Restauro irá mostrar se a estátua de D. José a cavalo era mesmo dourada
A partir de Maio, a intervenção no monumento do Terreiro do Paço, de Machado de Castro, reabrirá discussão académica sobre a estátua do poder régio mandada erigir pelo marquês de Pombal
Qual é a pata direita do cavalo de D. José? O trocadilho confunde os lisboetas, e é também com atrapalhação que respondem a uma segunda pergunta, quando interrogados sobre a cor do cavalo branco do monarca. Sem frivolidade associada, uma terceira questão poderá desassossegar o meio académico: o cavalo era dourado? Basta que para isso o restauro da estátua equestre de D. José I, no Terreiro do Paço, da autoria de Machado de Castro, possa revelar, a partir de Maio, que aquelas 35 toneladas de metal tinham coloração dourada após a colocação no pedestal, há 236 anos. Não há certezas, apenas indícios, contudo fortes.
Um programa em torno da figura de Machado de Castro, de 18 de Maio a 30 de Setembro, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, fará luz sobre a vida e obra do escultor português (Coimbra, 1731-1822), em parceria com a associação World Monuments Fund (WMF)-Portugal - que conduzirá o processo de conservação e restauro do monumento nacional - a Universidade Autónoma, a câmara e a Associação de Turismo de Lisboa.
"Haverá muita coisa a acontecer à volta de Machado de Castro, em Lisboa e Oeiras, onde estão as suas obras. Não há melhor que ele. Nem para trás, nem para a frente", assume Anísio Franco, conservador do MNAA, que será o comissário do programa Fama e Triunfo. O Escultor Machado de Castro. "Quando se fala em escultura em Portugal, fala-se em Machado de Castro. Ele preparou o trabalho, o seguimento da obra, o laboratório para formar discípulos. Isso fez com que qualquer boa escultura do século XVIII se lhe atribua. É isso que também vamos determinar nesta exposição", defende o especialista em História de Arte.
Estima-se que todo o processo de conservação e restauro decorra em 12 meses. Ainda assim, metade do que foi necessário para recuperar o monumento a Luís XIV, em Versalhes, recolocada no lugar em 2009. O projecto constava do plano de acção da Frente Tejo para a reabilitação da frente ribeirinha de Lisboa, mas a extinção da sociedade, em 2011, transmitiu aquela responsabilidade ao município, que estabeleceu um protocolo com a WMF-Portugal para que esta se encarregue da missão. Uma intervenção que tem um custo estimado em 490 mil euros, disse ao PÚBLICO a sua vice-presidente, Isabel Cruz Almeida, após parceria acertada com a Câmara de Lisboa.
Cavalo negro?
Anísio Franco vai aguçando a curiosidade: "Isto é interessantíssimo. O programa servirá, também, para colmatar esse período de um ano, pois será um pólo de comunicação para a exposição, que logo à entrada exibirá um filme sobre os trabalhos em curso. Há muitas reflexões sobre a estátua, a quem chamaram do "cavalo negro". Estou certo que haverá ampla discussão em torno de um colóquio, a cargo da Universidade Autónoma". E avança: "Já se percebeu, pelas primeiras análises do material, do bronze, que a liga utilizada terá mais latão do que se pensava. Terá a ver com as percentagens utilizadas na liga, pois a estátua apresentaria uma coloração dourada. De outra forma, diante do rio, logo ao fim de um ano, a estátua ficaria negra. Há décadas que está verde, devido à oxidação."
Ainda que indício válido, seria pouco para chegar a conclusões sobre o tal dourado, tendo em conta que nem os cronistas nem o próprio Machado de Castro lhe fazem referência. Ela é omissa na descrição analítica da execução da estátua, uma obra tardia de Machado de Castro, finalizada em 1793, mas só impressa em 1810, 35 anos após a inauguração do monumento.
Outros indícios que reforçam a teoria podem, ainda hoje, testemunhá-lo, casos de duas peças do acervo do Museu da Cidade, em Lisboa, uma pintura a óleo do francês Louis-Michel van Loo, que retrata o marquês de Pombal apontando para a Lisboa reconstruída (1766). A estátua régia, nesse tempo, não estava ainda edificada, mas já surge, nas suas costas, e com aquela coloração. A outra peça, em cera, ainda que apenas um estudo de Machado de Castro para a estátua, também pode ser reveladora, pois mostra D. José I, de pé, trajando armadura romana, sendo que todo o modelo está patinado a ouro.
É Anísio Franco quem acrescenta o indício crucial - o modelo que Machado de Castro apresentou ao rei e ao marquês de Pombal: "Vamos ter na exposição o primeiro modelo, o que ele apresentou a concurso, em cera, e que pertence aos descendentes do marquês, mas que nunca foi mostrado, e é dourado, como a imagem que aparece no quadro de Van Loo, ainda segundo os desenhos de Eugénio dos Santos apresentados ao escultor. Teremos também o modelo em terracota, que está no Museu da Cidade. O ensaio em gesso, patente no Museu Militar de Lisboa, é demasiado grande para ser exposto. Todavia, contamos com 112 peças e com muito para visitar em Lisboa e nos jardins de Oeiras."
Essência perdida
O curador do MNAA não quer criar demasiada expectativa sobre a estátua, nem admite ter recebido garantias de que o dourado possa reaparecer: "Provavelmente não, pois poderá ter perdido a essência-base e não se sabe como irá reagir o material. É o que vamos estudar."
Machado de Castro finalizou em apenas cinco meses o que o francês Jacques Saly - autor da representação de Frederico V da Dinamarca, em Copenhaga, inaugurada em 1771 - demorou cinco anos a iniciar à escala real.
Um ano antes, Machado de Castro, que aprendera e trabalhara 15 anos em Mafra, como discípulo do escultor italiano Alexandre Giusti, foi convocado ao Paço para o desafio de construir a estátua. Venceu o concurso, mas não sem rebuço, dizendo que se coarctava o artista da sua liberdade de criação por lhe imporem uns modelos que recebeu de Eugénio dos Santos, o arquitecto encarregado pelo marquês de Pombal de reconstruir a Baixa, e mais os de Reynaldo dos Santos, que concebera o pedestal onde assentaria a estátua - alta de 14 metros, a peça propriamente dita com 6,93 metros.
Conta o historiador José Augusto França, em A Reconstrução de Lisboa e a Arquitectura Pombalina (Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1977), que Eugénio dos Santos "mais ou menos os copiou", de Perrault, para um monumento a Luís XIV, e de Le Brun para um arco de triunfo, projectos que figuram no álbum de Architecture Françoise de J. F. Blondel (1752), de onde o arquitecto tirou elementos que acordou - "os maus elementos de cada um", no dizer crítico de Machado de Castro.
Por isso se disse "violentado", e também pelo curto prazo que lhe deram para concluir a obra. Em apenas dez dias anotou a simetria dos animais da cudelaria real, tendo por base o Gentil, um "cavalo fino das Hespanhas", a que lhe daria um ar tenso e qualidade nervosa. Como descreve Anísio Franco, "resumiu no cavalo, em pouco tempo, o que de mais belo observou. É isso a arte melhor."
Primeira estátua equestre em Portugal, à de D. José replicou o Estado Novo, entre 1943 e 1971, com outras pelo país, mas nenhuma outra se prestaria a anedotas. Uma delas foi contada pelo próprio, por ter trabalhado o rosto da augusta figura - trajada de armadura romana, que nunca usaria - sem nunca o ter observado em pose, mas apenas a partir da efígie real cunhada em moeda.
Quanto às pilhérias, cuidem os distraídos que a pata direita do Gentil é a esquerda - por não estar flectida -, e se não foi a natureza a doirar o quadrúpede, também ele não era branco, mas negro como o ébano, como descreveu o escultor.