"A pintura não me chega"

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Albuquerque Mendes no seu atelier em Leça da Palmeira; em baixo: numa das suas primeiras performancesRitual, Os Três Dedos da Mão do Arco-Íris, no Porto, em 1977, e num Auto-Retrato de 1992 FERNANDO VELUDO/NFACTOS

Pintor e performer nascido na Beira Alta e fixado no Porto desde o início da década de 1970, Albuquerque Mendes tem uma obra marcada pela iconoclastia com que aborda temas como a religião, a saúde e a sua própria biografia. Começou a fazer "rituais" em 1974, e sempre entendeu a pintura como uma encenação litúrgica

Não é fácil entrar no atelier de Albuquerque Mendes, instalado sobre um grande armazém em Matosinhos, junto ao MarShopping. Mal se passa a porta, a acumulação de quadros, pastas, caixas, sacos, livros e brinquedos quase impede o acesso a este mundo mágico do artista em acção, rodeado por um mar de objectos. "Admito que isto é um bocado caótico, mas já me habituei, e sinto-me em casa", diz Albuquerque Mendes enquanto nos guia até a um canto, onde, a custo, conseguimos espaço para uma demorada revisitação à sua vida e obra.

O pintor, nascido em Trancoso em 1953, instalou-se neste atelier em Leça da Palmeira - onde também vive, mais perto do mar - em 1996. "Na altura, só havia campos à volta. Agora é isto: é como se eu tivesse adormecido e acordado década e meia depois... num bairro de Manhattan", comenta, referindo-se à densidade urbanística que agora caracteriza o lugar.

Para evocar a sua infância na Beira Alta, fez-nos subir ao mezanino do atelier, também pejado de armários, sacos com a recolecção dos objectos mais diversos - "tudo isto é para reciclar para as minhas obras" -, estantes e livros, com destaque para a banda desenhada que dourou a sua infância - "lia principalmente o Pato Donald e o Zé Carioca, que o meu pai mandava vir do Brasil; mas também li, nos anos da escola primária, Os 120 Dias de Sodoma, do Sade, e A Cartuxa de Parma, do Stendhal, que me impressionou muito, mesmo se eu não percebia muito bem o que aquilo era". Há também os brinquedos - ou melhor, o que resta deles - da infância dos seus três filhos.

Mas as diferentes camadas em que se vai acumulando o acervo afectivo do pintor contêm igualmente preciosidades bibliográficas, como as primeiras edições dos livros de Ana Hatherly - "Tenho-os todos, gosto de tudo o que ela faz" - e d"A Invenção do Dia Claro (1921), de Almada Negreiros, uma antiga edição ilustrada de Les Chansons de Bilitis, de Pierre Louÿs, ou o belíssimo volume com as sombras de Lurdes Castro (D"Ombres, Antuérpia, 1974) e o catálogo da histórica exposição Alternativa Zero, que José Ernesto de Sousa organizou em Lisboa em 1977, uma das primeiras em que Albuquerque participou.

Neste ano, o ainda jovem pintor e performer tinha já o nome associado à geração de artistas que vinham experimentando novas formas de expressão, desde o início da década de 1970. Tinha frequentado, de forma tão diletante quanto empenhada - "Sempre gostei de desenhar; sentava-me, pegava num lápis e desenhava naturalmente, de tal modo que o meu pai, ainda antes da primária, me comprou uma caixinha com seis lápis da Viarco, que ainda guardo" -, o Centro de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), no início dos anos 1970. "Tive aulas com o João Dixo e o Ângelo de Sousa, que foi talvez a mais importante influência na minha vida", diz, referindo-se ao pintor recém-desaparecido, que nessa altura dava aulas simultaneamente no CAPC, "às quartas e sábados", e nas Belas Artes do Porto. "Com ele era tudo muito intenso, em História da Arte mostrava um capitel romano e logo a seguir uma coisa do David Hockney ou uma obra que tivesse visto na Bienal de Veneza, mas, ao mesmo tempo, mostrava-nos O Couraçado Potemkine e os desenhos animados do Norman McLaren... Andava para trás e para a frente. Sempre tudo com slides a preto e branco - de tal modo que fiquei com a ideia de que a história da pintura era a preto e branco; mais tarde, quando vi as peças na realidade, foi uma surpresa" (risos).

Viagens a Paris e Londres

João Dixo foi também "muito determinante" para Albuquerque, até porque vivia em Coimbra e "estava mais presente, mais perto dos alunos, com mais companheirismo". Foi Dixo que o guiou, e aos seus colegas, em três visitas em anos consecutivos, a partir de 1970, pagas pela Gulbenkian, a Paris, Londres e Amesterdão, esta já também com Alberto Carneiro, que entretanto tinha substituído Ângelo de Sousa no CAPC. "Fomos ver o Louvre, as galerias; foi um flash na minha vida; em Londres vimos uma exposição de pop art com o Warhol e o Hockney, na Royal Academy, e em Amesterdão o Malevich..."

Em 1972, Albuquerque fixa-se no Porto para estudar Engenharia Civil, tendo passado depois para Engenharia de Minas, com o serviço militar pelo meio. "Mas não deu para acabar o curso, não era ali que eu me via." Nos primeiros meses de 1974, curiosamente pela mão de Ernesto de Sousa - cuja importância valoriza principalmente pela sua dimensão de "teórico da arte" - e de Ângelo de Sousa, Albuquerque realiza as suas primeiras intervenções e exposições. À primeira, que realizou em Coimbra, em Janeiro, integrada na celebração promovida por Ernesto de Sousa no CAPC, 1000011º Aniversário da Arte, designa-a mais como "uma atitude artística": durante uma semana fez centenas de flores de papel em que escreveu a frase "A arte é bela, tudo é belo", meteu-as em vários sacos de serapilheira e começou a distribuí-las no eléctrico, no comboio e na rua, na viagem entre o Porto e Coimbra, até entrar com as que sobraram no CAPC sobre um tapete que desenrolou para si próprio, "como se fosse uma carpete para o cinema".

Em Março desse ano fez a primeira individual na Cooperativa Árvore, no Porto, com aguarelas colocadas na parede, sem molduras. E em 1975, em Viana do Castelo, dá início às suas performancesRitual - "foi no ano em que o Artur Barrio [o pintor portuense radicado no Brasil que actualmente tem uma instalação em Serralves] também lá esteve", recorda. Saiu da igreja matriz, vestido como se fosse celebrar uma missa, acompanhado por um "sacristão" que tocava uma sineta; associando os símbolos cristãos (os pregos, a cruz, o martelo) com os das artes plásticas (a tinta, os pincéis, a paleta, o quadro) percorreu as ruas até à marginal do Lima. "Houve pessoas que se ajoelharam à minha passagem."

Encenações litúrgicas

Em paralelo com as exposições - integrou o Grupo Puzzle (1976-1980) e em 1982 fundou, com Gerardo Burmester, a associação Espaço Lusitano -, Albuquerque foi repetindo estes rituais (Póvoa de Varzim, 1977; Porto, 1977 e 1997; Torres Vedras, 1985; Madrid, 2007) e reencenando a sua iconoclastia de uma forma sempre teatral e litúrgica. "Eu sempre gostei do teatro, das procissões e das feiras, e sempre tive uma enorme facilidade de me fazer transportar para outras personagens", diz o performer, que chegou a frequentar um curso de teatro dirigido por Mário Viegas em Coimbra. E acrescenta, a justificar essa necessidade de apostar em diferentes formas de intervenção: "A pintura não me chega; quero fazer mais qualquer coisa, fisicamente, para assinalar a sua existência, quase como um marcador a sublinhá-la."

Esta dimensão cénica da pintura, que "Albuquerque sempre utilizara numa dimensão iconoclasta, desde os seus "ex-votos", reminiscentes de uma religiosidade popular, até aos seus retratos de freiras, surge agora transfigurada no exercício da pintura como um ritual de transubstanciação", escreve João Fernandes no catálogo que acompanhou a exposição retrospectiva do artista no Museu de Serralves, em 2001, com o título Confesso.

À religião e aos ícones da cultura popular e urbana - a galeria de personagens das suas narrativas incluem soldados, freiras, cocottes, dandies, toureiros, senhoras da sociedade, além dos sucessivos auto-retratos - associa-se também o tema da saúde, a partir de dada altura. É um caminho de depuração progressiva, visível, por exemplo, na sequência de exposições como Aguarelas do Hospital (Braga, 1993), No Jardim das Oliveiras e Sete Pecados Mortais (Porto, 1997), Via Sacra (Recife e João Pessoa, 1999 - Brasil, país que visitou pela primeira vez em 1988, ao qual regressaria com regularidade e que viria também a ter influência marcante na sua obra), que desagua no minimalismo espiritual da instalação Making of/A Criação, que apresentou em 2010, em Roma, na Igreja de Santo António dos Portugueses.

Albuquerque confessa que "há uma depuração do próprio pensamento, que também tem a ver com a velhice - para o ano já faço 60 anos", nota. E admite a contaminação da sua obra pelos sucessivos problemas de saúde que o têm afectado na última década e meia. "Acho que purifiquei a minha pintura, também porque passei a ter a consciência de que tudo é finito e relativo."

No próximo dia 8 de Junho, Albuquerque Mendes inaugura uma nova exposição no Porto, na Galeria Nuno Centeno, com título escrito em dinamarquês, significando No Dia em Que o Homem Caiu do Céu, na Dinamarca. "Nunca visitei este país, a não ser pela escrita do Shakespeare", diz. A exposição vai dialogar com a arte da filha Beatriz, que desde ontem expõe fotografia no mesmo espaço na Rua de Miguel Bombarda, sob o título Um Poeta em Nova Iorque (seguindo o rasto de García Lorca). Ambos farão uma performance, Changes, a 2 de Junho, na Nuno Centeno. É uma espécie de "passagem de testemunho" artística e familiar de uma herança que Beatriz certamente também bebeu no atelier do pai em Leça da Palmeira. De onde também é difícil sair - continuaríamos lá outro par de horas a ver e ouvir as histórias de Albuquerque Mendes.

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