda internacional até Kofi Annan tomar posse como secretário-geral das Nações Unidas em Janeiro de 1997, a "questão de Timor" manteve-se quase imutável durante 20 anos.

Poucos acreditavam numa solução. Mesmo em Portugal. "O José Ramos-Horta fartava-se de pedir para ser recebido, mas ninguém queria. Fui eu o primeiro a recebê-lo, já em 1981", conta André Gonçalves Pereira, então ministro dos Negócios Estrangeiros. Sucessivos governos "deixaram os anos passar sem terem qualquer iniciativa", diz a eurodeputada socialista Ana Gomes, que, como diplomata, esteve durante anos envolvida no processo. "Toda a gente achava sempre impossível, só um imbecil de um português é que podia acreditar na independência", diz o recém-reformado embaixador Fernando Neves, que liderou, com o ministro Gama, o processo negocial. Não foi uma nem duas vezes que recebeu "advertências" de diplomatas estrangeiros para não falar "outra vez de Timor". "Éramos quase ameaçados por colegas, directores-gerais de países europeus, para não levantarmos a questão de Timor em reuniões internacionais", conta. Ana Gomes arrisca um número e diz que até ao massacre de Santa Cruz, em 1991, que tanto emocionou o mundo, "80% dos diplomatas portugueses davam Timor como perdido".

"[Estava-se em plena Guerra Fria e os EUA] diziam-nos clarissimamente que [o ditador indonésio] Suharto era um aliado americano e que os guerrilheiros da Fretilin eram comunistas", conta Gonçalves Pereira. O embaixador Neves lembra-se de estar em Bruxelas em 1986 quando, durante um episódio crítico relacionado com Timor, Portugal sentiu solidariedade pela primeira e única vez em anos. "Só a Grécia — e a Irlanda mais tarde — foi consistente no apoio a Timor."

E, por isso, quando Kofi Annan nomeia o embaixador paquistanês Jamsheed Marker como representante pessoal do secretário-geral para Timor-Leste, logo nos primeiros dias do seu mandato, o gesto foi interpretado como um sinal de que a ONU ia injectar ambição no assunto.

Havia "muitos e óptimos dossiers na sede da ONU sobre a questão", conta Marker nas suas memórias sobre o processo negocial que começou em 1997 e culminou, dois anos depois, com o acordo que permitiu a Timor escolher, num referendo, que queria a independência. Mas ao lê-los "não era possível ter grande optimismo".

A seguir à invasão de Timor pela Indonésia, em 1975, houve o corte de relações diplomáticas e comerciais entre Lisboa e Jacarta e durante anos o contacto foi inexistente. Em 1983, começou um diálogo formal, mediado pela ONU, mas sem progressos. "Havia uma grande incompreensão, as pessoas diziam que não acontecia nada, 'para que servia aquilo?'", diz Fernando Neves. "Sem perceberem que as reuniões tripartidas foram o pé que permitiu que não se fechasse a porta de Timor." Se calhar, diz o embaixador com um sorriso irónico, "os indonésios não compreenderam que, ao aceitarem discutir na ONU, estavam a reconhecer que Timor era um problema internacional — não se discute o Minho com mediação das Nações Unidas".

Mas na prática, os dois países "não se ouviam", queixou-se o bispo Ximenes Belo, quando o enviado da ONU visitou Díli pela primeira vez em 1997. Porque tinham posições diferentes, mas também porque havia "um choque entre a mentalidade oriental de "conversas nas sombras" e a mentalidade cartesiana da discussão aberta dos portugueses", escreve Marker em Timor-Leste - Relato das Negociações para a Independência (Ed. MNE/ID, 2009). "Lisboa não conhecia o seu interlocutor", confirma António Pinto da França, que foi embaixador de Portugal em Jacarta nos anos 1960. "Os diplomatas javaneses são muito subtis e sofisticados, muito ingleses. E os javaneses querem sempre resolver tudo com o tempo - tempo tidak apa, dizem eles, o tempo não importa. Não gostam de confronto e seguem o alus, a suavidade."

Uma palavra esquisita para quem estava em Nova Iorque à mesa das negociações. "Era um bocado difícil estar a negociar com os indonésios e não ter presente a crueldade do que se passava em Timor", diz Fernando Neves.

Com mais ou menos alus, a verdade é que em 1997, quando Annan agarrou no dossier, Lisboa e Jacarta diziam exactamente o mesmo há 15 anos. "A Indonésia defendia que a integração de Timor-Leste era completa e final e Portugal defendia que ainda faltava um acto de autodeterminação", escreve Marker. "E nestas duas rochas de intransigência haviam soçobrado todas as negociações até então."

A 7 de Fevereiro de 1999, quando Gama elogia o velho inimigo indonésio à frente de toda a imprensa internacional, na conferência de imprensa em Nova Iorque, já estavam para trás dois anos intensos de rondas, dezenas de reuniões e viagens entre Nova Iorque, Lisboa, Jacarta e Díli, muitos pequenos avanços e ainda mais recuos, desconfiança, azedume e exaltações. Chegava-se a um desbloqueio crucial. Gama tinha boas razões para estar contente e deixar abrir a sua couraça: se os timorenses quisessem, as duas partes — timorenses e indonésios — seguiriam "caminhos separados".

Três meses depois desta reunião, Lisboa e Jacarta assinavam naquela mesma sala de imprensa da sede da ONU, em Nova Iorque, o célebre Acordo de 5 de Maio que deu lugar ao referendo em Timor-Leste, cujo resultado inequívoco levou à independência do país, faz este domingo dez anos.

É no seu livro de memórias que Jamsheed Marker conta os bastidores desta reunião: "Para os indonésios, era anátema utilizar a palavra 'referendo', ao passo que para os portugueses tudo o que não parecesse um referendo era nevrálgico."

Agarrado ao seu lema — "A nossa paciência dar-nos-á mais do que a nossa força" —, Marker propusera uma solução: porque não chamar "consulta popular" ao referendo que não se podia chamar referendo? Este problema semântico, que poderá parecer ridículo todos estes anos depois, demonstra a importância que a diplomacia teve para revolver o longo impasse de Timor-Leste, concordam diplomatas e políticos ouvidos pelo PÚBLICO.

Mais decisivo ainda, defende Ana Gomes, foi Portugal ter feito uma proposta para uma autonomia alargada para Timor e "ter tido a habilidade de fazer crer que não tínhamos sido nós a pôr a ideia em cima da mesa". Neves conta: "Fui ter com Gama com uma folha A4 com um novo quadro de autonomia." A Indonésia continuaria responsável pela diplomacia, defesa, moeda e finanças, e a autonomia regional teria poder legislativo, executivo e judicial, além de autonomia total cultural, incluído a educação, língua e promoção da cultura. No fim dizia que para a Indonésia autonomia implicava integração e para a comunidade internacional era um processo incompleto. Gama diz: "Isto é o tipo de coisas que a ONU gosta."

Mais tarde, quando levou a proposta a Marker e aos seus assistentes no processo, o catalão Francesc Vendrell e o eritreu Tamrat Samuel, todos disseram em coro: "Oh, isso é impossível. Os indonésios nunca vão aceitar!" À tarde, porém, Samuel pede a Neves para subir e explicar melhor a ideia. E então Neves diz: "Nenhuma destas propostas pode ser apresentada como sendo portuguesa. Tem que ser da ONU." Todos conheciam o peso do reflexo pavloviano nas negociações.

E assim foi. De tal modo, diz Ana Gomes, que mais tarde a Indonésia faz uma proposta que apresenta como "nova" mas que é quase igual à que, meses antes, Portugal apresentara. A arte de não querer ficar sempre com os louros, poder-se-ia dizer. Ou simplesmente "a arte da diplomacia", diz Neves, que "é fazer o impossível".

"Nenhuma solução aparece caída do nada", diz Zacarias da Costa, actual ministro dos Negócios Estrangeiros de Timor. "O referendo não foi o resultado de um longo processo negocial e não foi o resultado das mudanças do regime indonésio: foi o resultado de ambos", diz.

O que nos leva ao Verão de 1997. Os EUA continuavam ambivalentes e Nelson Mandela, já livre e Presidente da África do Sul, começou a pedir publicamente a libertação de Xanana Gusmão, o líder da guerrilha timorense. Quando foi a Jacarta, Mandela pediu a Suharto para se encontrar com Xanana, mas o ditador respondeu com uma pergunta: "Porque quer falar com ele? Não passa de um criminoso comum." Quando Mandela lhe disse: "Foi precisamente isso que disseram de mim durante 25 anos", o ditador autorizou Xanana a sair para jantar com Mandela. "Não posso atestar a veracidade desta história, mas tem um ar autêntico", diz Marker. Sabe-se, pelo menos, que o jantar aconteceu e que dele "nasceu um enorme respeito mútuo".

No Natal, apareceram as "primeiras rachas na gigantesca e monolítica pirâmide financeira da Indonésia", lembra Marker. Dias depois, Suharto assinou um acordo de ajuda financeira com o FMI e a fotografia correu mundo: o velho Presidente indonésio está sentado a assinar e ao lado, de pé e com os braços cruzados, o director-geral do FMI, o francês Michel Camdessus, com um sorriso contido. Pecado mortal. Numa cultura onde salvar a face é muito valorizado, a fotografia foi uma humilhação. "Começou a inquietação", diz Marker. Logo a seguir, começaram os rumores sobre o estado de saúde do Presidente.

A doença de Suharto era interpretada de forma oposta. Alatas insistia que era "agora ou nunca", pois os sucessores de Suharto, mais novos e sem conhecimento do dossier, teriam ainda mais dificuldade em aceitar a ideia de que Timor não era parte da Indonésia. Alatas chegou a dizer a Marker que, se Suharto caísse, a pasta da diplomacia seria entregue a outra pessoa. Portugal, pelo contrário, achava que a questão não se poderia resolver enquanto Suharto estivesse no poder.

A 3 de Abril de 1998, quando B.J. Habibie, vice-presidente de Suharto, se encontra pela primeira vez com Kofi Annan, a Indonésia age e fala como se o regime estivesse de pedra e cal. Não foi um encontro agradável. Habibie disse ao secretário-geral da ONU que "tinha tão pouca confiança nos portugueses que nem valia a pena reunir-se com o primeiro-ministro" António Guterres, uma proposta portuguesa. Teve "várias exclamações efervescentes e surpreendentes", escreve Marker, e defendeu que a Indonésia melhorara muito a vida dos timorenses.

A argumentação não era nova. Um ano antes, quando o enviado da ONU falou com Suharto, o Presidente indonésio disse-lhe que "ao fim de 400 anos de ocupação colonial, os portugueses [tinham deixado] Timor-Leste com 20km de estrada e um médico", e que "aceitar a integração" da meia ilha em 1975 fora um "fardo pesado" que obrigara a Indonésia a "sacrificar o desenvolvimento nas outras 26 províncias".

Annan ouviu Habibie e falou no fim. De forma "delicada mas firme", disse-lhe que o "investimento económico em nada alterara a atmosfera política em Timor-Leste, que Jacarta não conquistara o coração e a opinião dos timorenses e que subsistia um enorme problema político". A reacção? "Habibie não ficou satisfeito, mas aceitou o comentário com elegância."

Um mês depois, o velho ditador Suharto foi forçado a demitir-se. Trinta e dois anos depois de um regime brutal, a gota de água foi a morte de seis estudantes universitários durante uma manifestação contra as medidas de austeridade impostas pelo FMI. Habibie sobe a Presidente. Em Portugal e em Timor, a pergunta é uma: a mudança ajuda ou complica as negociações diplomáticas em curso?

Ana Gomes não tem dúvidas: "Sabíamos que era a nossa janela de oportunidade." Um dos segredos do sucesso, diz Neves, foi "Portugal saber aproveitar as mudanças".

A situação está cada vez mais volátil. Num desabafo, Marker diz a Kofi Annan que trabalhar na questão de Timor naquele momento "era como arear as pratas no Titanic". Annan, que "não tem "desencorajamento" no seu vocabulário", escreve o diplomata paquistanês, ri-se e responde: "Mas vamos continuar a fazê-lo."

Todos sabiam como Jacarta e Lisboa podiam passar anos a fio a discutir coisas aparentemente simples sem chegar a lado nenhum. Nas suas memórias sobre as negociações (The Pebble in the Shoe — The Diplomatic Struggle for East Timor, Ed. Aksara Karunia, 2006) Ali Alatas, que afinal manteve o seu lugar à frente da diplomacia, conta com pormenor como Portugal e a Indonésia passaram quatro anos e meio a discutir a visita de uma delegação de deputados portugueses a Timor, que nunca chegou a acontecer.

Nesta nova fase, já nos anos 1990, se houve coisa que evoluiu foi o vocabulário. As posições de ambos eram imutáveis, mas iam-se encontrando novas palavras para que o diálogo continuasse. Marker, cuja escolha levantara inicialmente alguns sobrolhos em Portugal — era amigo próximo de Ali Alatas, a quem tratava por "Alex" -, rapidamente tomou partido. Basta ver como descreve os timorenses integracionistas a primeira vez que visita Díli. "O seu ar elegante, arrogante e confiante era um contraste brutal com o dos grupos pró-independência, andrajosos, esqueléticos e com expressões desesperadamente esperançadas nos olhos."

Um primeiro grande passo nas negociações foi aceitar discutir a autonomia sem decidir, a priori, se essa autonomia seria uma solução definitiva ou provisória. Em Junho de 1998, Alatas telefona a Marker e diz que tem "uma proposta importante" a fazer. Os EUA começavam a mudar, Stanley Roth, númerodois para a Ásia da diplomacia americana, tinha conhecido Xanana na prisão e dissera a Marker que lhe vira uma "atitude extremamente objectiva e de estadista". Marker, por seu lado, viu no líder guerrilheiro "uma versão mais jovem de Mandela".

E veio a proposta. Habibie atirava para a mesa de negociações uma proposta de "autonomia especial, alargada" para Timor. Insistia que um referendo "viria apenas reabrir feridas antigas, reacender confrontos e conflitos" e que poderia "conduzir a uma nova guerra civil". Portugal achou o "documento útil", conta Marker. O Presidente Jorge Sampaio ficou "especialmente impressionado" e Jaime Gama disse que eram "desenvolvimentos muito, muito positivos". Havia, claro, reservas: Gama perguntou se os indonésios estariam prontos a permitir a formação de partidos políticos timorenses e Sampaio insistiu que "não faria sentido" aceitar a proposta de autonomia como solução final e continuar a negociar. Hoje, Ana Gomes ri-se: "Era a nossa proposta!"

Era preciso "conceber" modalidades para uma "abordagem gradual", como, por exemplo, um período de transição, em que a questão do estatuto da autonomia ficasse em suspenso. Numa reunião pouco depois, em Jacarta, Habibie voltou a dizer à ONU que a autonomia era o "limiar máximo" e que um referendo em Timor levaria à desintegração da Indonésia. Exaltado, disse "categoricamente que não libertaria Xanana".

Em dois anos, falou-se em "autonomia especial", em "autonomia alargada", em "região autónoma especial" e até numa "autonomia regional mais". Mas sempre que se dava um passo, batia-se no mesmo obstáculo: seria a autonomia de uma parte da Indonésia ou a autonomia de um "território sem governo próprio" ainda à espera de um processo de descolonização?

É por isso que ainda hoje se discute o que motivou uma inversão tão radical de B.J. Habibie. A 27 de Janeiro de 1999, o novo Presidente anuncia que o conselho de ministros indonésio decidira que Timor iria receber uma "autonomia regional mais". A bomba veio na frase seguinte: "Se a maioria dos timorenses não a quiser, [o Governo vai sugerir ao Parlamento que] Timor seja libertado da Indonésia." Em Lisboa, o embaixador Fernando Neves estava a fazer a barba quando ouviu a notícia na rádio. "Senti-me perdido. Era uma boa notícia, mas senti o tapete a fugir-me dos pés." Os que seguiam o tema tiveram ainda mais uma surpresa: Xanana passaria a regime de prisão domiciliária.

Marker defende que o volte-face "partiu exclusivamente de Habibie", que "abraçou o projecto" e "lançou esta jangada na tumultuosa corrente de liberdade que atravessava a Indonésia", escreve o mediador da ONU. Habibie queria ganhar capital político para se reposicionar na nova Indonésia, seguiu "genuínos sentimentos de humanitarismo" ou foi simplesmente calculista, consciente de que o custo de não mudar seria maior?

"Habibie é um engenheiro, uma pessoa prática", diz o chefe da diplomacia timorense, Zacarias da Costa. "Queria livrar-se de um grande peso para poder desenhar essa nova Indonésia." E estava bem rodeado, defende. "A sua conselheira Dewi Fortuna Anwar, uma mulher especial de uma nova geração, foi decisiva na mudança." Muitos defendem — incluindo Alatas — que a única razão que levou Habibie a aceitar a hipótese da independência foi não acreditar, nem por um segundo, que os timorenses não preferissem a integração na Indonésia. Em pouco meses, a "pequena fatia da humanidade" que há anos "pedia ajuda", nas palavras enfáticas de Marker, "espécie de florzinha de estufa", estava à beira de escolher o seu futuro.

Faltava ainda um último grande duelo. O da segurança no dia do referendo, em relação ao qual a ONU e Portugal aceitaram condições insatisfatórioas correndo riscos — com o aval de Xanana. E todas as partes práticas da "consulta popular". Havia que decidir quem votava, como era o boletim e como seria feita a consulta. "E foi então que vi a mais brilhante intervenção numa ronda negocial", conta Neves. Kofi Annan está a presidir e em frente, do outro lado da mesa, Gama e Alatas. O secretário-geral pergunta como acham as partes que se deve fazer a votação. Alatas começa e, como é seu estilo, "fala 12, 14 minutos, uma imensidão, e propõe que a ONU podia ir de carro, de aldeia em aldeia, ao longo de três dias, recolher os votos dos timorenses, e continua por ali cheio de pormenores", conta Neves. Quando se cala, todos esperam que Gama pegue na palavra e exponha a ideia portuguesa. Mas nada. Gama, que está em frente a Annan, olha serenamente algures para um ponto perdido, talvez a parede, talvez o tecto. Os segundos passam, o que nestas situações parecem horas. Até que Kofi Annan diz: "Ministro Gama, não quer dizer alguma coisa?" Gama explica então a teoria geral do escrutínio — algo como "primeiro as pessoas são recenseadas, depois as pessoas votam, depois os votos são contados" — e a seguir diz que a Indonésia vai em breve ter umas eleições em todo o país num só dia. "Não vejo porque a consulta em Timor não seja feita num só dia também." Alatas não disse mais nada.

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