O dia em que Sócrates pediu a Cavaco para o salvar da troika
Portugal esteve à beira do ataque de nervos nas horas que antecederam o pedido da ajuda externa. Sócrates, cada vez mais só e sob pressão, pediu a Cavaco que convencesse os banqueiros a comprar dívida, Carlos Costa mandava cartas secretas, Teixeira dos Santos agia por conta própria. Entre a tragédia e o drama, as loucas 72 horas que antecederam o pedido de resgate.
REPUBLICAÇÃO: texto originalmente publicado na edição de 1 de Abril de 2012 do PÚBLICO
Aquele foi um tempo estranho. É difícil imaginar ambiente mais explosivo. E, tão cedo, os protagonistas das 72 horas que anteciparam o pedido de intervenção externa a Portugal não os vão esquecer. Por razões diferentes, o país encontrava-se refém da acção de três homens: do primeiro-ministro, José Sócrates, do ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e do governador do Banco de Portugal (BdP), Carlos Costa. Só eles tinham os números, a informação e o acesso aos fóruns internacionais onde tudo se decide. Nos corredores de São Bento, no Terreiro do Paço e nas instalações do BdP, respirava-se tensão.
O primeiro-ministro recusava pedir o resgate, que, acreditava, teria um impacto na economia devastador. O ministro das Finanças tentava chamá-lo à razão. O governador do BdP alertava para o risco iminente de default. Havia, por isso, que actuar. Foi o que fez Teixeira dos Santos. Ao final da tarde de 6 de Abril de 2011. Pouco depois, o primeiro-ministro rendeu-se. Eram 20h38. As TV interromperam os telejornais para emitir aquela que, porventura, terá sido a declaração mais importante da vida política de José Sócrates.
Um dia, quando os documentos confidenciais ficarem acessíveis, saber-se-á com rigor por que razão o país foi forçado, pela terceira vez na sua história democrática, a procurar ajuda externa. Para já, é possível recuar um pouco no tempo e reconstituir o quadro de incerteza e dramatismo que se vivia.
Para muita gente, Teixeira dos Santos deveria ter agido um ano antes. A rejeição do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) IV, a 23 de Março de 2011, precipitou uma crise política em curso desde Outubro de 2010. Para Eduardo Catroga, do PSD, que negociou com o PS o Orçamento do Estado (OE) para 2011, é preciso retroceder seis meses, para compreender o resgate de Portugal.
Marcelo: FMI movimenta-se
Outubro de 2010. O contexto internacional deteriorara-se, com o resgate à Grécia e a crise na Irlanda a agravar-se. Em Portugal, as más notícias sucediam-se. O Governo estava sob pressão da UE. As negociações entre o PS e o PSD, para o PEC III, começaram no Parlamento e acabaram em casa de Eduardo Catroga, após vários percalços que minaram a confiança entre os líderes partidários.
“O Governo não sabia qual era o défice de 2010 e 2009, o que tornava evidente que Portugal ia pedir ajuda”, lembrou Catroga. Em Belém, o Presidente da República (PR) acautelava a segunda reeleição, agendada para Janeiro, e evitava acentuar as divergências com o partido no poder.
29 de Outubro. O Crédit Agrícole considerou que, dos seis países com problemas, Portugal apresentava a pior execução orçamental. Naquela sexta-feira, havia um debate para travar em Belém. O PR chamou, pela sexta vez, o Conselho de Estado. Eram 17h00 quando 18 dos 19 conselheiros deram entrada no Pátio dos Bichos para avaliar o quadro político. A reunião, convocada depois de PS e PSD terem rompido conversações, prolongou-se por cinco horas.
A situação era grave. Marcelo Rebelo de Sousa marcou presença. “Antes da apreciação e da votação do OE para 2011, tinham-se multiplicado os contactos indirectos, a partir de sectores europeus e internacionais ligados ao FMI, para nos sensibilizar para o endividamento externo, as contas públicas e para a premência da inflexão das políticas seguidas.”
9 de Novembro. Os juros da dívida a 10 anos quebraram a barreira dos 7% definida por Teixeira dos Santos como o valor a partir do qual Portugal devia pedir ajuda. O ministro sabia, agora, que à sua espera podia estar o impasse.
Viagem ao Médio Oriente
15 de Janeiro de 2011. 11h05. Sócrates procurava escapar à onda de choque dos resgates da Grécia e da Irlanda. Depois da China e do Brasil, parte para o Médio Oriente. Ao Qatar e aos Emirados Árabes Unidos levava um séquito de 60 pessoas, entre governantes, gestores e empresários. Naquele dia, o primeiro-ministro era a imagem do optimismo. Acreditava que não ia precisar de pedir o bailout pois arranjaria solução”, contou um membro da comitiva.
Sentado na primeira fila, Sócrates deslocava-se com frequência à parte de trás do aparelho, onde se encontravam os convidados, o que foi interpretado como uma tentativa de esconder o mau ambiente que existia entre ministros que viajavam à frente. Uma fonte empresarial que viajou no voo fretado reparou: “Havia uma frieza nas relações entre o PM e alguns ministros que se notou. Quase não falavam uns com os outros.” Enquanto se desdobra em diálogos com os convidados, Sócrates praticamente não dirige a palavra ao ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE), que está sentado ao seu lado.
17 de Janeiro. As notícias circulam. Há divergências na equipa ministerial a propósito do que está a ser negociado. Horas depois de Sócrates explicar que “a venda de dívida pública portuguesa a Abu Dhabi não foi discutida”, Luís Amado respondia: “Acredito que os ministros das Finanças tenham falado sobre isso [venda de dívida].” O desentendimento ficou reconfirmado na discussão viva que protagonizaram, em plena viagem, no Abu Dhabi, presenciada por membros da delegação.
Já havia sinais de que Amado, hoje chairman do Banif, estava em rota de colisão com Sócrates. O MNE defendera ao Expresso a possibilidade de a Constituição impor limites ao défice, o que o primeiro-ministro rejeitava.
DSK: ‘Ele não ouve ninguém’
19 de Janeiro. A visita ao Qatar e aos Emirados Árabes revelou duas realidades: os países exportadores de poupança não estavam disponíveis para comprar dívida nacional; e as relações na cúpula do Governo estavam estragadas. Sócrates já se encontrava em Lisboa quando, a meio da tarde, leu no Guardian: “Depois de chegar do Médio Oriente, Sócrates telefonou a Merkel desesperado, dispondo-se a tudo fazer para que não fosse necessário recorrer ao bailout”. O jornal relatava, ainda, que o director-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, estava ao lado da chanceler que o inquiriu. A resposta foi lapidar: “É inútil. Sócrates não segue nenhum conselho.” Daí a minutos, o Governo desmentia o Guardian.
São muitos os sinais que indicam que Teixeira dos Santos, nesta fase, já não descartava a hipótese da ajuda, mas recusava puxar a cavilha e provocar a solução extrema. “Tinha consciência e percebia o problema, e deixava isso claro nas reuniões. Mas não tinha força política para fazer fosse o que fosse. Queria sair dali, mas sabia que, se batesse com a porta, antecipava o resgate”, conta um banqueiro. “Só deu o murro na mesa quando não havia nada a fazer”.
O ex-ministro da Indústria de Cavaco Silva, Mira Amaral, presidente do BIC, alerta: “Alguém fechado no gabinete em São Bento, sentado frente a frente com um primeiro-ministro determinado, e ter de o enfrentar, não é para qualquer um. É um ambiente pesado.” Sócrates esqueceu-se “que não dominava as variáveis externas. Também Salazar, quando foi da guerra colonial, e como controlava tudo cá dentro, desvalorizou essa componente e deu no que deu.”
CE e BCE enviam missão
Início de Fevereiro. Os sinais de que vinha a caminho uma surpresa estavam aí. Datam, aliás, dessa altura, as intervenções do ex-secretário de Estado das Finanças, Costa Pina, junto da banca. Por via telefónica, ou cara a cara, pedia aos banqueiros que colaborassem com o Governo dando crédito às empresas públicas e comprando Obrigações do Tesouro. Garantia, assim, o sucesso dos leilões de dívida pública.
“José Sócrates vivia num mundo irreal, sem consciência de que o financiamento fácil tinha acabado e, mais mês, menos mês, teríamos uma crise de liquidez e de finanças públicas”, defende Catroga. “As Finanças talvez não tivessem consciência total do impacto do endividamento acumulado das empresas públicas (EP), nem a noção completa dos encargos diferidos das Parcerias Público-Privadas (PPP).”
Sexta-feira, 4 de Fevereiro. Bruxelas. O Conselho Europeu reúne para discutir o “pacto de competitividade” proposto pela Alemanha e pela França. A partir dali, a CE e o BCE passam a vigiar as reformas que vão ser implementadas na zona euro. Na capital belga, dizem que o novo esquema começará a ser implementado em Portugal e a seguir em Espanha. Teixeira dos Santos surge, nessa altura, a defender a criação, célere, do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), um mecanismo de ajuda aos Estados-membros. Mas a solução já dividia os europeus.
21 de Fevereiro. “Não defendo, nas actuais condições de acesso, o recurso ao FEEF em parceria com o FMI, porque as experiências da Grécia e da Irlanda correram muito mal.” Era isto que dizia, nessa manhã, Catroga ao Diário Económico. Uma missão chefiada por Jürgen Kröger (e Heinz Janse), da UE, e por Rasmus Rüffer (e Beatrice Pierluigi), do BCE, desembarcava, nessa segunda-feira, em Lisboa. Vêm ajudar o Governo a preparar um plano. Sem sucesso, como se constatará em breve. Kröger e Rüffer seriam depois indicados pelas instâncias europeias para a troika.
Portugal é tema de conversa no G20. Os europeus pedem a Lisboa que faça o trabalho de casa. A CE e o BCE, em particular, manifestam uma grande preocupação: evitar o terceiro resgate, por temerem o efeito dominó na Espanha e na Itália. Os dirigentes europeus estão, por isso, disponíveis para apoiar um programa que não caia na situação extrema da assistência com o FMI. A partir daí, os contactos entre Sócrates e os presidentes da CE, Durão Barroso, e do BCE, Jean-Claude Trichet, intensificaram-se. Olli Rehn articulava-se com o ex-ministro das Finanças. Carlos Costa recebia informação de Trichet e, de tempos a tempos, cruzava-se com o amigo Olli Rehn.
Sócrates mudara de planeta.
Início de Março. Em São Bento, havia uma revolução. Sócrates parecia ter mudado de planeta. Quem reuniu com ele, recorda-se que andava frenético a acompanhar a evolução das bolsas, dos leilões de dívida pública, das opiniões das agências de rating. “Mandara instalar um terminal da Reuters perto de si para seguir a par e passo os mercados”, notou um colaborador. Um quadro do Ministério das Finanças atesta que o primeiro-ministro “achava que as negociações com Bruxelas eram exageradas e queria um ajustamento suave. Em 2010, no PEC III, os cortes aos salários da função pública tinham sido feitos contra a sua consciência”. Governar com políticas de austeridade não era a sua praia. O método é conhecido. Em São Bento impera um slogan: “É inútil lançar medidas de austeridade para o triturador do mercado.”
Os dados divulgados a meio de 2011, pelo INE, revelam o descontrolo dos dinheiros do Estado: o défice de 2010 disparou para 8,6% do PIB (abaixo dos 9,1% apurados, daí a semanas, pela troika) e o de 2009 para 10%. A dívida pública supera, pela primeira vez, os 90% do PIB.
A nomenclatura socialista viu ali oportunidade de criticar o ministro independente. Dias depois, António Costa, na Quadratura do Círculo, faz menção à responsabilidade de Teixeira dos Santos na derrapagem das contas públicas.
Quarta-feira, 2 de Março. José Sócrates encontrou-se muitas vezes com Angela Merkel. Ambos assumiram funções de primeiro-ministro em 2005 e, em 1999, tinham os dois a pasta do Ambiente e juntavam-se nos fóruns internacionais. Os contactos activaram-se durante a crise.
Em Berlim, o primeiro-ministro garantia um défice em 2011 abaixo de 4,6% do PIB (ficou em 5,8% com medidas extraordinárias). Antes, tentou persuadir Merkel a aceitar um novo plano de austeridade, com o apoio de Bruxelas, mas que evitava a intervenção explícita. Os dois reuniram a sós, deixando à porta Teixeira dos Santos e o seu homólogo alemão. No final do encontro, Merkel mantinha o tabu sobre a flexibilização do FEEF.
Uma fonte do euro sistema lembra que, ao contrário de Barroso, de Rehn e de Trichet, a chanceler deu luz verde ao plano português com reticências. Para Merkel, os Estados-membros não se auto-regulam e tendem a ser tolerantes uns com os outros. Era preciso um polícia. O envolvimento do FMI gerava, todavia, controvérsia. Em Bruxelas, havia quem considerasse a solução humilhante. Uma divergência ideológica com a qual Sócrates concordava. De volta a Lisboa, o ministro das Finanças começou a preparar um plano com a CE e o BCE.
A ajuda já está a caminho
4 de Março. Os mercados de liquidez estavam a secar. Faria de Oliveira, Santos Ferreira, Ricardo Salgado, Fernando Ulrich, Nuno Amado chegam, nessa sexta-feira, a São Bento. Sócrates, Teixeira dos Santos e Costa Pina estão à espera e pedem aos banqueiros um esforço de apoio ao Estado na compra de dívida pública.
Conta Ulrich: “Fiquei com a convicção, pela forma como decorreu a conversa, de que tínhamos chegado ao fim da linha e já não íamos lá. Íamos pedir a intervenção, só não sabia quando, nem sob que forma.” Através de um plano formal, com o FMI, ou como queria Trichet (PEC IV).
“Era muito difícil, naquele período, aumentar o apoio à aquisição de dívida pública para financiar o défice nos termos em que estava a ser feita. Havia dificuldade em sustentar a situação”, explica Nuno Amado.
9 de Março. Garantida a reeleição, Cavaco manifestou desconfiança política no Governo.
“A UE atravessou-se”
10 de Março. Véspera da cimeira extraordinária da UE. No mais absoluto recato, o Governo fechou um acordo com os parceiros europeus.
Ao início da tarde, Barroso e Trichet confirmam que vão subscrever um texto a ratificar o pacote de austeridade. Em contrapartida, Sócrates assinará uma carta de intenções a comprometer-se a implementar as medidas propostas. Uma inovação.
As versões não são coincidentes. Pedro Silva Pereira, braço-direito de Sócrates, assegura: “O Governo exigiu que o BCE e a CE se atravessassem por escrito, pois queria que dessem uma garantia formal aos mercados de um apoio solidário ao PEC IV. E conseguiu.” Uma fonte da UE esclareceu que “Merkel e Trichet, como desconfiavam do empenho do Governo em levar por diante as reformas, exigiram que se responsabilizasse perante as instâncias europeias.”
“Sócrates anunciava medidas severas, mas não acreditava nelas. Ao mesmo tempo, defendia, nos discursos, o TGV, as auto-estradas, que geram défice externo e não capital reprodutivo”, notou uma gestor financeiro. “E achava que austeridade a mais criava um ciclo vicioso que agravava os problemas, o que, de certa forma, se está a confirmar.”
Em São Bento, há questões para resolver: o acordo com o BCE e a CE não deve aparecer como imposição de Bruxelas, mas como opção de política nacional (daí o PEC IV); a data de entrega do plano em Bruxelas. Ora, nos EUA, já se diz que Portugal não chega a Abril sem se ajoelhar. É preciso um sinal. As linhas gerais do PEC IV serão apresentadas, no dia seguinte, na reunião de chefes de Estado e de Governo.
11 de Março. Sexta-feira. Os portugueses são surpreendidos, às 10h00, por uma declaração de Teixeira dos Santos, a anunciar medidas adicionais para 2012 e 2013, articuladas com Bruxelas: cortes nas pensões acima de 1500 euros, mais impostos, políticas de flexibilização das rendas e do trabalho.
Horas depois, Merkel louvou a “coragem de José Sócrates”. Os presidentes da CE e do BCE “saúdam e apoiam” as medidas, que consideram uma “resposta política ambiciosa”. O braço-direito de Passos Coelho, Miguel Relvas, classificou como “positivo” “tudo o que seja reforçar” as metas orçamentais.
Os incidentes que envolveram as negociações para o OE para 2011, entre o PS e o PSD, estavam omnipresentes. Os relatos da época apontam, nas horas seguintes, para um cenário de rebelião no PSD. Marco António, o actual secretário de Estado da Solidariedade e da Segurança Social, impôs-se: “Ou há eleições no país, ou no partido.” O plano pouco ortodoxo corria, agora, o risco de ser chumbado. Mas Sócrates acreditava que, com o seu voluntarismo, ia conseguir resistir ao FMI até à entrada em funcionamento do FEEF, prevista para Junho. Mas teria Lisboa uma hipótese? O quadro político não gerava as condições necessárias para aplicar o programa, pois o PS governava em minoria e era fácil criar maiorias de bloqueio. Existia, ainda, um consenso negativo contra o primeiro-ministro visível na rejeição unânime do PEC IV.
PSD rejeita PEC IV
12 de Março. Pedro Passos Coelho informou que não aprovava o PEC IV. “O Governo negociou com a CE e com o BCE medidas que ocultou ao Parlamento e ao país. Esse foi o caminho errado que escolheu e que terá de justificar.” João Tiago Silveira, do PS, contra-atacou e aludiu ao braço-de-ferro que marcava a agenda do dia: “Ficou claro que a ideia lançada pelo PSD, de que não tinha sido suficientemente informado sobre o PEC IV, é falsa e foi desmascarada. Passos reuniu em São Bento”.
Já de madrugada, em Bruxelas, Sócrates lamentou a decisão do PSD. Mas, para a oposição, as suas motivações eram claras: recusar a ajuda do FMI; ganhar tempo até às eleições legislativas; preservar o poder.
“CE o BCE evitam resgate”
“Testemunhei que a CE e o BCE não queriam que Portugal fizesse um pedido de assistência financeira, igual ao grego e ao irlandês, e estavam empenhadas na aprovação do PEC IV”, explicou Carlos Costa, ainda que o BdP não tenha sido envolvido. Era Trichet quem o informava.
O número dois de Sócrates não duvida: “O apoio dado ao PEC IV [BCE e CE] significou uma recusa colectiva e solidária do cenário de ajuda externa para Portugal, pois havia uma alternativa, com garantia formal de apoio junto dos mercados.”
Para uma fonte próxima dos socialistas, “o momento exigia uma negociação política alargada e, até, envolta em grande dramatismo. Sócrates não podia ter actuado como se tivesse maioria absoluta, e tinha de estender a mão a Passos Coelho.” Prosseguiu: “Como não estava disponível para dar nada em troca, fez o oposto.” Se o PEC IV, “que, pessoalmente, até acho que deveria ter sido aprovado, era para ser tratado a sério, não foi”. Era táctica política, para colocar o ónus no PSD de um previsível recurso a apoio externo? “Se foi isso, então, erraram. Havia no PSD uma linha radical que considerava que não ia lá sem eleições e se devia deitar abaixo o Governo.”
Eduardo Catroga pergunta: “Qual era a obrigação do Governo, da UE e do BCE? Era procurar o PSD, que tinha viabilizado o OE de 2011, e dizer-lhes: ‘Vamos, em conjunto, encontrar uma solução’. Mas nem informaram o Presidente, nem obrigaram Sócrates a dialogar com o PSD.” E contou o que disse, na primeira reunião coma troika, a Kröger e a Rüffer: “A vossa avaliação que deu origem ao PEC IV (défice real em 2011 de 4,6%, de 3% em 2012, de 2% em 2013) não resistirá à análise fina dos mercados.”
Um economista do PS nota que “a recusa do PSD em aceitar as limitações aos benefícios e deduções fiscais e as alterações nas tabelas do IVA (que agora aprovou), no PEC III, implicaram uma perda de cerca de 500 milhões de receita”, decisão que “o Governo está agora a sentir.”
Daí a dias, o conselheiro de Estado Vítor Bento, através de um post intitulado Dúvida Metódica, observou que o plano levado à cimeira do dia 10 materializava uma ajuda financeira europeia encapotada, que “desencadeou” a crise política.
PEC IV cai, Sócrates sai
23 de Março. E, portanto, na quarta-feira, a oposição deixou cair o PEC IV. O curso de obstáculos estava lançado. Começava o frenesim. As agências de rating eram rápidas e metralharam a República. Instantes depois, Teixeira dos Santos participou a Sócrates: “O financiamento geral da economia está em risco e é necessário avançar já para o pedido de resgate.” Eram 21h00. Há conferência de imprensa em São Bento. Sócrates pede a demissão. Antes passou por Belém. Havia excesso de confiança, as sondagens eram, por ora, favoráveis ao partido do Governo. O método é conhecido. Sócrates partiu à ofensiva: vitimizando-se e responsabilizando a oposição de ter colocado a “recuperação da economia refém da sua irresponsabilidade”.
24 de Março. “O papel do Governador do BdP foi determinante na procura de soluções através da sua intervenção no BCE”, considera Faria de Oliveira. Habitualmente comedido, Carlos Costa circulava agora a 100 à hora.
Nessa quinta-feira, chamou os banqueiros. António de Sousa, da APB, avisou: “Cerca de 90%, ou mais, do total de dívida nacional está nas mãos da banca portuguesa.” Em simultâneo, o ainda director do departamento europeu do FMI, António Borges, movia influências. O mesmo fazia Carlos Costa. Os dois economistas surgem articulados a passar mensagens coincidentes aos conselheiros de Estado. É hora de pedir o resgate de Portugal.
25 de Março. Na cimeira europeia da Primavera, discute-se o fundo de socorro do euro. Há sempre uma primeira vez. Para o ex-primeiro-ministro, chegou no final de Março. Merkel faz uma demonstração de força e diz-lhe: a assistência a Portugal terá de envolver o FMI. Mas a intervenção externa, nos moldes actuais, teria de ser requerida pelo Governo, ou resultar de uma ruptura financeira.
Em Bruxelas, estavam atentos às declarações do primeiro-ministro português. Trichet comentaria, mais tarde, que Sócrates teve “um comportamento digno” e não entrou num “passa culpas” a justificar o chumbo do PEC IV.
Aproxima-se uma ronda de contactos ao mais alto nível. Marcelo Rebelo de Sousa testemunhou: “As movimentações regressaram na Primavera de 2011 e foram, desta vez, muito claras antes da tomada de decisão do Governo quanto à ajuda externa e subsequente intervenção da UE e do FMI.”
Eanes: “Nunca assinei nada”
26 de Março. O PR convoca o Conselho de Estado para daí a quatro dias. No Porto, na casa de Artur Santos Silva, chairman do BPI e futuro presidente da Fundação Gulbenkian, trabalha-se. O banqueiro mantém debates vivos sobre o futuro do país com Mário Soares, Alexandre Soares dos Santos, António Barreto.
O sentido da votação parlamentar, no plano doméstico, acelerara os contactos para a elaboração do manifesto: “Um compromisso nacional”. O documento, que teve a contribuição activa de Barreto e de José Pena Amaral, do BPI, foi subscrito por 40 promotores: ex-presidentes da República, cientistas, académicos, gestores, empresários.
Um manifesto cheio de valor político, pois, pela primeira vez, juntou Soares, Ramalho Eanes e Jorge Sampaio. O general comentou: “Nunca assinei nada, vou fazê-lo pela primeira vez.”
Para Santos Silva, vivia-se, então, “um dos momentos mais críticos da história do nosso tempo”. Perante a “incapacidade de os políticos portugueses se entenderem, quer a nível partidário, quer no plano institucional, apelámos a que fossem assumidos compromissos pelos principais partidos e com o apoio do PR”. Um exigia uma acção imediata: “Impedir a ruptura financeira do Estado”.
Santos Silva prosseguiu. “Queríamos que o Governo que se seguisse às eleições fosse apoiado por uma maioria inequívoca que construísse o maior consenso possível à volta da consolidação orçamental, do controlo da dívida externa, das reformas estruturais.”
Salgado fez-se ouvir
29 de Março. De Londres, nessa terça-feira, o presidente do BES ouvia-se. “O chumbo do PEC IV precipitou os downgrades das agências de rating sobre a banca. Quem diz que os ratings da República e dos bancos também cairiam se fosse aprovado não sabe o que diz, pois não é verdade. Basta ler os fundamentos das decisões das agências de rating.”
Uma fonte do sector explicou: “Salgado tinha consciência que, se o FMI chegasse a Portugal, a questão bancária ia saltar para cima da mesa, pois estudou o conteúdo dos programas na Grécia e na Irlanda e temia, ainda, o impacto recessivo na economia”. Salgado manifestava preocupação com o que se passava em Atenas e Dublin, com a fuga e a redução de depósitos e as maiores dificuldades de ajustamento.
Devia o PEC IV ter sido aprovado? Ulrich responde: “O diagnóstico era altamente incompleto e as medidas insuficientes. E o Governo não tinha apoio maioritário no Parlamento e não era credível.”
31 de Março. Quinta-feira. Em entrevista à TVI, Teixeira dos Santos afirma que tinha confiança de que não seria necessária assistência externa se o PEC IV tivesse passado. “Neste momento, não tenho esta confiança. Mas não será o Governo a pedir a ajuda, pois não tem legitimidade, condições ou credibilidade para ter a confiança das entidades externas.”
Já se sabe que a “mola” é sempre o dinheiro e a Portugal faltava o lubrificante. O cenário agudizara-se, repentinamente. As empresas públicas aparecem a dizer que não têm verba para pagar salários. Teixeira de Sousa via o desastre aproximar-se.
Anteviam-se grandes sarilhos. Por esses dias, começou a constar que o BdP se substituíra ao BCE, comprando títulos de dívida nas carteiras dos bancos. E Trichet aceitara a solução mediante garantia pessoal de Carlos Costa de que a acção era pontual.
BdP envia cartas secretas.
Primeiro de Abril. Era dia das mentiras, mas não para o governador, que enviou cartas históricas que vão assumir grande relevância, pois marcam o início do fi m de uma era. Uma foi dirigida ao Presidente da República, outra ao primeiro-ministro. Ao certo, só o redactor e os destinatários conhecem o teor. Mas, à luz do que hoje se sabe, é provável que os tenha alertado para as condições de financiamento da República e desafiado a actuar no imediato. As missivas foram, aliás, mencionadas em encontros que ocorreram nesse período conturbado. Uma alto responsável observou que “Carlos Costa entendeu que tinha a responsabilidade de chamar a atenção de Cavaco e de Sócrates e quis que a sua acção ficasse registada para memória futura.”
Sábado, 2 de Abril. José Sócrates garantiu que não está disponível para governar com o FMI.
4 de Abril. Há sinais que não enganam. Dez dias depois do chumbo do PEC IV, era o inferno. O Governo estava sob pressão das agências de rating, dos investidores, dos adversários, das sondagens, dos media. É provável que esta segunda-feira fique registada como a data que estabeleceu o limite a partir do qual deixou de ser possível prosseguir um caminho sem o FMI.
O corrupio começou às 10h30 da manhã. Faria de Oliveira, Salgado, Ulrich, Santos Ferreira e Amado dirigem-se às instalações do BdP.
É possível imaginar a cena. À porta do edifício, na esquina da Almirante Reis com a Febo Moniz, com escassos segundos de diferença, os cinco motoristas estacionam as “limusines” em fila indiana. Mau sinal. Os banqueiros sobem ao terceiro andar para reunir. Habitualmente contido, Carlos Costa mostra sinais de apreensão. Não é para menos. É provável que, naquela altura, fosse o único a ter no seu iPad a fotografia global. Expôs as necessidades de financiamento de 30 mil milhões de euros resultantes de não ter sido aprovado o PEC IV.
Havia harmonia de posições. “Não pedir ajuda não só ia afundar a República, mas também os bancos.” Todos ali estão conscientes de que a situação é crítica, com os juros da dívida nacional a escalarem os 11%. O momento exige novo encontro ao final da tarde. Este determinante.
“Comigo não haverá default.” 18h00. O cortejo de viaturas topo de gama converge agora para o Ministério das Finanças, onde o governador reúne com Teixeira dos Santos. Os cinco banqueiros entram para a sala contígua ao gabinete do ministro, onde vão estar Álvaro Aguiar e o secretário de Estado Costa Pina. O tom da conversa é grave. O mais sénior dos presentes, Ricardo Salgado, é conhecido pela fleuma que nunca perde. Nesse fim de tarde, é de todos o mais assertivo. A reunião é participada. Teixeira dos Santos interveio: “Comigo à frente das Finanças, não haverá default.” Antes de abandonarem o Terreiro do Paço, os banqueiros informam que têm entrevistas pedidas pela TVI e que as vão aproveitar para passar mensagens. Um deles confiará mais tarde: “Sinceramente, quando cheguei ao carro, apesar de ter percebido que ele [Teixeira dos Santos] estava determinado, não pensei que actuasse nos dias próximos.”
Quando deixam o Terreiro do Paço, têm uma certeza e muitas interrogações: como se convence o primeiro-ministro? O contexto das eleições legislativas vai influenciar a decisão? Será tomada a tempo, ou seja, antes da reunião do Ecofin, em Budapeste, no fim-de-semana? Receios justificados.
O ministro fala com José Sócrates, a quem verbaliza o que se passou no encontro com os banqueiros. E sugere-lhe que os ouça. Ficou combinado que Salgado, o decano, iria a São Bento. “Sócrates tinha apreço pessoal por Salgado, não só pelas suas atitudes, mas porque dava especial atenção às suas opiniões”, observou uma fonte ligado ao processo.
Na noite de segunda-feira, às 22h00, Carlos Santos Ferreira surge no écran da TVI: “Portugal deve pedir já um empréstimo externo.” No dia seguinte, à mesma hora, será a vez de Ricardo Salgado aconselhar o Governo a intervir.
Sócrates telefona a Cavaco
Dia 5 de Abril. Salgado é recebido por Sócrates, que lhe pede tempo para explorar hipóteses, antes de avançar para a solução extrema. Mas tempo é o que os banqueiros dizem não ter. É aí que Sócrates telefona ao Presidente da República a pedir que persuadisse o sector financeiro a continuar a comprar dívida pública. “O primeiro-ministro estava convencido de que era má vontade dos banqueiros”, conta um ex-colaborador, que até concorda.
As movimentações multiplicavam-se em Lisboa. Um dos encontros importantes ocorreu entre Mário Soares e Carlos Costa, a pedido do governador. Costa evocou o contexto dramático. Soares respondeu-lhe: “Amanhã pela manhã falo com Sócrates”.
18h00. Os banqueiros têm agora encontro marcado com Passos Coelho, a quem expressam “a absoluta necessidade de oposição e Governo estarem afinados numa actuação em defesa do Estado.”
Um dia muito intenso
Dia 6 de Abril. O dia em que Portugal requer assistência externa. Era seu dever dar sequência a um pedido do primeiro-ministro. Cavaco Silva chamou, individualmente, os banqueiros. E disse: cada um terá de assumir as suas responsabilidades e o interesse geral do país está acima de tudo. Explicou, mais tarde, que interveio a pedido do José Sócrates.
“O Presidente mostrava preocupação, estava informado da situação, mas não sei se tinha verdadeira consciência da insustentabilidade a que Portugal chegara nos últimos três meses”, contou um gestor que se cruzou com ele.
Num dos capítulos do livro Um Político Assume-se, Mário Soares relata “a discussão gravíssima” que manteve com Sócrates na manhã de 6 de Abril: “Eu queria que ele pedisse o apoio e ele não queria. Falei muito, durante muito tempo, duas horas ou três, discutimos brutalmente, mas amigavelmente [...]. O ministro das Finanças interveio mais tarde e acabou por ceder.” Soares destacou: “É preciso ter uma grande coragem para aguentar o que ele aguentou.”
Final da manhã de quarta-feira. A pressão sobre Portugal intensificava-se. Os investidores exigem juros de 9% para financiar Portugal.
15h00. Aproximava-se o fim. Teixeira do Santos foi almoçar com os secretários de Estado, naquela que, possivelmente, terá sido uma das últimas refeições em que terão estado juntos na qualidade de governantes. Costa Pina, Emanuel dos Santos, Sérgio Vasques, Gonçalo Castilho dos Santos ouvem o ministro: “Até ao final do dia, algo farei.”
As horas que antecederam a intervenção histórica foram de grande dramatismo. “Ele queria entregar a alma ao criador, pois estava convencido que de outra forma não se ia lá. Agiu isoladamente, sofreu só”, assinalou Francisco Bandeira, na altura vice-presidente da CGD. Teixeira dos Santos vivia com o dilema moral: seguir o comandante ou os princípios de economista e académico.
Não é, talvez, um momento que goste de relembrar. Sentia-se impotente quando pegou no auscultador para, uma última vez, se manifestar junto de Sócrates. “Não vou ao Conselho Europeu de Budapeste [que começava no dia seguinte] sem tomares uma decisão.” A velha cumplicidade perdera-se. Foi num quadro de desentendimento que os dois desligaram o telefone. O primeiro-ministro resistia. Um socialista explicou: “Ele continuava a acreditar que havia alternativas e sentia-se empurrado para uma solução que não queria, porque achava que ia agravar por muitos anos a situação do país.” Concede, todavia, que Sócrates “encarava essa via como uma derrota pessoal e temia o resultado eleitoral”.
“O que vai Sócrates fazer?”
16h00. “Teixeira dos Santos estava ferido pela incompreensão de quem não percebia que Portugal tinha chegado ao fim da linha. Foi um acto patriótico”, diz Bandeira.
Durante esse tempo, Carlos Costa viajava para Frankfurt, onde se reúnem, duas vezes por mês, os governadores dos bancos centrais europeus. Quando embarcou, durante a manhã, levava apenas a certeza: Portugal teria de pedir ajuda antes da reunião de Budapeste.
Já passava das 17h00 em Frankfurt. Menos uma hora em Lisboa, quando subiu ao piso 36 da Eurotower, onde fica a sala do Conselho de Governadores. Antes de iniciar a reunião, Trichet trocou palavras com o português: “O que vai José Sócrates fazer?”. Carlos Costa terá explicado que o ministro das Finanças está consciente de que deve actuar no imediato, mas não sabemos como vai reagir o PM.
Na grande mesa redonda, à direita de Trichet, está o vice-presidente do BCE, Vítor Constâncio, que sabia bem o que se estava a passar. Em 2010, num encontro privado, tinha chamado a atenção para a situação em que Portugal se encontrava, dizendo: “É mais complexa do que as elites antecipam.”
À esquerda, a cinco lugares de Trichet, sentado entre o italiano Mario Draghi, e Josef Bonnici, governador de Malta, Carlos Costa tem os olhos colados ao iPad. Espera por uma mensagem que não chega.
A quase dois milhões de quilómetros de distância, Teixeira dos Santos preparava-se para quebrar a fidelidade ao primeiro-ministro. Será ele a protagonizar uma das raríssimas ocasiões em que Portugal interessa ao mundo. Antes de pegar novamente no telefone, escreveu uma carta oficial a Sócrates a replicar o sentido da conversa que tinham tido antes. À semelhança do que Carlos Costa tinha feito dias antes, quis deixar prova para memória futura.
“As relações estão cortadas”
Depois, o ex-ministro ligou para a subdirectora do Jornal de Negócios, Helena Garrido. São 18h02, em Lisboa, quando o site económico reproduz declarações inesperadas que veicula em português e inglês. “É necessário recorrer aos mecanismos de financiamento disponíveis no quadro europeu em termos adequados à actual situação política. Tal exigirá o envolvimento de todas as forças e instituições nacionais.” José Sócrates reagiu logo de seguida através de um telefonema. Diz-lhe: “As relações estão cortadas.” Pouco depois, chegava ao iPad de Carlos Costa a mensagem esperada, e que talvez ainda guarde.
Portugal podia continuar mais tempo sem pedir assistência? Para Pedro Silva Pereira, a resposta é clara: “A ajuda externa só se pede quando é objectivamente incontornável e não há alternativas. Mesmo numa situação de pressão dos mercados, é preciso sempre ter em conta as consequências prolongadas na economia de um pedido de ajuda externa.” O que um PM faz “é perguntar às Finanças: qual é a perspectiva de colocar dívida nos mercados? A resposta condiciona a decisão.”
Por que razão Sócrates atrasou até ao último minuto a ajuda externa? Marcelo opina: “Um misto de voluntarismo convertido em teimosia, descolagem da realidade, confusão entre o desejado e o real, alergia a ouvir opiniões adversas ou notícias desfavoráveis. E, admito, cansaço.” Características que, para alguns, prevaleceram sobre a análise fria da situação.
“Dizer que Sócrates continuou a rejeitar e teimosamente a ajuda externa é distorcer a realidade. Não foi, ao contrário do que se pretendeu fazer crer, uma obstinação pessoal”, diz Pedro Silva Pereira. E defende que o pedido surgiu “no tempo próprio, em 15 dias, logo que se materializaram nos ratings e nos mercados as consequências dramáticas rejeição do PEC IV.”
Sócrates, a vítima da banca
Nos corredores de São Bento, viviam-se horas de fim de festa. O primeiro-ministro estava condenado a enfrentar a assistência externa. Conta quem ouviu: “Sentia-se encurralado, vítima da acção dos banqueiros, do BdP e de Teixeira dos Santos.” A tese da conspiração foi, aliás, replicada, a 2/12/2011, pelo deputado do PS João Galamba, na AR, o que motivou troca de galhardetes com Carlos Costa. “A noção que tive foi que o ministro das Finanças só actuou quando os bancos o informaram de que já não estavam disponíveis para emprestar, e foi isso que desencadeou o processo”, diz Mira Amaral. Faria de Oliveira garante: “Os banqueiros não tiveram qualquer perspectiva de deixar o país colapsar.” “O que determinou o bailout foi o chumbo do PEC IV, não o poder da banca, essa estava asfixiada”, refere fonte bancária.
“Como fico melhor a olhar...” 20h00. Sócrates deixara de ter condições de resistir ao duelo. Está prestes a dirigir-se aos portugueses quando a TVI inicia, inadvertidamente, a transmissão directa de São Bento. Antes de avançar para aquela que poderá ser a sua última grande intervenção, na qualidade de chefe de Governo, o primeiro-ministro dava uma vista de olhos ao local onde, minutos depois, pronunciaria o discurso histórico de cinco minutos. Aparece em mangas de camisa a apontar para os dois écrans transparentes, colocados à esquerda e à direita, que servem de ponto: “Como é que fico melhor a olhar...” A emissão é interrompida segundos depois, mas dá ideia do ambiente de desorientação.
E Portugal ajoelhou-se...
20h38. Era o gesto que muitos esperavam. Portugal declarava-se KO. Sócrates está frente a frente com os eleitores. Fala pausadamente: “Estou firmemente convencido, avaliadas todas as alternativas e depois de todos os contactos que fi z, que [a situação financeira] tenderá a agravar-se se nada for feito.” Está para chegar o recado: “Ao longo do último ano, lutei para que isto não acontecesse. A verdade é que tinha uma solução e ela foi deitada fora.”
“Foi uma vichyssoise”
Quinta-feira, 7 de Abril. Teixeira dos Santos, em Lisboa, e Carlos Costa, em Frankfurt, estão de partida para Budapeste. Nesse mês, os ministros das Finanças do euro realizam o encontro a que assistem os governadores dos bancos centrais.
Na capital da Hungria, a comitiva portuguesa janta. As luzes dos telemóveis não param de piscar, a avisar que há mensagens. Uma importante. O assessor de José Sócrates enviava a Álvaro Aguiar cópia da carta que o Governo dirigiu aos parceiros europeus. Teixeira dos Santos faz um breve comentário: “Os procedimentos não foram seguidos.”
Sábado, 9 de Abril. O episódio fala por si. O Expresso desse dia assinala dois factos. Um deles, é o manifesto Um Compromisso Nacional. O outro, respeita a um alegado almoço que teria decorrido entre Sócrates e o ministro das Finanças e onde foi decidido pedir ajuda. Foi então que se ouviu Teixeira dos Santos: “Se alguém me perguntar se é verdade, digo que foi uma vichyssoise [a refeição que nunca ocorreu e que Marcelo contou ter tido com Portas, onde foi servida uma vichyssoise].”
Braço-de-ferro com o FMI
Em Lisboa, a condução do pedido de assistência internacional gerava um braço-de-ferro. Uma fonte da esfera diplomática contou: “O primeiro-ministro pediu ajuda ao BCE e à UE e enviou para o FMI cópia da carta com o pedido de ajuda às instâncias europeias.” Na sequência, o FMI interveio junto da Embaixada de Portugal em Washington, que comunicou a Lisboa: terá de haver um pedido de assistência formal ao FMI.
Quem não ficou surpreendido foi Strauss Kahn. O mesmo responsável relatou um facto que ocorreu, “ou no final de 2010, ou já em 2011”. “Houve um contacto de Lisboa, a solicitar a Strauss Kahn que não deixasse António Borges ficar com responsabilidades sobre Portugal.” O BdP aponta para uma recessão de 3,4% este ano e a estagnação em 2013. Perante os números, quem garante que o PEC IV dispensaria o FMI?
Muitas perguntas, poucas respostas. Santos Silva expressou uma preocupação: “Hoje, como há um ano, é fundamental o Governo e a actual maioria procurarem consensos tão alargados quanto possível.” Ao cidadão comum, pouco mais resta do que cruzar os dedos.