No olho do furacão Katrina

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PEDRO MAIA

A realidade ajuda a escrever, diz Laurent Gaudé. Em Furacão, romance que parte da tragédia do Katrina, quis abordar a fidelidade, nos momentos em que a vida vacila.

Laurent Gaudé tinha 32 anos quando recebeu o Prémio Goncourt 2004 pelo romance O Sol dos Scorta (ASA). Depois de ter sido distinguido com o mais prestigiado prémio francês ao terceiro romance, o jovem escritor meteu-se ao trabalho, como sempre. Passou quase uma década e, ao olhar para trás, afirma que recebeu o Goncourt como se fosse um ticket para fazer o que queria. "Passei a viver da escrita, o que me deu muita liberdade quanto ao ritmo de trabalho. Se preciso de dois anos para reflectir sobre um livro, tenho esse tempo", diz o escritor e dramaturgo francês que esteve em Lisboa a lançar Furacão (Porto Editora), romance que nasceu da emoção que sentiu quando assistiu na TV à tragédia provocada, em 2005, pelo Katrina.

"É bizarro dizê-lo assim, mas tinha vontade de confrontar a minha escrita com um cataclismo natural. Não sabia ainda se seria uma tempestade, um tremor de terra, um incêndio, mas tinha vontade de falar da força da natureza face à fragilidade humana. O Katrina concentrava todos esses temas e, o que me pareceu ainda mais interessante, é que não se tratava só da natureza, havia também a tragédia política." Foram as populações negras e pobres as mais afectadas e isso permitia-lhe enriquecer o tema do livro. "Política e socialmente, a dupla tragédia é que se amanhã houver outro furacão em Nova Orleães, acontecerá a mesma coisa. Infelizmente." Mesmo assim, o escritor tentou mostrar alguma esperança através das personagens: mesmo quem morre encontrou um sentido para a vida que até aí não tinha.

O seu método habitual para construir um romance é reunir o máximo de informação possível: desta vez, leu os jornais, procurou artigos e fotografias, foi à Internet (onde estão os vídeos amadores feitos durante a tempestade). "Demorou alguns dias: primeiro houve a tempestade, o vento, depois um momento de calma e, a seguir, a água subiu. Quis ter esta cronologia na minha cabeça para depois começar a construir, libertando-me, por vezes, da realidade. Não queria escrever uma crónica sobre o Katrina ou um livro jornalístico sobre o que realmente aconteceu, em 2005, em Nova Orleães. Queria escrever uma ficção. Por isso precisei de integrar a documentação e, por vezes, de esquecê-la. É isso que é divertido", explica.

Apesar de estar a escrever sobre um acontecimento que toda a gente conhece, achou possível trazer algo de novo. "Teria tido medo se tivesse escrito Furacão em 2006, no ano a seguir à tragédia. O livro saiu em França cinco anos depois. Há um fenómeno horrível e geral: a actualidade caça a actualidade. Em 2010, na Europa, o Katrina existia ainda um pouco na nossa memória mas já tinha sido apanhado pela vulcão da Islândia, pelo tremor de terra no Haiti, pelos incêndios na Rússia... Talvez a escrita nos permita retornar aos acontecimentos que ainda não esquecemos completamente, mas que já foram esquecidos pela actualidade. Quis escrever um livro sobre personagens e foram elas que permitiram que eu não tivesse medo", conclui.

Desde o princípio, Gaudé tinha a ideia de criar várias personagens, sem que houvesse uma voz narrativa a fazer a ligação entre elas. Queria que o leitor se sentisse, o mais possível, como aqueles homens e mulheres perdidos na tempestade. "A estrutura polifónica permite que se façam vários jogos com o leitor e o que me deu mais trabalho, na escrita de Furacão, foi a estrutura. Pegar em cinco ou seis personagens, ver como cada um seguia a sua trajectória. Só sabia que todos iriam ser afectados pela tempestade, alguns cruzar-se-iam, outros nunca se encontrariam."

Houve personagens que se impuseram. Uma delas, Josephine Linc, Steelson abre e fecha o livro. Repete várias vezes que é "negra há quase 100 anos". Laurent Gaudé explica que em França se utiliza o termo "negro" e "preto". "Negro" é o termo pejorativo e faz referência à colonização. No romance, Gaudé utiliza a palavra négresse porque era aquela que o poeta Aimé Césaire usava para teorizar a negritude.É dele uma das epígrafes.

Resistência

À parte a personagem Josephine, que "encarna a negritude", quase todas as outras podem ter pele branca ou negra. Nem sempre Gaudé dá pistas. "Muitos leitores me falam da questão da cor. É muito bom que o leitor possa ser livre. Acabo por referir a cor de pele de uma personagem [no momento da sua morte], quanto aos prisioneiros não sei quem é branco e quem é negro, não quis decidir e achei que não era grave. Cada um imagina como quer." Josephine estava prevista desde o início, mas o escritor não sabia que viria a ter tanta importância. Foi ao escrever que ela foi ganhando volume. Josephine apanha todos os dias o autocarro para que os brancos não esqueçam que houve um tempo em que ela não tinha direitos e também para não se esquecer de que venceu a batalha. "Gosto bastante desta ideia. É uma coisa que acontece na vida de países; sempre que há combates e lutas sociais que ganhámos, esquecemos muito facilmente o gosto da vitória. À geração seguinte já parecem evidentes os direitos adquiridos ou que haja democracia e liberdade. Josephine está lá para nos lembrar que existem bons combates e que é bom comemorar a vitória."

A imagem de Josephine com a bandeira americana às costas partiu de uma fotografia que Laurent Gaudé viu na Paris Match. Era o retrato de uma mulher, uma velha senhora negra, muito bela e muito triste, que pôs a bandeira da América às costas num aeroporto de Nova Orleães. "Quando vi a fotografia, percebi que Josephine era ela. Trabalhei com fotografias, todo o tempo, ao meu lado. A realidade ajuda a escrever: temos um suporte visual, qualquer coisa de concreto que nos dá força", afirma. Gaudé queria que o tema da fidelidade fosse essencial em Furacão, embora não estivesse em primeiro plano no livro. Queria que cada personagem respondesse, cada um à sua maneira, a esta questão. "Trata-se de uma fidelidade aos princípios e àquilo que queremos. Nos momentos em que a vida vacila, quando deixamos de ter emprego, carro, casa, vizinhos, quando não nos resta nada, imagino que mantermo-nos fiéis é também uma maneira de resistir e de fazer face à tragédia. É por isso que algumas personagens decidem que esta fidelidade é amorosa; outros, como a velha Josephine, decidem que a fidelidade é o combate ou a vontade de permanecer de pé. É uma maneira de penetrarmos no nosso interior e de sermos fortes."

Vertigem

Durante muito tempo, considerámos que a natureza era meio-morta e servia unicamente para que explorássemos os seus recursos. Por isso os momentos trágicos - de uma tempestade, de um tremor de terra -, os momentos em que a natureza fala, são também os momentos em que nos apercebemos que há lá qualquer coisa que está viva e que não é feita à escala do homem. Existe há mais tempo, tem a sua dinâmica própria e o seu próprio ritmo. Por ter domesticado o mundo animal e dominado a natureza, o homem esqueceu-se disso. "Os momentos em que a natureza fala são momentos de vertigem, de medo, que nos levam a qualquer coisa a que podemos chamar "a verdade do mundo"", diz Laurent Gaudé. Por isso criou um padre que, perante a tragédia, tentará interpretar a mensagem de Deus. "Seria normal que o livro colocasse a questão de Deus. Não sou crente, mas achei que o livro tinha de ter esta temática apesar de deixar a questão em aberto. Nos momentos de cataclismos naturais há um reflexo de virar os olhos para o céu e colocar a questão: "Porque somos punidos?" Cada um responde, depois, de maneira diferente. Há quem diga que é a prova de que Deus não existe e quem diga exactamente o contrário, que é a prova de que Deus existe e nos pune."

Na sua maioria, as personagens de Furacão estão sozinhas a enfrentar a tempestade, mas o autor quis também mostrar como actuamos, perante o perigo, em grupo: "Os prisioneiros do meu livro estão primeiro na prisão, entre quatro paredes, mas quando escapam, pelo menos para um deles, estar em grupo é quase uma segunda prisão. Todos os grupos impõem um modo de funcionamento. Não somos os mesmos quando actuamos em grupo ou sozinhos. Habitualmente comportamo-nos pior quando estamos em grupo. Por outro lado, o grupo deste livro é particular porque está face a uma vertigem de liberdade total, não há sociedade, não há polícia, é uma espécie de grupo selvagem".

Laurent Gaudé está a terminar o seu próximo romance que sairá. em França, na rentrée. É uma ficção sobre Alexandre, O Grande, que já utilizou numa das suas peças de teatro e considera uma figura "shakespeareana". Não se trata de um romance histórico, pois o escritor mudou e inventou factos da vida do rei da Macedónia.

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