Quando a Palestina era a sociedade mais desenvolvida do Médio Oriente
Maio, quando milhões de palestinianos assinalam a Nakba – palavra árabe para "catástrofe", como designam o seu êxodo forçado após a criação de Israel em 1948 –, "deveria ser uma promessa de Primavera mas é o mês mais cruel por carregar memórias amargas de uma perda que subsiste e da injustiça sofrida por uma nação", escreveu Hanan Ashrawi, professora de Literatura Inglesa na Universidade de Bir Zeit, na Cisjordânia ocupada, num artigo publicado pelo diário hebraico Ha'aretz.
O que se passou há 64 anos – a expulsão de “80 por cento” da população árabe da Palestina, onde mais de 400 povoações foram destruídas e inúmeras propriedades confiscadas durante e após a guerra iniciada por ambiciosos exércitos árabes que recusaram a divisão do território imposta pelas Nações Unidas – “não foi um desastre natural, e sim um plano detalhado de destruição levado a cabo com uma eficiência sinistra”, realçou a académica que hoje pertence ao Comité Executivo da OLP. “Foi o maior assalto e ameaça que a herança palestiniana jamais enfrentou e o início de um esforço deliberado para suprimir a narrativa palestiniana”.
Apesar de muitos historiadores israelitas já terem posto fim a “décadas de negação sobre o sofrimento palestiniano”, reconhecer a
Nakba, que os palestinianos assinalam anualmente a 15 de Maio, ainda é, para muitos judeus, “um processo doloroso”, admitiu Ashrawi, traçando um retrato até agora desconhecido da Palestina antes de 1948. “Era uma das mais sociedades árabes mais desenvolvidas, com uma das economias mais prósperas, sob o mandato britânico, e uma elevada taxa de escolaridade – só ultrapassada pelo Líbano. O comércio, as artes, a literatura, a música e outros aspectos culturais eram vibrantes na Palestina.”
Ashrawi, escolhida por Yasser Arafat para ser porta-voz da delegação palestiniana na Conferência de Paz de Madrid, em 1991, só depois de um líder espiritual muçulmano ter emitido uma
fatwa (édito) a dar essa legitimidade a “uma mulher cristã, casada com um músico e mãe de duas raparigas”, lembra-se que, entre 1911 e 1948, “a Palestina tinha 161 jornais, revistas e outras publicações regulares, incluindo o pioneiro Falastin, editado em Jaffa por Issa-al-Issa.” Também havia “dezenas de livrarias por todo o país que vendiam centenas de obras de autores palestinianos e estrangeiros, e eram incapazes de responder à procura. Livros como The Arab Woman and the Palestinian Problem, de Matiel Moghannam, líder feminista, e The Arab Awakening, de George Antonius, eram muito populares na Palestina, na Inglaterra, nos Estados Unidos e noutros países.”
Na Palestina, adianta Hanan Ashrawi ”havia um forte movimento de mulheres desde o início dos anos 1920 – mulheres que se destacavam em vários campos, designadamente, na educação, jornalismo e activismo político. Estas activistas foram as primeiras a exercer pressão pela autodeterminação palestiniana no início do mandato britânico”, que se seguiu ao colapso do Império Otomano.
Exílio e despojamento
Ao sublinhar que a educação “está enraizada na cultura palestiniana”, Ashrawi recorda ainda que, “em 1914, havia 379 escolas privadas na Palestina, incluindo a primeira escola para meninas, Al Moscobiye, em Beit Jala, fundada em 1858, e a Friends School, criada pelos Quakers em 1869 e que ainda permanece uma das mais instituições de ensino mais avançadas” na Cisjordânia.
No que diz respeito às artes, música e teatro, a professora palestiniana enaltece uma “criatividade sem limites e inspiradora”, com compositores como Yehya Al-Lababidi a colaborarem com cantores árabes famosos como Farid Al-Attrach, a lendária Umm Kulthoum e Mohamad Abdel Wahab, dando espectáculos frequentes para audiências palestinianas em Haifa, Jaffa e Jerusalém. “Os cinemas, de Gaza a Akka, exibiam todos os filmes da época.”
A
Nakba representou o fim de tudo isto, lamentou Ashrawi, e “o princípio de uma cultura de exílio e despojamento – ao serem expulsos à força das suas casas, os palestinianos perderam as suas propriedades, a sua história pessoal e os seus bens culturais. E isso incluiu milhares de livros. Só em Jerusalém Ocidental, 30 mil foram ‘recolhidos’ de casas palestinianas, tal como outros cerca de 50 mil de residências em Jaffa, Haifa, Tiberíades e Nazaré. Khalil Sakakini [poeta e académico cristão] foi um dos que perdeu toda a sua colecção, que hoje pode ser encontrada na Biblioteca Nacional de Israel, os livros marcados como AP – Abandoned Property [Propriedade Abandonada].”
Hanan Ashrawi recomenda que Israel “não tenha medo de reconhecer a
Nakba e aprender as lições da História, porque sem reconhecer a sua responsabilidade histórica, negando e distorcendo o seu papel nesta ‘catástrofe’, a paz não será possível.” O mesmo conselho é dado por Aziz Abu Sarah, um palestiniano que optou pela reconciliação e não pela vingança, na busca da solução de dois Estados, depois de o seu irmão ter sido morto pelo Exército israelita.
Ao fim de 64 anos, a
Nakba representa para milhões de palestinianos – os que vivem sob ocupação ou no exílio —, mas também a minoria que aceitou integrar um Estado que se define como judaico – “não é só um acontecimento histórico, mas uma ferida aberta”, afirmou Sarah na revista online 972mag. “A Nakba não acabou em 1948. Os palestinianos continuam a sofrer diariamente a separação de famílias, expropriações de terras [eram proprietários de cerca de 90 por cento] e a construção de colonatos”.
Dando um exemplo na própria família, Aziz conta que os seus pais viviam em Betânia, a cinco quilómetros de Jerusalém. Depois de 1948, não mais foram autorizados a residir na casa que haviam comprado. Tiveram de alugar um apartamento para poderem ter licença de habitação na cidade que dois povos reclamam como capital.
“No entanto, o colonato de Ma’aleh Adumin foi erguido a pouca distância da casa dos meus pais em Betânia”, lamenta Aziz. “É perfeitamente legal que judeus israelitas ali possam viver, mas não os meus pais. Cada vez que o meu pai atravessa os
checkpoints para regar o jardim que plantou e cuidar da casa vazia — não pode passar ali a noite —, volta a recordar a Nakba. Aziz queixa-se também que, apesar de vários historiadores israelitas terem provado que a Nakba “não é fruto de imaginação, mas uma verdadeira tragédia”, muitos em Israel “preferem tapar os olhos e fechar os ouvidos.”
Este jovem que convida judeus a dormir nos campos de refugiados e palestinianos a “descobrir o Holocausto” no campo de Auschwitz diz compreender a dificuldade em “conhecer a narrativa do ‘nosso inimigo’ e o sofrimento desse inimigo, sobretudo se isso se deve às políticas do nosso país. ”Também não foi “um caminho confortável conhecer a narrativa judaica e israelita”, admitiu Aziz. “A princípio, tudo em mim rejeitava a ideia e recusava a simpatia. No entanto, para haver paz genuína entre israelitas e palestinianos é preciso que isto aconteça.”
O que preocupa Aziz é que o Governo de Benjamin Netanyahu “não só ignora a História palestiniana mas também está a forçar os palestinianos a esquecerem a sua própria narrativa, ao proibir a comemoração da
Nakba”, com uma lei recém-aprovada no Parlamento. “Os judeus que vieram para a Palestina invocaram a nostalgia pela ‘terra santa’ durante milhares de anos. Como podem ignorar a nostalgia e o amor pela terra dos palestinianos que aqui viviam há 64 anos, muitos dos quais nunca mais a poderão visitar?”
Se a
Nakba é um passado de luto e um presente doloroso, também é futuro — porque este “pode ser mudado” —, descobrindo uma maneira de fazer a paz, acredita Aziz, director executivo do Center for World Religions, Diplomacy and Conflict Resolutions na Universidade de George Mason, nos EUA. Na segunda-feira, num sinal de que algo está a em mutação, cerca de 400 estudantes israelitas e palestinianos juntaram-se na Universidade de Telavive para lembrarem a “Catástrofe”. Enfrentaram a fúria de uns 200 radicais de direita. Na Cisjordânia, ao contrário do que aconteceu em 2011, foram mínimas as escaramuças entre manifestantes e soldados.
Aos que culpam os palestinianos por, em 1948, terem recusado o Estado que lhes foi proposto, o professor arménio Albert Aghazarian deixou esta lição: “Foi como se a casa pegasse fogo e um homem [judeu] tivesse ficado com a pele a arder. Esse homem salta da janela para fugir ao fogo e cai sobre outro [árabe] quebrando-lhe o pescoço. Este queixa-se e, ao fazê-lo, recebe o primeiro murro. ‘Não vê que a casa está a arder? Não vê a minha pele a arder?’, diz-lhe [o judeu]. ‘Mas o meu pescoço está a doer muito’, replica [o árabe]; levando outro murro, que lhe parte o braço. ‘Por que diabo fez isto? Que mal lhe fiz eu?’, insiste [o árabe]. Aquele que lhe quebra todos os ossos, um a um, vai repetindo. ‘A minha pele’ e ‘o fogo’. O homem que saltou da janela está determinado a não ver o outro, desejando que ele desapareça e se torne invisível.”