Rui Morrisson, actor ("O Delfim", "Lá Fora", "Os sorrisos do destino", "Em Câmara Lenta")
"O Fernando era combativo, generoso e um contador de histórias. A sua sensibilidade e inteligência faziam-no defender a ética do cinema como a ética da vida. Para ele não havia distinção. O cinema, mais do que uma questão estética, era uma questão ética. E os actores não eram, para ele, marionetas, eram cúmplices. Foi um privilégio poder ter convivido com o Lopes nos últimos dez anos. Vivi, através das histórias que ele contava, a Lisboa dos anos 50. Aprendi tanta coisa com ele. Sobre cinema, sobre representação, sobre a vida. Ele punha a sua vida nos filmes. É justo pensar nas suas personagens como alter-egos, mas não eram estereótipos. Eram a sua posição na vida e no tempo. E é justo aferir [a partir dos filmes] uma imagem de Lisboa e do país, e das suas pequenas histórias. A forma como ele filmava , conseguia dar uma dimensão às personagens que misturavam vida e cinema. E era uma entrega de parte a parte. Fazíamos parte daquela criação [através] de um grau de cumplicidade que era enorme. Ele dava-nos uma liberdade para criar coisas, para termos ideias, e quando não conseguíamos dizia 'não penses mais nisso, vamos lá experimentar'. Isso é muito gratificante."
Rui Cardoso Martins, argumentista de “Em Câmara Lenta”
“É uma triste honra ter sido a última pessoa a escrever para ele, pelo menos que eu saiba, afinal ele tinha sempre tantos projectos que é possível ele já estar a trabalhar com outros. Conheci-o apenas por causa do filme, através do Paulo Branco, e ficámos logo amigos. Todo o cinema e a arte portuguesa lhe devem muito. Ele tinha uma grande capacidade de lidar com os cineastas mais jovens, era um homem generoso. Demo-nos logo muito bem, nunca esperando que fosse o seu último filme. Eu já era um grande admirador dele, afinal o Fernando já filmava quando nasci. Era um grande cavalheiro, um grande artista, com um olhar cinematográfico muito impressionante. Há uma frase dele, que ainda hoje a lembrei e que acho que se aplica tão bem ao dia de hoje e ao Fernando: ‘Hoje vou à procura de um peixe que anda atrás de mim e, ou eu o apanho, ou ele me apanha a mim’. É um dia triste, perdemos um cineasta que conhece tudo.
Alexandra Lencastre, actriz ("O Delfim", "Lá Fora")
"Muitas vezes me senti maternal com o Fernando. E outras vezes um anãozinho, um escaravelho que podia ser esmagado por ele. Ele era um monstro, um homem não só do cinema e da cultura, mas das humanidades. Trabalhar com o Fernando era ir até ao fundo ou não valia a pena. Ele chegava a cancelar um dia de filmagens se não tivesse inspirado. E depois, durante a noite, amadurecia e no dia a seguir trabalhávamos melhor. Era uma surpresa constante, e uma surpresa diária, ver o Fernando trabalhar. Ao longo do dia ia tendo diferentes estados de espírito e isso era contagiante porque acabavam sempre por se traduzir em vários finais felizes. Isso deixava-me muito comovida. Com o Fernando não se trabalhava em função de um guião mas em função da personagem. É justo dizer-se que o filme só era nosso porque o Fernando era um ser muito especial que sabia de tudo, e muito bem de tudo. Sabia profundamente sobre culturas exóticas e de imagens que mais ninguém sabia. Muitas vezes o encontrei a reflectir sobre como ia resolver o próximo plano, porque não estava contente com o que tinha pensado anteriormente. Numa área onde as pessoas se vampirizam e onde a profissão tem tantas coisas perversas, eu via-o como uma espécie de sábio, cuja sabedoria revertia sempre para o bem. Muitas vezes achei que ele era um anjo protector, com uns olhos muito meigos e muitos doces. Não se resistia ao Fernando. Quando se zangava, percebia que se tinha excedido e antes de fazer as pazes connosco, tinha que fazer as pazes com ele mesmo. Não gostava de se exceder. Houve sempre uma genuinidade no trabalho que partilhámos. Às vezes os actores tentam defender-se mas com o Fernando não era possível. Ele sabia tanto sobre tudo. E sempre com tanto respeito, tanta subtileza. Havia um lado feminino no Fernando que me fazia, às vezes, sentir dirigida por uma mulher. Nunca imaginei que um dia ia fazer a Maria das Mercês [personagem principal de “O Delfim”]. O Fernando disse-me que ele e o José Cardoso Pires [autor do romance] pensaram em mim para a interpretar. Nunca acreditei, claro. Mas foi ele, que trazia em si a alma do romance, que me ajudou a construir uma Maria das Mercês que era um pouco de todos nós, um reflexo de um país, de um estrato social, do que é ser-se mulher. No “Lá Fora” a abordagem foi diferente. A “Laura” era a construção de uma mulher que não era só uma coisa, usava várias máscaras. As lágrimas falsas no final também são isso. Foi nesse filme que senti que os laços que nos uniam eram irónicos, sarcásticos, críticos. Havia uma troca de afectos, de olhares cúmplices [que levavam a um] sentimento de união e de muita verdade."
Rogério Samora, actor ("Matar Saudades", "O Delfim", "Lá Fora", "98 Octanas")
O Fernando foi uma passagem entre a vida e a morte. Era um homem de uma fragilidade enorme que se tornava ainda maior quando era projectada na tela do cinema. Muito inteligente e culto, tinha uma sabedoria sobre a vida, o cinema e a imagem, nas quais não fazia distinções. Sabia muito bem o que queria e ensinou-me muito entre duas imperiais ou um uísque e um café. Às vezes achava que todas as personagens que interpretei eram alter-egos dele. Reconhecia isso nos pedidos que me fazia de gestos e frases recorrentes.
Jorge Silva Melo, realizador e encenador
"O cinema do Fernando Lopes tinha a liberdade e a delicadeza das composições de jazz. Tinha uma forte presença musical. E era o cinema da amizade porque é indissociável dos seus amigos. O Belarmino [começou assim, nas] noites de conversa e amizade no café na Avenida da Liberdade, que foi gravando na pedra. O Baptista-Bastos, o Alexandre O’Neill, o Alberto Seixas Santos a irem depois comer as comidas da mãe do Fernando na Avenida de Roma. Ele prezava os amigos, dava-se bem com toda a gente e era impossível resistir ao Fernando. Os seus filmes são sobre isso e são também a solidão em que foi avançando ao longo da vida. Não era ra ele a compadecer-se com as suas dores, era ele a encontrar um amigo. Era um entusiasta e espalhava imensa ternura por todos. Mas ele ficava genuinamente feliz com as conquistas dos outros. Não se desanimava com seus filmes não terem êxito. Queixava-se muito que os meios de produção [actuais] estavam esclerosados, e dizia que era precisa uma nova nouvelle vague, com meios mais ligeiros para fazer cinema. O Fernando gostava de meter as mãos na massa que eram os filmes dos outros. Há uma famosa história em que depois da estreia de Verdes Anos, de Paulo Rocha, foram para o laboratório cortar 3 minutos no positivo, porque o Fernando achava que ainda havia coisas para acertar. Tinha 14 ou 15 anos quando vi o “Belarmino” e conheci o Fernando à mesa do Monte Carlo, um café que existia no Saldanha, onde ele tinha uma produtora, a Media Filmes, que fazia filmes que o Fernando dizia serem preponderantes. Foi o Fernando quem me convidou para fazer o primeiro filme, parte de uma série de provérbios. Eu seria o mais novo de quatro. O João César Monteiro faria o “Quem espera por sapatos de defunto morre descalço”, o António-Pedro Vasconcelos o “Perdido por Cem…”, o Fernando faria o “Da Janela à rua” e eu “Com a verdade me Enganas”. Não cheguei a realizá-lo. Ele entusiasmava-se com os mais novos. Foi o Fernando que encomendou ao Manuel Mozos a média-metragem “Um passo, outro passo e depois…”, uma das últimas coisas que fez enquanto esteve na RTP. Ele era um homem da televisão. É por aí que chega ao cinema, através da geração dos Angry Man ingleses e da estética da BBC, ele que tinha estudado em Londres. O “Belarmino” e o “As Pedras e o Tempo”, sobre Évora, são influenciados por isso. E é será assim até ao “Uma Abelha na Chuva”. O que ele fez na RTP foi [criar] um momento de ouro na cultura portuguesa. Era um visionário que não teve mais eco. Fez a defesa do cinema europeu e do cinema português, apoiou produtores como o António da Cunha Telles e o Paulo Branco. Ninguém herdou essa generosidade."
Jorge Wemans, director da RTP2
"O Fernando era uma personagem incontornável do cinema português. Os seus filmes nos anos 1960/70 trouxeram uma novidade absoluta não só para o que se fazia em Portugal como na Europa. Não foi apenas marcantes antes do 25 de Abril, como depois também. É por isso tudo que a RTP2 lhe presta hoje uma homenagem e vai transmitir o documentário de João Lopes sobre Fernando Lopes, seguindo-se a exibição do documentário “Belarmino” e o filme “O Delfim”. São duas obras que cobrem dois dos aspectos mais importantes da obra de Fernando Lopes. A RTP2 deve o seu nascimento, crescimento e identidade a Fernando Lopes. A sua identidade está presente no canal. Ele não foi só um cineasta como um homem da televisão. Um homem esplêndido e generoso. É assim que o vamos recordar."
Miguel Gomes, realizador
“Para além de ter sido um essencial na história do cinema português, o Fernando era meu vizinho, meu amigo. Vai fazer-me muita falta o seu humor cáustico, muito, muito divertido e contagiante. Era especial, com a sua disponibilidade rara para o mundo e para as pessoas. Estávamos muitas vezes juntos aqui [Avenida de Roma], nos cafés, a conversar sobre a vida, sobre o cinema. É por isso que a morte do Fernando me deixa com um sentimento de orfandade que não vem só do cinema. Falei nele ao agradecer o prémio de Berlim porque lhe devemos, assim como ao Paulo Rocha, o Cinema Novo, esse rasgo absolutamente independente do cinema português que se queria distante do poder político e das versões oficiais do país. Eles queriam olhar de forma independente para o tempo e para a sociedade em que aquele cinema estava a ser feito e conseguiram. Conheci-o há uns 15 anos, num comboio a caminho do Porto. Fui lá apresentar-me. Nessa altura era o realizador, o pai do meu amigo Diogo. Só muito mais tarde começámos a conversar e pude perceber que era sempre muito apaixonado em relação às coisas. Podia chegar a ter fúrias intensas, mas passavam depressa. Impressionava-me a sua curiosidade em relação aos outros e ao mundo, num desejo de cumplicidade muito grande. Foi assim com Belarmino, o documentário que é um retrato de uma pessoa e ao mesmo tempo um retrato de uma sociedade. O filme fala de um boxeur que podia ter sido muito bom mas acabou por ser um falhado na vida, sem que o Fernando o censure. Ele projectava-se muito nas personagens que criava sem nunca as julgar, tratava-as com grande nobreza. Para mim Belarmino é essencial na sua filmografia, mas há uma cena de Nós Por Cá Todos Bem que não esqueço. Ao longo do filme vai-se dizendo aqui e ali que a equipa está a montar carris para um travelling, para uma cena que ninguém sabe qual é. E há uma certa curiosidade que termina quando descobrimos que, afinal, a cena é o almoço da própria equipa, à sombra de uma latada, com vinho e conversa. O cinema do Fernando tinha sempre uns bocadinhos dessa experiência social que é fazer um filme. Era aberto e muitas vezes, como na cena do almoço de Nós Por Cá…, delicioso.”
Bruno de Almeida, realizador
"Chamava-lhe Avô Lopes, não por relação familiar mas por admiração e carinho. Antes de mais era o meu amigo, o meu mentor, o meu camarada. O Fernando era um amante da vida e um homem atento às pessoas e sintonizado com os mais preciosos detalhes do quotidiano. Qualquer pequena situação vista pelos olhos dele dava-nos infinitas possibilidades de filmes. Costumava mostrar-lhe os meus filmes na fase de montagem ao qual ele invariavelmente dizia com um minimalismo assustador 'tira aquele plano e funciona', e tinha sempre razão. Era um dos maiores cineastas portugueses de sempre, um maravilhoso contador de histórias, um magnifico montador de sons e imagens. Um pensador, antes de tudo. O cinema de Fernando Lopes parecia-se com a vida, a sua. E partilhava. A honestidade com que filmou ao longo de 50 anos é reveladora da sua generosidade, como artista e como ser humano. Fernando gostava das pessoas. O seu cinema abordava sentimentos íntimos mas universais e foi antes de mais um artista verdadeiro. De 'Belarmino', de 1964, a 'Em Câmara Lenta', de 2012, Fernando Lopes deixa-nos uma das maiores obras do cinema português repleta de obras-primas como 'Uma Abelha na Chuva' ou 'Fio do Horizonte'. Um dos criadores do Cinema Novo nunca deixou de pensar em novas formas e foi naturalmente um homem de vanguarda - dizia-me sempre "é preciso ouvir as imagens e ver os sons". Antes de ontem, quando o vi pela última vez no hospital, piscou-me o olho sorrateiramente e disse 'vemo-nos por ai'. Até já Avô Lopes."
Alberto Seixas Santos, realizador
"Numa palavra o Fernando era generoso. E essa generosidade ele passava-a para os filmes, e para o seu amor às pessoas. Havia nos seus filmes algo de fervoroso, de quente, que era muito bonito e pouco comum. A sua presença era muito motivadora e entusiasta. Ele acreditava que era possível fazerem-se coisas, e esteve em várias frentes: na televisão, no cinema, na fundação do Centro Português de Cinema …Os acessos de fúria que tinha passavam-lhe rapidamente porque o que ele era era um entusiasta, um ousado no meio do cinema português. Esse é um aspecto determinante não só do trabalho do Fernando como da imagem que as pessoas tinham dele. Era alguém muito ligado à terra [Alvaiázere] mas depressa se tornou num lisboeta convicto. Ele e a noite de Lisboa eram uma e a mesma coisa e provavelmente tornou-se numa das figuras mais típicas da noite lisboeta."
Pandora da Cunha Telles, produtora de cinema
"Era um homem absolutamente extraordinário. Tinha uma capacidade de fazer com que as pessoas se sentissem bem e falava com todos da mesma forma, tivessem acabado de realizar um filme ou vinte filmes. Morreu um homem cheio de charme. Na casa do meu pai (António da Cunha Telles) entravam realizadores e pessoas cheias de sonhos. A primeira memória que tenho do Fernando Lopes tinha pouco mais de cinco anos e ele ofereceu-me um perfume, Chanel nº5. Sussurou-me "serei sempre o teu primeiro namorado" com um sorriso doce de quem está a fazer um filme e a criar uma memória para a eternidade. Na vida vimo-nos menos mas as suas imagens de Portugal marcaram-me como pessoa e produtora. Optou por mostrar um Portugal sem artificios. Pessoas que transpiram força. E quando olhamos para 'Belarmino', 'Abelha na Chuva' ou quando viajamos a norte à sua intimidade em 'Nós por cá Todos Bem' sentimos de que somos feitos enquanto portugueses. Essa força de que era feito o Fernando ficará connosco nos seus filmes. O seu encanto nas histórias que contou a tantos de nós."