Um actor na Escola do Exército

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Otelo num palco a cantar, em 1955, em Lourenço Marques (cópia cedida por Otelo ao PÚBLICO em 2009) álbum pessoal de otelo/ana banha

Otelo, O Revolucionário é a primeira biografia de Otelo Saraiva de Carvalho. Escrita por Paulo Moura, jornalista do PÚBLICO, e editada pela D. Quixote, vai ser lançada no dia 25 de Abril, na Feira do Livro de Lisboa, com a presença do biografado

Logo no primeiro ano, chumbou. Maria Dina Afonso Alambre, uma rapariga que tinha sido sua colega de turma em Lourenço Marques, viera também para Lisboa, para estudar Medicina. Ficara hospedada num lar na Praça José Fontana, em frente ao Liceu Camões.

Conheciam-se há muito tempo, porque o pai de Dina era colega de Eduardo nos correios. O relacionamento tornou-se mais próximo quando ficaram na mesma turma, mas não chegou a aprofundar-se porque Otelo vinha muitas vezes para a Metrópole. Quando, terminado o sétimo ano, Dina veio também, o pai falou com Otelo, meio a brincar, meio a sério. "Então agora que estão lá os dois, tome conta da minha filha."

O lar da José Fontana ficava mesmo no caminho para a Escola do Exército, e Otelo, a pretexto da recomendação do pai de Dina, visitava-a com frequência. Ela tinha chegado a Lisboa em Setembro. Em Janeiro começaram a namorar, o que logo se tornou na actividade principal do jovem cadete. Em segundo lugar vinha o teatro. Só depois o estudo. Mal chegou à Escola Militar, organizou um grupo de expressão dramática, algo que a instituição nunca tinha tido. Reuniu um grupo de cadetes como actores e pediu autorização para convidar um encenador e actores profissionais. António Manuel Couto Viana aceitou encenar a peça, de sua autoria, O Acto e o Destino. Foi à cena no Teatro Rivoli, e foi um êxito.

Quando chegou a época dos exames, Otelo não tinha ilusões. Sem saber como, ainda foi a uma prova oral, à cadeira de Tiro de Artilharia 1. O catedrático, tenente-coronel Campos Andrada, e o seu adjunto, major Augusto Gomes Pastor Fernandes, um homem que pouco depois se veria envolvido na chamada Intentona da Sé, em 1959, começaram a fazer perguntas. Mas Otelo, mal subiu ao estrado, esclareceu logo: "Meu tenente-coronel, não vale a pena fazer-me qualquer pergunta. Porque eu disto nada sei. Não estudei nada, portanto estou aqui para chumbar."

"Calma, você está é nervoso...", dizia o catedrático, sem perceber bem qual era a estratégia do aluno.

"Não é isso. O facto é que eu não sei nada. Não vale a pena." Desconcertado com aquela atitude, Campos Andrada ainda levou Otelo para fora da sala, pedindo-lhe que tentasse fazer o exame, porque ele o ajudaria. Recusou-se. "Seria embaraçoso estarem a fazer-me perguntas e eu ficar ali calado... Eu que até sou um tipo que gosta de falar. Não, isto é para o chumbo."

No ano seguinte, conseguiu passar, com notas excelentes nas áreas de comando e medíocres nas disciplinas teóricas.

Numa prova oral de Matemática, o mestre-examinador, major Alcides Oliveira, chamou-o ao estrado. Otelo fez um exame miserável.

"Bem, Saraiva de Carvalho, vamos considerar a coisa assim: eu sei que você faz para aí umas imitações, entre as quais a minha. Pois vou conceder-lhe uma última oportunidade. Você vai imitar-me. Se eu gostar da imitação, dou-lhe 10. Se não gostar, você chumba."

Quando Otelo terminou, Alcides Oliveira aplaudiu. "Está perfeito. Tem 10. Passou."

Mas foi com o professor-adjunto de Tiro que o tinha reprovado no primeiro ano, o major Augusto Pastor Fernandes, que percebeu que as tentativas dos militares para derrubar o regime já tinham começado.

Pastor Fernandes era um homem que Otelo admirava. Reconhecia-lhe uma grande envergadura moral e intelectual, o que, à semelhança do que sucedia com os antigos colegas de liceu mais velhos que a PIDE prendia, o colocava acima de qualquer suspeita.

Onze de Março de 1959. Ia realizar-se o jogo de básquete da equipa da Academia Militar (a que Otelo pertencia) contra a do Instituto Superior Técnico, a contar para o campeonato universitário. Para a manhã seguinte estava marcado um teste da disciplina de Tiro de Artilharia e, como de costume, não ia haver tempo para estudar. O jogo, obviamente, era mais importante e Otelo pediu ao chefe de curso que telefonasse ao professor, implorando pelo adiamento do ponto.

Pastor Fernandes atendeu o telefone.

"Adiar? Com certeza. O ponto fica adiado, obrigatoriamente, sine die. Isto porque, neste momento, estão aqui em minha casa dois agentes da PIDE que me vão levar preso para Caxias, ou para a Trafaria, ainda não sei bem." Pastor Fernandes, que participara na Intentona da Sé, seria "deportado" para Timor, e depois passaria à reserva.

No ano anterior, Humberto Delgado fizera a sua campanha. Aos olhos de Otelo e dos outros estudantes da academia, Delgado era um militar sem mácula. Apoiara o golpe de 1926, que implantou a ditadura, e fora fiel a Salazar durante toda a sua carreira. Mas desde que, em 1952, fora nomeado adido militar na embaixada portuguesa em Washington, a sua posição em relação ao regime português começou a alterar-se. Quando voltou, depois de ter sido chefe da missão militar portuguesa junto da NATO, estava disponível para protagonizar um movimento de oposição por vias legais.

Apesar da sua política de neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal optou depois, numa jogada de colagem aos vencedores, por integrar as estruturas da NATO. Vários oficiais superiores passariam a ter formação com as forças americanas e de outros países ocidentais aliados, o que influenciaria profundamente a sua mentalidade e a sua visão. Esta "geração NATO", que ascenderia rapidamente aos altos cargos, viria a protagonizar uma ruptura latente entre os poderes político e militar em Portugal. Nesse sentido, Delgado seria um precursor do que se passaria mais tarde, desde o golpe de Botelho Moniz, em 1962, até ao 25 de Abril de 1974.

Candidato à Presidência da República, Delgado afirmou, quando lhe perguntaram o que faria com Salazar após ganhar as eleições: "Obviamente demito-o." Criou um imenso movimento popular em torno da sua campanha, mas depois perderia as eleições, graças à fraude organizada pelo regime.

Enquanto o país vivia essa ilusão eleitoral, Otelo, aproveitando a boleia, num Citröen 2 CV, de duas francesas amigas da namorada, viajou até Paris. Solange e Michelle estavam hospedadas no mesmo lar de Dina. A primeira tinha estado cá a fazer uma pesquisa, para a sua tese de licenciatura, sobre moinhos de vento e azulejos portugueses. Mais tarde tornar-se-ia inspectora-geral do ensino do português em França. A segunda era casada com um jovem veterinário em comissão militar na Argélia. Ligeiramente mais velhas do que Otelo, eram raparigas cultas e viajadas, que pertenciam a um mundo aberto e livre, numa altura em que Portugal era um país fechado num casulo de mentiras.

A viagem demorou uma semana, apesar da pressa que Solange e Michelle tinham em chegar, para votarem a favor da autodeterminação da Argélia no referendo organizado por De Gaulle. As conversas versaram quase sempre sobre isso, sobre a democracia dos países europeus e sobre o regime ditatorial português. Otelo sentiu-se humilhado por ser estudante militar num país de regime fascizante.

"Os militares são a principal base de apoio do regime", diz uma.

"Isso não é bem assim. Nós, os militares, não estamos assim tão submissos ao regime", responde Otelo.

"Mas como, se vocês são o derradeiro bastião da ditadura?", argumenta a outra. E Otelo contra-ataca:

"É dentro da instituição militar que eu tenho a possibilidade de derrubar a ditadura."

"Isso nunca vai acontecer, porque vocês são a última defesa que o regime tem, face a uma insurreição que possa surgir."

"Não", insiste Otelo, tentando convencer, ao mesmo tempo, as raparigas e a ele próprio. "Eu vou ser militar para derrubar a ditadura."

Foi nesta viagem que Otelo teve pela primeira vez contacto com a realidade das democracias ocidentais. Ficou fascinado. No início do ano tinha entrado em vigor o Tratado de Roma, que instituía a CEE. A França iniciava o processo que levaria à independência de todas as suas colónias africanas.

Na cabeça de Otelo começou a construir-se um ideal de sociedade que integrava elementos ideológicos como a liberdade de expressão, a iniciativa individual, a autodeterminação dos povos. Três anos depois, seria enviado para Angola, para defender a Pátria dos terroristas.

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