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Walter Benjamin: pop belíssima, canções luminosas - simples, descomplicadas e não querem mais do que 2/3 minutos de vida

Pop

Um sorvedouro de sonho

Pegar num imaginário alheio, processá-lo e originar um composto novo, coerente, acabado. Gonçalo Frota

Walter Benjamin

The Imaginary Life of Rosemary and Me

Pataca Discos; distri. Popstock

mmmmm

Há qualquer coisa de Beck em Luís Nunes (vulgo Walter Benjamin). Não enquanto capacidade mimética de se transformar com facilidade e total fidelidade em qualquer outro músico, mas na ideia de sorvedouro daquilo que lhe encanta os ouvidos. Pegar num imaginário alheio, processá-lo e originar um composto novo, coerente, acabado. Ele que já ajudara Márcia a engordar as suas delicadezas acústicas em canções de uma riqueza distintiva, convoca aqui toda a gente a quem costuma dar a mão (a própria Márcia, Julie and the Carjackers, João Paulo Feliciano e Francisca Cortesão), num disco que ameaça querer soar aos Lambchop mas é sempre desviado a caminho dos Eels (fase Daisies of the Galaxy).

E este desvio dá-se não só num plano estritamente musical, como também em termos de postura: Walter Benjamin não faz música que soe séria e em que cada acorde caia sobre a guitarra ou o piano com o peso de ter escorregado das costas de um estivador; pelo contrário, The Imaginary Life of Rosemary and Me é quase lúdico, trata o amor não com um trágico sentido shakespeariano mas sim com a leveza de quem consegue extrair matéria pop estival de qualquer situação. Também por isso Mary avança como se fosse a mais bela canção desolada de sempre (Fade Into You, Mazzy Star) e não é. Também por isso a magnífica Airports and Broken Hearts avança a reboque de umas percussões de cruzeiro pelo Caribe e assume o seu tropicalismo de fancaria, ainda que gravada provavelmente num cinzento quarto em Londres com uma esplendorosa vista - em dias de pouco nevoeiro - para uma parede de tijolo.

E é isso que guia esta pop belíssima, estas canções luminosas - são simples, descomplicadas e não querem mais do que 2/3 minutos de vida.

Senhor do seu mundo

Jack White

Blunderbuss

Third Man; distri. Popstock

mmmqn

Blunderbuss é o primeiro álbum a solo de Jack White, distintíssimo cavalheiro do rock"n"roll da última década, mas não se espere qualquer revelação de algo que não lhe conhecêssemos. Jack White está nestas trezes canções na posição que guardou para si (e onde o colocámos, que são precisos dois, músico e público, para jogar este jogo). O de ícone de uma ideia de pureza rock"n"roll construída com criatividade, precisão estética e fervor sentimental.

O Jack White de Blunderbuss é um porto seguro para o rock"n"roll como recuperado pelos White Stripes. Vive nele o espírito refundador das músicas americanas de raiz vivido nas décadas de 1960 e de 1970, transformado (e felizmente transtornado) pela aplicação punk do mandamento "menos é mais" ao blues dos primórdios e ao rock a caminho da canonização como eterna expressão do presente. Há nele irrequietude e desejo de mudança: guiado pelo som das marimbas, fez um álbum deliciosamente sinistro com os White Stripes chamado Get Behind Me Satan; fez blues primitivo e rock acometido de psicose incontrolável; fundou novas bandas, os Raconteurs e os Dead Weather (e até tocou bateria numa delas); e produziu ícones country (Loretta Lynn) e rock"n"roll (Wanda Jackson) do passado. Isso, porém, não apaga a sua natureza. Jack White é um tradicionalista, no sentido em que pretende preservar e tornar vivo e importante, agora, a memória e o legado em que nos fundámos.

Blunderbuss é rock dominado pelo piano eléctrico distorcido que confere um ar sinistro, perigoso, às canções. Blunderbuss move-se com a destreza de actor de cinema mudo a recriar histórias tétricas ao piano (magnífica Weep themselves to sleep), saca do falsete no tempo certo enquanto o riff de guitarra avança colado ao balanço imponente da bateria (Freedom at 21). São pedaços de toda a história de Jack White: Missing pieces tem algo de White blood cells, o terceiro álbum dos White Stripes; I"m shakin" é um portento rock"n"roll com coros arrancados à soul, riff económico e uma homenagem ao gigante Bo Diddley (I"m Bo Diddling, grita White); e a canção título, com a presença do pedal steel, reflecte a paixão pela country e a paisagem da Nashville onde vive e, não o esqueçamos que a canção não deixa, onde Bob Dylan gravou Blonde On Blonde.

Na segunda metade do álbum, esse sabor a Nashville torna-se mais evidente: mais e mais piano, mais guitarra acústica, mais country-rock e menos à vista do homem que faz os solos de guitarra, em descrédito há algum tempo (sentimo-los normalmente como um cortar a acção com egocentrismo desnecessário), soarem a componente indispensável do discurso rock"n"roll (porque Jack White os faz como extensão da sua voz aguda e cortante).

Blunderbuss é Jack White a apresentar-se novamente, a dizer que continua muito vivo e muito crente. Tem na explosiva I"m shaking, na dramática Weep themselves to sleep e na despedida Take me with youwhen you go, em forma de estranha e etérea valsa rock, três grandes canções. Tem no restante a confirmação que continua a reinar no mundo que criou convictamente. Que não mudará e que, muito provavelmente, será bom que não mude. Mário Lopes

Rufus Wainwright

Out of the Game

Universal

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A função para a qual Mark Ronson foi contratado equipara-se à de um decorador de interiores. Ronson - tipo que mexeu nos botões de muita gente mas, para o caso, interessa-nos citar Amy Winehouse e Lily Allen - foi chamado por Rufus Wainwright quando, num lampejo de lucidez, o músico percebeu que já estava na hora de parar de brincar às divas (Callas, Garland, etc.). Depois de Poses, um monumento pop em que as sugestões operáticas existiam mas num nível quase rasteiro, bem aparadas, Wainwright não conseguiu resistir, deixou-se ir no embalo e entregou-se a uma bola de neve de pop excessiva, barroca, levada a um tal auto-deslumbramento que se tornou inimiga de si mesma.

A chegada de Ronson à discografia do cantor canadiano funciona com essa premissa de que, apesar dos afectos, há um excesso de tralha que terá de acabar no contentor do lixo. Out of the Game é, precisamente, um disco de limpeza e arrumo. E o sucesso dessa limpeza acontece graças a uma muito acertada decisão de ajustar o espelho retrovisor até encontrar com nitidez os anos 70. Logo no arranque, Rufus parece ter ido levantar as guitarras ao George Harrison de All Things Must Pass, os teclados ao Elton John de Goodbye Yellow Brick Road e muitos dos arranjos ao armazém onde se encontra a Philly soul setentista dos Delfonics. Neste movimento, Rufus recupera algo que perdera: um espaço em que a sua voz pode espraiar-se sem entrar em competição com secções de cordas omnipresentes.

Rufus Wainwright deixou de querer ser Ícaro e saiu de uma espiral épica. Agora quer ser apenas um gajo com boas canções. Antes assim. G.F.

Nice Weather for Ducks

Quack!

Omnichord; distri. Optimus Discos

mmmnn

O nome da banda é inacreditavelmente indie, no sentido adolescente e "fofinho" twee do termo, mas a música não é feita de inocência. Quack!, o álbum de estreia da banda de Leiria, é uma síntese feliz daquilo que tem sido a pop desde o início do século XXI, ou seja, desde que os Animal Collective voltaram a transformar harmonias vocais em matéria essencial, desde que os Vampire Weekeend resgataram guitarras com ginga africana para a concisão da canção ocidental, desde que os MGMT descobriram que o psicadelismo ainda é uma arma capaz de conquistar o coração das massas.

Os coros como sombra da voz principal são uma constante, a bateria rufa estrada fora para que o povo dance, as guitarras bamboleiam com uma alegria contagiante e há sintetizadores de brincar a iluminar o salão de baile da caixinha de música que são os Nice Weather For Ducks - que são, ressalve-se, os Nice Weather for Ducks nos melhores momentos, ou seja, quando são solares mas atravessados por uma melancolia pouco tropical, como em 2012, o primeiro single, em Little Jodie (a Foster) ou nessa Bollywood que poderiam ser uns Yeasayer despidos (felizmente) das camadas new age.

Neste momento, porém, os Nice Weather For Ducks não são apenas o que descrevemos. Existe um outro lado. E nesse outro lado, os patos escondem-se do sol que brilha lá fora, fecham-se na toca e entregam-se à introspecção (guitarras em turbilhão controlado e voz procurando gravidade, o que é traço típico e genérico do indie século XXI que não aprecia abanar as ancas).

Digamos que, quando dançam, os Nice Weather For Ducks são uma óptima promessa. Concentremo-nos nisso. M.L.

Clássica

O olhar de Sokhiev

A 5ª Sinfonia de Tchaikovsky como nunca a ouvimos antes, numa dramaturgia empolgante, rigorosa e avassaladora. Rui Pereira

Tchaikovsky e Chostakovitch

5ª Sinfonia e Abertura Festival

Orquestra Nacional do Capitólio de Toulouse

Tugan Sokhiev, direcção

Naïve V 5252

mmmmm

O jovem maestro Tugan Sokhiev alcança um domínio da Orquestra Nacional do Capitólio de Toulouse perfeito, como se a dirigisse a partir de uma consola, controlando todos os detalhes do som, mas também do silêncio, propondo um novo olhar sobre obras-primas do repertório. As madeiras da orquestra afinadíssimas e calibradas, demonstrando um trabalho de ensaio primoroso. A soma dos outros naipes segue o exemplo num jogo de polifonia empolgante e muito bem captado pelos técnicos da Naïve. O resultado é uma junção inequívoca em todos os ataques e nas oscilações dinâmicas, um controlo que permite burilar todos os inícios e finais de frase e jogar os trunfos do silêncio e dos contrastes como veículos essenciais numa dramaturgia de grande intensidade. Claro que o repertório sobre o qual estamos a falar é a Sinfonia nº 5 de Tchaikovsky, um dos expoentes máximos da música programática que nos conta uma história de grande detalhe marcada pela ideia de um destino trágico. O tipo de direcção altamente personalizada de Sokhiev é essencial para ouvirmos novamente a sinfonia e atrevo-me a dizer que nunca tinha escutado uma versão tão convincente. O jogo de coloridos no segundo andamento é miraculoso contribuindo para intensidade emocional ímpar. A Valsa é de uma elegância absolutamente charmosa e o último andamento é, como deve ser, avassalador.

Dar um ar festivo à música de Chostakovitch não é tarefa fácil. Tugan Sokhiev alcança o feito com tempos vertiginosos, leveza e clareza de articulações, fazendo da orquestra um instrumento virtuoso e desta versão da Abertura Festiva um momento triunfante. Um disco imperdível.

Jazz

Vintage Wes

Registo precioso de algumas das primeiras gravações de um dos maiores guitarristas jazz de sempre. Rodrigo Amado

Wes Montgomery

Echoes of Indiana Avenue

Resonance, dist. Distrijazz

mmmmm

De forma surpreendente e algo misteriosa, começaram a surgir em 2008 rumores que davam conta do aparecimento de gravações inéditas do guitarrista Wes Montgomery, captadas em início de carreira e sem qualquer informação relativa à sua origem, data ou músicos participantes. Por se tratar de um dos gigantes do jazz, um dos mais extraordinários guitarristas de sempre, Michael Cuscuna, produtor histórico responsável por inúmeras gravações clássicas, resolveu investigar. Confirmada a autenticidade, e perante uma música vibrante que incluia versões de Round Midnight, Straight no Chaser ou Body & Soul, Cuscuna reuniu esforços para encontrar informação sobre as gravações, entrevistando músicos, engenheiros de som e especialistas. O trabalho de George Klabin fez o resto, num meticuloso processo de engenharia sonora que recuperou sonicamente as fitas - um assombro nas 5 primeiras faixas do disco e em Body & Soul, tendo em conta que se tratam de gravações da década de 50. O que é mais extraordinário constatar é que já nesta altura o fraseado e sentido de swing de Montgomery reunia todos os atributos que fariam dele um ícone do jazz. Ouça-se a subtileza de Round Midnight (com um dos melhores solos do disco), a vibração emocional de Nica"s Dream, ou a electricidade pura que carrega o ar e o faseado da sua guitarra na fascinante improvisação final, After Hours Blues. Antecedendo o seu contrato com a Pacific Jazz Records, numa sequência de acontecimentos que fizeram história e que seriam abruptamente interrompidos 10 anos depois, estas gravações soam preciosas e vibrantes, um daqueles tesouros que nos fazem reconciliar com os valores mais clássicos do jazz.

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