"Vem tudo misturar-se num filme do Manoel de Oliveira"
Com quase meio século de actividade no mundo do cinema, foi nos bastidores dos filmes de Manoel de Oliveira que Júlia Buisel construiu o essencial da sua biografia artística. Vai agora contar muitas das histórias que viveu num livro, Antes Que Me Esqueça
Na tarde de quarta-feira, logo que entrámos na casa de Júlia Buisel, em Lisboa, várias fotografias na estante da sua sala de estar nos chamaram a atenção, e, entre elas, uma em especial, que a mostra jovem, bela, sorridente... "Sou eu no Belarmino, do Fernando Lopes. Foi depois de não ter sido escolhida para fazer Os Verdes Anos do Paulo Rocha..." O telefone toca, alguém dá a Júlia Buisel a notícia da morte do realizador de Belarmino (1964).
Após um momento de silêncio, a improvável actriz do Cinema Novo português desfolha as memórias desse tempo, aos vinte e poucos anos, quando o cinema lhe surgia como uma possibilidade de carreira que inicialmente tinha imaginado poder passar mais pelo teatro - até porque tinha debutado aos 15 anos com Amélia Rey-Colaço, no Teatro Nacional, no elenco de As Bruxas de Salém! (1956)...
Quando Júlia Buisel, uma algarvia nascida na Praia da Rocha, em 1939, surge na Baixa de Lisboa com a sua juventude a atrair a atenção do pugilista Belarmino Fragoso, o cinema era-lhe já familiar. Tinha-se estreado, um ano antes, num papel secundário em Pássaros de Asas Cortadas (1963), de Artur Ramos. "Foi um amigo meu, o pintor António Botelho, que me disse que o Artur Ramos estava a fazer uns testes para o filme, e eu decidi tentar. Acabei por não ser escolhida para o papel principal - que seria feito pela Lúcia Amram -, porque parecia demasiado nova, disseram-me." Mas seria chamada uma semana depois, para fazer outra personagem, "a ingénua, loirinha e magrinha".
Esse episódio acabaria por condicionar o modo como Júlia decidiu candidatar-se, logo a seguir, ao papel principal do primeiro filme de Paulo Rocha, a Ilda de Os Verdes Anos. A aspirante a actriz diz que foi Artur Ramos quem a indicou ao jovem realizador, tinham ambos estudado no IDHEC (Instituto Superior de Estudos Cinematográficos), em Paris. "Quando soube que era alguém que tinha estudado em Paris, quis preparar-me: fui ao cabeleireiro e apareci no casting toda arranjadinha. Nem passei da porta; o Paulo viu-me e disse logo que era uma mulher muito sofisticada para o papel da criada..."
Fernando Lopes ainda perguntou a Júlia se ela não quereria insistir, dizendo que tinha sotaque algarvio e que podia muito bem fazer uma criada de província. "Disse-lhe que não, que não queria cunhas. Não teve que ser, não foi". De resto, Júlia Buisel diz ter percebido, quando depois viu o filme que viria a marcar o Cinema Novo português, que "nunca seria uma actriz como a Isabel Ruth" - que ficou com o papel de Ilda -, que considera "a maior actriz de cinema da geração dela".
Júlia Buisel acrescenta, também, que nunca se interessou por ter "uma carreira". "Sou um bocado dispersa, estou sempre a saltar de umas coisas para as outras..."
A sala de estar da sua casa é um bom mostruário dessa dispersão. Mas é também o testemunho documental de uma carreira, apesar de tudo - e que conta já quase meio século. Tem rádios e relógios antigos, peças de arte sacra e de artesanato - "já gostei mais de bonecos de barro, agora já me aborrecem, dão muito trabalho a limpar". Tem fotos de Che Guevara e bustos da República - uma referência ao ideário da família, e em especial do seu avô paterno, José Negrão Buisel (1875-1954), um anarco-sindicalista de origem germano-franco-catalã, que viria a deixar marca em Portimão, onde fundou um colégio (e onde a actual Escola Básica ostenta o seu nome), e depois também no Monte Estoril. Júlia mostra, orgulhosa, uma carta que o avô lhe escreveu em 1948, quando se encontrava internado no Hospital do Desterro, "sempre com dois pides à cabeceira", e que assumiu como ideário para a sua vida, também bebido nas lições de Agostinho da Silva: "O ter atrapalha muito, as pessoas ficam escravas e perdem a liberdade." Daí que Júlia defenda que uma pessoa só deve ter o suficiente para viver, algo que tem perseguido também com empenhamento político e partidário, "sempre na Esquerda".
A script-girl de Oliveira
O cinema - depois de uma passagem profissional pela RTP, que incluiu a experiência de anotadora do Zip-Zip (1969), de onde ficou a amizade especial com Raul Solnado e Zeca Afonso - acabaria por se tornar a carreira de Júlia Buisel. Não já como actriz, apesar de ter continuado a aparecer esporadicamente à frente das câmaras, mas nos bastidores. E se foi no Kilas, o Mau da Fita (1977), de José Fonseca e Costa, que se estreou como script girl, seria como colaboradora fiel de Manoel de Oliveira que Júlia Buisel haveria de firmar a sua biografia cinematográfica. Regista já três dezenas de colaborações (incluindo teatro) com o realizador portuense - é mais de metade dos filmes que "anotou", numa carreira em que trabalhou também com Paulo Rocha, António Campos, António de Macedo, Luís Galvão de Teles, Artur Semedo, Luís Filipe Rocha, e ainda Raul Ruiz e Barbet Schroeder. Como anotadora e também como produtora, assistente de realização, guarda-roupa...
A relação com Oliveira iniciou-se na rodagem de Francisca (1981), logo seguida de A Visita ou Memórias e Confissões (1982), o filme que permanece inédito, e que o realizador fez para ser mostrado só após a sua morte. "Tenho comigo o guião, que naturalmente não lhe vou mostrar", diz Júlia, apontando para uma prateleira onde guarda os testemunhos - folhas de serviço, fotografias, objectos, peças e documentos de produção... - destes anos todos de actividade.
Muitas destas peças vão agora ilustrar as histórias dos bastidores do seu trabalho no cinema, que Júlia Buisel conta num livro a ser editado pela associação Il Sorpasso (Ultrapassagem, título do filme de Dino Risi), que organiza a Festa do Cinema Italiano. "Escrevi este livro por insistência do Paulo Rocha [com quem fez recentemente a longa-metragem Se eu fosse ladrão roubava, ainda à espera de estreia], que me dizia que eu devia contar estas histórias, que ficam a marcar uma época do cinema que está a acabar." Depois de ter contactado meia dúzia de editoras, que lhe responderam que estas histórias "só interessavam a uma minoria", Júlia encontrou a saída nesta associação italiana em Lisboa, que vai editar o livro, com o título Antes Que Me Esqueça, em Portugal e em Itália.
Nele poderão ser lidas histórias como a da equívoca entrada de Leonor Silveira na trupe de Manoel de Oliveira. "Foi por causa de uma troca de cassetes", diz Júlia. A jovem Leonor, de 17 anos, candidatou-se ao elenco d"Os Canibais (1988), e para isso foi a uma entrevista, gravada pela script e pelo assistente de Oliveira, Jaime Silva. "O Manoel tinha-nos pedido apenas jovens morenas. Como nos apareceram muitas loiras, não quisemos mandá-las embora, e fizemos as gravações em cassetes diferentes. Quando a Leonor chegou, a cassete das loiras já estava cheia, e nós gravámo-la na das morenas." Oliveira visionou a cassete, fixou-se no rosto de Leonor Silveira e não quis mais saber das morenas...
É também à volta das recordações das rodagens com Manoel de Oliveira que orbitam figuras como Catherine Deneuve, Michel Piccoli, John Malkovich, todos lembrados em Antes Que Me Esqueça. A diva do cinema francês, um dia, convidou Júlia para jantar, no início da rodagem de O Convento (1995), na Arrábida: "Ninguém nos apresentou, eu sou a Catherine Deneuve", disse-lhe a actriz. E passaram a jantar juntas, regularmente. "A Catherine Deneuve é uma vedeta, com uma carreira e um estatuto que lhe dão o direito de não ser incomodada", nota Júlia, contestando, no entanto, a ideia de que se trata de uma personagem de contacto difícil. "Só posso dizer que é simpatiquíssima."
Já Piccoli é outra coisa. "Ele não é uma vedeta, é um actor. Dele posso dizer que sou amiga, apesar da distância. Escrevemo-nos com regularidade. Ele tem muito humor e gosta de pregar partidas." E Júlia mostra uma pasta com uma série de fotografias, papéis, guardanapos com "recados" que o actor francês lhe envia regularmente durante as rodagens.
E John Malkovich? "Tem aquele olhar um bocado assustador, mas é muito interessante", diz, lembrando que, durante a rodagem de O Convento, o actor americano passava o tempo a apanhar bolotas e a pintá-las para levar para os filhos. "Ele é de uma enorme doçura. Só mais tarde é que falámos muito os dois, e discutimos política. Ele defendia o Bush, dizendo que o achava uma pessoa inteligente. Apesar disso, descobrimos muitos pontos em comum."
E Manoel de Oliveira, com quem "o início foi um bocado difícil", é, para Júlia Buisel, o centro desta vida toda. "É como se ele fosse a própria história da história do cinema. Vem tudo misturar-se num filme de Oliveira, parece que tudo converge nele e diverge dele."