Havia os fortes, havia os bonitos, e havia Wladimir Kaminer

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NUNO FERREIRA SANTOS

Primeiro criou as Russendisko, festas que quase 20 anos depois se tornaram míticas em Berlim. Depois começou a contar histórias e passou-as para livro. O escritor russo passou por Lisboa para apresentar Viagem a Tralalá.

Vindo de Moscovo, onde estudou engenharia de som para teatro e rádio, o russo Wladimir Kaminer (n. 1967) conseguiu que, poucos meses antes da queda do Muro de Berlim, a RDA lhe concedesse asilo humanitário e lhe desse um passaporte. Com a reunificação alemã, manteve a nova nacionalidade. Tornou-se conhecido em Berlim quando, nos anos 90, começou a organizar as Russendisko, festas bastante animadas em que, como DJ, passava música pop russa e ucraniana. Durante anos, manteve numa rádio alemã um programa popular, Wladimirs Welt [0 Mundo de Wladimir]. Entretanto, e desde 2000, publicou 18 livros de histórias - em que o burlesco e o pícaro das sociedades da antiga União Soviética, da Rússia e das comunidades dos emigrantes de Leste são retratados com ironia e muito humor. Com eles, tornou-se um dos autores de língua alemã mais lidos.

Kaminer passou por Lisboa para apresentar o livro Viagem a Tralalá (Tinta-da-China) e, claro, também para uma das suas míticas Russendisko, desta vez na Pensão Amor. Umas horas antes, falou com o Ípsilon.

Qual foi a importância das histórias na sua vida? Havia a tradição familiar de contar histórias?

A arte de contar histórias foi para mim uma estratégia de sobrevivência desde a escola, desde o jardim infantil. Havia crianças mais fortes, outras mais bonitas, e eu, que contava histórias. Nessa altura, cheguei a inventar a existência de um tio que eu dizia ser um apresentador de filmes ocidentais em sessões muito restritas para os membros do partido. E eu contava, esses filmes, inventados, aos meus colegas.

Quando decidiu ser escritor?

Com toda a honestidade: nunca quis ser escritor. Nem hoje [risos]. Mas tudo começou com um convite, em 1998, por parte de um grupo alemão, para eu fazer uma conferência num café sobre os cosmonautas russos, que eram milhares, apesar de terem sido poucos os que foram para o espaço. Eles tinham cidades só para eles e para as suas famílias, podiam fumar cigarros ocidentais, e tinham direito aos melhores enchidos [risos]. Os meus pais tinham uma casa de férias perto de uma dessas cidades, e em criança eu e outros trepámos a vedação e fomos ver como eles viviam. Foi essa história que eu contei na conferência, e as pessoas gostaram, acharam graça. Então o líder do grupo, e dono do café, que me tinha contratado, pediu-me para eu fazer outras conferências. Perguntei: e o assunto? E ele respondeu-me: não interessa. Foi assim que comecei a escrever.

Nos seus três livros publicados em Portugal [Militärmusik, Russendisko, e Viagem a Tralalá], escreve sempre sobre a realidade, sobre a sua vida ou a daqueles que se relacionam consigo. O que é que há de ficção naquilo que escreve?

Agora já me arrisco a exagerar, a modificar um pouco as histórias. Mas no início nem me atrevia a mudar os nomes. Tenho muitas vezes a sensação de que a realidade tem traços tão surreais e fantasmagóricos que não é preciso inventar nada. Não preciso da ficção. Vivemos todos numa grande história, que começou antes de nós e que se vai prolongar para além de nós. O meu papel como escritor - como contador - da minha pequena história é encontrar o meu lugar nessa história grande. Recorrendo a uma metáfora: quando no Éden as pessoas quiseram conhecer o mundo, foram expulsas para terem esse conhecimento que tanto ambicionavam; ao mesmo tempo tentaram fazer no mundo jardinzinhos à semelhança do Éden, mas o que conseguiram criar, em cada canto, foi sempre um pequeno inferno, com alguns traços paradisíacos, é certo. Mas não se podem confundir os infernos, não se pode confundir o inferno português com o alemão.

Quais são as diferenças?

O inferno alemão é um bocadinho como nas festas da Russendisko, escuro, apertado, cheio de gente suada. O inferno português é mais poético, é como a história de Ulisses e de Penélope: uma parte dos portugueses saiu do país e a outra parte ficou à espera. Portugal descobriu o mundo mas perdeu-se nele.

A sociedade russa tem mais histórias burlescas do que as outras?

Eu não queria generalizar. A Rússia é um país que se enfeitiçou a si próprio. Como a Bela Adormecida, que dorme, dorme, e não quer acordar. A Rússia tem uma história complicada. Enquanto outros países, como Portugal, se abriram ao mundo, a Rússia ficou a cozer no seu próprio caldo, e isso deu um resultado estranho.

Há já muitos anos que escreve em alemão. Alguns psicanalistas dizem que a nossa verdadeira língua é aquela em que sonhamos. Já sonha em alemão?

Se sonho com os impostos, sonho em alemão. Mas se sonho com o socialismo, só pode ser em russo [risos].

O humor é uma forma de disfarçar a melancolia?

É uma maneira de ultrapassar o trágico da vida.

A ideia de querer ser presidente da Câmara de Berlim, em 2006, foi séria ou uma brincadeira?

Não foi uma piada, foi uma provocação política consciente da impossibilidade. Queria chamar a atenção para algumas coisas, sobretudo o facto de que Berlim não pode ser apenas uma cidade para turistas.

Como é que vê a Berlim actual comparada com a dos anos 90, altura em lá chegou?

Há algo naquela cidade que faz com que ela se consiga reinventar quase permanentemente. Já mudou muitas vezes desde a queda do Muro. O próprio centro está em mudança constante, de um bairro para outro. Só uma comunidade humana flexível e aberta é capaz de sobreviver bem a isto.

Vive no bairro de Prenzlauer Berg quase desde que chegou a Berlim. Na altura, esse era o bairro dos artistas underground, da música, dos bares. Hoje é o mais trendy e um dos mais caros da cidade. Aqueles que na altura tocavam em bares ilegais hoje chamam a polícia se houver barulho depois das 10h da noite. Os artistas aburguesaram-se?

Os artistas que continuaram artistas, os verdadeiros, os que quiseram manter-se jovens, que recusaram ser adultos, mudaram-se para outros bairros. Quem ficou foram os outros, os que se tornaram advogados, professores, engenheiros. E isso, para além da intolerância e da arrogância, trouxe um aumento exponencial de restaurantes indianos no bairro [risos]... e de restaurantes mexicanos, cujos empregados indianos são os mesmos dos [restaurantes] goeses, mas usam agora bonitos sombreros.

Ver crítica de livros pág. 36 e segs.

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