A intimidade também é modo de produção

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MIGUEL MANSO

A distância, a rotina do casal com os gestos a começarem a falar no silêncio, o desejo que já é saudade de um corpo que ameaça ir-se embora - e, como uma última hipótese, um fôlego final para impedir o desprendimento definitivo: um filme, uma curta-metragem, Cavalos Selvagens (2010). O que pode ele por uma relação?

Não interessa a resposta, não interessa verificar. Interessa o facto de André Santos e Marco Leão, 27 anos, ao documentarem "a falta de diálogo, o vazio" da sua conjugalidade, terem necessitado de "encarar" o filme onde se expuseram, onde repetiram os gestos e a rotina da intimidade, para "poderem falar sobre as coisas", sobre a forma como há seis meses viviam. Quer dizer: um filme, andando à volta da saudade de uma unidade que se perdeu com o tempo, pode satisfazer alguma necessidade de consolo (foi assim que André e Marco se estrearam, aliás, em 2007, com os 13 minutos de A Nossa Necessidade de Consolo, título inspirado por um ensaio de Stig Dagerman). E o espaço de intimidade, sendo neste momento para eles "o sítio onde as coisas aparecem", revela-se também aqui modelo de produção. Há qualquer coisa de ideal, de utópico nisso - como as nuvens que nos fazem olhar para cima nos filmes deles.

"Criámos uma pequena família com os nossos trabalhos, vamo-nos ajudando, sem os nossos amigos não chegaríamos onde chegámos", dizem André, responsável pela imagem, e Marco, o homem do som, embora o processo criativo seja mais caótico, menos dividido, sem modelo.

Mães

É à volta do consolo, da saudade da infância e das promessas de encontro que um filme é capaz de alimentar que giram estas pequenasbiografias: A Nossa Necessidade de Consolo (2007, 6º IndieLisboa e 24ª edição do Clermont Ferrand Short Film Markek), Cavalos Selvagens (2010, 18º Curtas Vila do Conde, 14º Queer Lisboa e percurso por outros festivais internacionais) e Infinito (2011, Prémio do Júri na 2ª edição do Córtex, Sintra Short Film Festival, e esta semana exibido no Mecal de Barcelona e proximamente no Madeira Film Festival e no Vienna Independent Shorts).

No segundo filme, André e Marco, que se conheceram aos 16 anos mas só se encontraram aos 21, figuram-se a si próprios num momento da sua relação ("estávamos a filmar na cama onde dormíamos, na casa de banho... não seria possível colocar ali outras pessoas", diz André; "seria aberrante", completa Marco). Na primeira curta, a comovente Nossa Necessidade de Consolo, filmaram as mães, em cenário de flores e hidroginástica. Foi uma forma de biografia também, de estarem dentro do filme sem aparecerem no filme: pela semelhança física que vinca o laço entre cada uma das mães e cada um dos filhos realizadores ("como as nossas mães nos espelham", diz um deles) e pela homenagem que lhes fazem.

André: "A minha mãe teve-me com 19 anos. Saiu de casa comigo. Tudo o que eu sou devo-a a ela. Por isso este eterno retorno, para voltar a ela. Dá-me estabilidade".

Marco: "Sempre fui mais próximo da minha mãe do que do meu pai, que era uma figura autoritária. A minha mãe divorciou-se demasiado tarde, quase aos 60 anos. Durante toda a minha infância a minha mãe protegeu-me. Não sei o que agora é memória ou não: há coisas que sinto, mas não sei se é memória ou se é construção"

Infinito é um lugar ali, uma mãe e um filho, ao fundo, numa tenda e num bosque, depois de um carro e de um telemóvel que ficam para trás. Um lugar, de novo, em que André e Marco existem através de uma mãe e do seu bebé, uma memória real e também uma memória por eles construída desse conforto. "Sinto necessidade de voltar sempre àquele ponto", concorda André. "Aquela mãe e aquela criança são mesmo uma mãe e a sua filha. Não nos interessaria fabricar esses laços. Tudo começa com as pessoas que já conhecemos há muito tempo, é com elas que o filme começa a tomar proporções reais. Mas essas pessoas acabam por ser representativas menos delas próprias do que de nós" (dito isto, com a próxima curta, que começam a rodar por estes dias, André e Marco parecem encaminhar-se de forma mais determinada em direcção à ficção, mas sobre isso preferem para já não falar.) A intimidade continua também a ser um modelo: "Temos de pensar sempre na escala, os planos fixos, longos - interessa-nos continuar a trabalhar por aí. Interessa-nos contemplar, ver o mundo a acontecer à nossa frente", como diz André. "Sempre que a câmara mexe estamos a condicionar o olhar do espectador", diz Marco. Resume o primeiro: "Interessa-nos criar experiências sensoriais, criar emoção. Prefiro que as pessoas sintam, que fiquem com as imagens na cabeça e que a partir disso façam a sua própria história."

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