Depois de anos como proscrito, longe da vida pública, Taveira esperava tudo menos a visita de outro arquitecto a querer falar sobre o passado. Mas Jorge Figueira – que na sessão de hoje apresentará o livro Anos 80, editado pelo Circo de Ideias a partir de uma conversa que teve com o historiador de arte Paulo Varela Gomes (que nos anos 1980 fazia também crítica de arquitectura) – estava interessado em pensar o que foi essa década. E sabia que Taveira era, para isso, uma figura tão incontornável quanto polémica.
"Taveira é uma figura importante na cultura arquitectónica portuguesa também pelo que acontece antes das [do projecto para o centro comercial] Amoreiras", explica o autor. "Desde o momento em que é colaborador principal do atelier Conceição Silva, vai introduzir na arquitectura portuguesa uma série de referências e uma relação totalmente diferente daquela que na altura é corrente no Porto, mas também em Lisboa."
Fascinado pela cultura pop londrina, Taveira contrasta logo aí com o mundo da arquitectura portuguesa. "Não existe naquele período mais nenhum arquitecto que faça tão explicitamente a ligação entre esse carácter festivo e comunicante e a própria arquitectura."
Assumindo-se como pós-moderno, Taveira está em sintonia com uma série de coisas que estão a acontecer no mundo anglo-saxónico. Capta sinais, compra revistas e livros, consome cinema. E esta é, diz Jorge Figueira, uma época em que o próprio cinema está "a transformar a arquitectura numa indústria de entretenimento". Tudo é comunicação. E, dizem os pós-modernos, as cidades também devem comunicar. "De repente, a arquitectura era uma linguagem. E Taveira escreve em 70 um texto intitulado O Lettering, em que dizia que a cidade era feita de sinais visuais, e que quanto mais ricos estes fossem, melhor." Isto chocava com a cultura modernista, com a qual se identificavam os grandes arquitectos portugueses, "que dizia "vamos limpar, tornar tudo higienisticamente preciso"".
Mas temos estado, até aqui, a ouvir a história contada por Jorge Figueira. E Taveira, o que diz? Como Figueira, também ele quer recuar no tempo. "As pessoas olham para as Amoreiras como um vértice do pós-modernismo e pensam que aquilo caiu do céu, que houve um senhor que um dia resolveu fazer um desenho e saiu aquilo. Nunca ninguém cuidou de dialogar comigo ou com a história para perceber."
Recua até aos anos 1950, ao primeiro Congresso Internacional da Arquitectura Moderna, para criticar o que daí saiu. "A arquitectura modernista tornou-se um estilo soit-disant capitalista e perdeu "o sujeito"." No final dos anos 1950, Taveira entrou para as Belas Artes para estudar arquitectura. Mas já ia com anos de experiência de atelier. "Vivi no mundo dos arquitectos como desenhador. Trabalhei com o Nuno Teotónio Pereira, com o Nuno Portas."
"Só uma coisa me irrita"Diz que há uma única coisa que o irrita "profundamente": que "sujeitos que não conhecem nada da história" digam que ele não desenhou coisas que desenhou. "Irrita-me porque é falso. E eu não minto. Nunca menti acerca daquilo que foi a minha passagem por atelier nenhum. No [atelier] Teotónio Pereira não desenhei nada. Mas no [atelier] Conceição Silva desenhei tudo, mas tudo. Fiz o Hotel da Balaia, a fábrica de discos Valentim de Carvalho, uma obra completamente brutalista." Quando em 1973 concorreu a catedrático na Faculdade de Arquitectura, "sabia o que queria, e não tinha nada a ver com a arquitectura do Portas e do Teotónio".
Em 2005, um processo judicial concluiu que Taveira não era nem autor exclusivo nem co-autor daquelas obras, tendo tido nelas apenas uma “participação preponderante”. Mas regressemos ao relato de Jorge Figueira. "Taveira é um jovem turco, alguém que surge como uma espécie de ideólogo do Conceição Silva. E como é uma personagem muito entusiasta e vibrante começa a aparecer cada vez mais." Com o 25 de Abril e a ida de Conceição Silva para o Brasil, Taveira inicia uma carreira a solo.
Viaja para os Estados Unidos, onde bebe directamente dos meios do pós-modernismo. "Volta a dizer: ‘Eu sou o pós-modernismo.’" E então surgem as Amoreiras. "Éramos um país um bocadinho arcaico e o centro comercial era um buraco onde se iam fazer compras", prossegue Figueira. "As Amoreiras trazem a ideia do luxo, transformam o gesto de fazer compras."
Abre-se o debate. Uns atacam, outros defendem. Enquanto isso, "Taveira porta-se como uma estrela, passeia-se pelos jornais e televisões, torna-se uma celebridade que vem da arquitectura, o que era uma novidade. Há um período em que Taveira é o arquitecto."
Depois há a divulgação das cassetes que revelam o escândalo sexual, e o arquitecto cai em desgraça. Em 2003 é expulso da Faculdade de Arquitectura na sequência de um processo disciplinar. Desaparece da vida pública. Mas as obras ficam – as Amoreiras, claro, mas também a sede do BNU, e os (posteriores) estádios de futebol.
Como olha hoje Taveira para o seu trabalho dos anos 1980? "Não medito muito sobre aquilo que fiz. A cidade tem de ter alegria, tem de pertencer às pessoas. As Amoreiras entraram na vida dos lisboetas, foram assimiladas. Quanto ao meu trabalho de hoje, ninguém o conhece, à excepção dos estádios. A minha arquitectura é bastante diferente mas mantém-se pós-moderna."
Figueira acredita que são edifícios que cumprem um papel na história da arquitectura. "As Amoreiras são uma marca iconográfica e ganham intemporalidade por isso. A nossa relação com o edifício ainda não está pacificada, mas quase. Esta conversa e este livro seriam impossíveis há dez ou quinze anos."
A linguagem pós-moderna resistiu ao tempo? "Houve uma apropriação dos temas do Taveira pelos construtores civis, o que é a morte do artista." Mas isso não retira a importância ao momento. "Um edifício pode ser tão discreto e abstracto que sobrevive intacto do ponto de vista do gosto ao longo do tempo, mas é porque decidiu nunca entrar no jogo, entrar na cidade. O que se pode dizer em favor dos edifícios do Taveira é que eles tentaram acrescentar uma vírgula, ou um ponto de exclamação, e depois, eventualmente, como quem faz muitos pontos de exclamação, fica um pouco kitsch, marcado por esse sentido muito enfático de dizer "eu estou aqui"." Mas porque os seus edifícios nos contam a história dos anos 1980 – e também "pela electricidade e um certo lirismo pop" –, Taveira "merece um lugar".
Taveira por TaveiraQuando lhe perguntamos o que representaram as Amoreiras, Tomás Taveira começa a falar como se, finalmente, tivesse uma oportunidade para contar a sua versão da história.
"Ninguém sabe a história da minha vida. O que as pessoas sabem de mim é a história das cassetes [o escândalo sexual dos anos 1980] e as Amoreiras. A vida de uma pessoa é mais do que meia dúzia de episódios."
Sublinha as raízes populares. Como quando lhe falaram pela primeira vez de desenho a carvão: "Eu, operário, filho de operário, o único carvão que conhecia era o da carvoaria." Fala do seu "lado rufia", da "cultura bairrista" que adquiriu "entre a Picheleira e Alcântara", do trabalho como serralheiro mecânico.
E depois conta como entrou nos círculos intelectuais, como frequentava a Brasileira e convivia com poetas e realizadores, como foi mandado para a tropa "porque era pobre" e como, em Santarém, conheceu Herberto Helder e Fernando Assis Pacheco, como devorava a revista Cavaleiro Andante e admirava Flash Gordon – e mais tarde Andy Warhol e os Velvet Underground.
Diz que as pessoas nunca estudaram a sua obra, mas garante que nunca se sente vítima de injustiça. "Nunca tive um sentido dramático da vida. Um indivíduo que nasce numa casa sem electricidade nem água, que tinha uma pia na cozinha, e que chega onde eu cheguei, pode ter um sentido dramático da vida? Sou o indivíduo com mais sorte do mundo.”
Notícia corrigida às 11h36 de 26/04/2012:Corrigida a primeira frase do nono parágrafo, que dizia que "o processo judicial concluiu que Taveira era co-autor mas não autor exclusivo daquelas obras".