Ao segundo álbum, "Father Creeper", apanhamos Spoek Mathambo obcecado com o tempo: com saudades de quando os discos duravam um mês, a achar que as suas canções não seriam diferentes nos anos 60 e a recusar que a sua música seja fatalmente de hoje. E, no entanto, é a isso que soa
Chegava a tua casa, levava o teu filho adolescente, afogava-o na estação de polícia e atirava-o do 17º andar de um edifício. E não daria origem a qualquer investigação". Do outro lado do telefone, algures na África do Sul, Spoek Mathambo não está a ameaçar-nos. Não está a especificar com detalhada malvadez aquilo que faria se estivéssemos a uma distância razoável. Está, pelo contrário, a tentar explicar o porquê de este momento histórico não ser tão tenebroso quanto o pintam. Para quem possa acreditar que o homem não é um ser tendencialmente violento, lembra que para ver acontecer esta descrição à sua frente "não é preciso olhar mil anos para trás, basta olhar para a África do Sul de há 30 anos". Este cenário selvático e anárquico que lhe sai da boca não é por isso uma obra de ficção, uma distopia fabricada há menos de meio século por Philip K. Dick ou William Gibson. Na verdade, era disso que estávamos a falar, da presença destes autores na música de Spoek e de como, às tantas, houve quase uma justaposição entre a ficção desta gente e a realidade em que mergulhámos. O discurso leva-o para aí, pelo medo que se tornou quase palpável. Mas Spoek, de repente, corrige o tiro: "Venho de um passado tão assustador que o futuro do Philip K. Dick não é assustador para mim".
Este medo, do agora e do que vem para lá da próxima esquina, é na opinião de Spoek injustificado e assenta numa ausência de perspectiva histórica. "Em muitos sentidos estamos melhor", defende. E vai desenterrar o termo de comparação lá longe, quando Jesus Cristo ainda pisava a Terra. "Temos uma perspectiva estranha sobre o que é assustador. Se pensarmos que há 2 mil anos as pessoas eram repetidamente apedrejadas até à morte, dadas de comer a leões, decapitadas, as raparigas eram sacrificadas... Isto sim era assustador. E não me parece que aquilo que estamos a viver actualmente seja tão terrífico quanto estas realidades". Mas apesar de carregar na perspectiva histórica até que o presente apareça subitamente desfocado, Mathambo quer expurgar as reacções mais dramáticas à actual crise económica, social e demográfica mas não ignorar a sua origem (e o seu possível fim). "Por muito civilizados que tentemos fingir ser", admite, "somos fundamentalmente incivilizados, bestiais e selváticos. Somos animais".
Spoek zangou-se depois com o futuro quando a cultura popular substituiu distopias apocalípticas por Michael J. Fox a passear-se numa hoverboard. A inevitabilidade é, no entanto, a mesma: a Mattel prepara-se para produzir essas variações de skate que dispensam as rodas. Quando pensa nestas coisas, confessa ouvir uma voz grave de narrador de ficção científica a anunciar "a idade do espaço, o futuro, usando botas prateadas e um fato prateado". Mathambo desistiu. Agora fica-se pelo presente. Com saudades do passado.
Um disco por mêsSpoek Mathambo não tem muitos anos. Tem 24. Os suficientes para se lembrar de um tempo pré-internet, uma adolescência em Joanesburgo em que a mesada lhe permitia comprar um CD por mês e, portanto, investir a sério nesse disco. Investimento não apenas monetário, mas emocional. Claro que depois havia as trocas de cassetes na escola, mas transformar a mesada em música implicava escolhas cuidadas, mesmo que pontualmente erradas. "Nessa altura sabia as letras todas porque era o meu álbum durante um mês inteiro até voltar a receber a mesada e comprar outro. E quando comprávamos um disco errado tínhamos de nos forçar a gostar, porque estava ali todo o nosso dinheiro". Agora, em vez de uma cassete passam-lhe discos rígidos com 500GB de música, liga o computador e no Spotify tem "milhões de álbuns na ponta dos dedos que podem ser ouvidos a qualquer hora". "Oiço um par de coisas apressadamente se gostar... Tudo é muito inconsequente, é uma overdose de informação".
Esta overdose é identificada por Spoek em dois sintomas muito concretos e igualmente reveladores de uma incapacidade de ficar muito tempo no mesmo lugar: "a forma como nos relacionamos, mantendo milhões de páginas abertas na internet, e como vagueamos pelo iTunes sem conseguirmos ouvir um disco inteiro". Tal dispersão vem obviamente acompanhada de uma incapacidade de baixar os níveis de impaciência e ansiedade perante a imensidão de possibilidades ao nosso dispor. E o rapper - designação por aproximação - sul-africano diz-se até meio zonzo ao pensar que "numa hora da nossa vida absorvemos mais informação do que um homem das cavernas apreenderia em toda a sua vida". "Isto", sem espanto, "afecta a forma como nos relacionamos com tudo".
Ao ouvir-se Father Crepper, segundo álbum de Spoek Mathambo, a tentação é interpretar a sua música fractal, feita de retalhos dos mais variados géneros, como herdeira desta forma de o cérebro fazer conviver uma quantidade obscena de informação e não se queixar. Mas, neste ponto, Mathambo desliga-se do tempo e coloca-se à parte. Não quer integrar um padrão contrário à sua forma de viver a música. E refugia-se na crença absoluta de que as suas canções não seriam assim tão diferentes caso tivesse vivido "nos anos 70, nos 60 ou até nos 20". Em espírito, entenda-se. Devido a uma razão simples: "as canções nascem de uma fonte mais pessoal do que intelectual".
"É uma treta", continua, achar-se que hoje há uma maior propensão para a queda de muros e fronteiras entre géneros musicais, numa quase pulverização das categorias clássicas. Por muito que Spoek soe simultaneamente a rock, kwaito, r&b, pop e hip-hop, diz tratar-se sobretudo de um traço de carácter: "Alguém como John Coltrane não se baseava apenas no jazz - percebe-se o seu interesse nos blues, na música clássica indiana e na música africana. Ele usou esses elementos para enriquecer a sua música. George Harrison também trabalhou com essa postura". Do "Beatle apagado" Mathambo saltita para a desconstrução estilística proposta pelo hip-hop e daí para Prince. "O Prince é aquele artista pós-moderno em que num minuto pode ser Count Basie e Duke Ellingon a fazer o Take the A Train e no minuto seguinte pode ser George Clinton e James Brown, pode ser punk rock e tudo o mais. Acho que me insiro numa linhagem de gente que se interessa por uma série de fontes diferentes e procuro uma essência que me seja pessoal no meio de toda essa informação".
De tal forma que diz não querer se apanhado desprevenido pela morte. Daí que, mais cedo do que tarde, queira fazer a sua "balada épica foleirona" e outras coisas que possam ser popularmente t idas como embaraçosas. "Sou o tipo de pessoa que diz muito mais vezes ‘sim' do que ‘não'", resume. E também não vive martirizado nem enfia a cabeça nas mãos levado pelo desespero de achar que a música está esgotada e não há nada de novo a fazer. "A combinação complexa de factores que fazem de ti quem és, quer sejam factores culturais ou geográficos, nunca aconteceu na história do universo e é isso que faz que surjam coisas novas. Nunca houve outro artista em todo o planeta como eu, de onde venho, vindo como eu venho".
O sítio de onde vem, literalmente, só agora o começa a descobrir. Spoek sentia-se desprezado quando deixou a África do Sul e andou a viver um pouco por todo o mundo. Ao Guardian dizia em 2011 que tinha regressado em modo Macbeth, "como o jovem príncipe que queria matar o pai e apoderar-se do reino". "Queria reclamar o meu estatuto de ‘merda mais excitante do momento'", diz-nos. Assim como na capa de Father Creeper temos um arranha-céus, "uma ideia de futuro que é uma imagem baça, e aquilo que vemos é um reflexo do passado que vamos queimando", também Spoek metodicamente o seu passado: para eliminar dores e fraquezas.