Mais atletas e maior esforço físico potenciam casos de morte súbita
Especialistas alertam que exames médicos são fundamentais para evitar paragens cardíacas em desportistas. Morte de Morosini acontece no país que é o modelo na prevenção destes casos
O caso do futebolista italiano Piermario Morosini - que desfaleceu fatalmente no sábado, durante o jogo entre o Pescara e o Livorno - reabriu o debate sobre a morte súbita no desporto, até porque aconteceu no país que é o modelo na prevenção destes episódios. Estarão estes casos a aumentar? À falta de estatísticas credíveis, os especialistas contactados pelo PÚBLICO falam de um aumento, porque hoje há mais atletas, mais mediatização dos casos de morte súbita, treinos mais exigentes e porque o rastreio não é perfeito.
"Presumo que haja mais casos, porque há mais desportistas, há pior qualidade no rastreio e o recurso a substâncias dopantes, de que ninguém fala, também contribui para doenças do foro cardíaco", resume ao PÚBLICO Joaquim Fonseca Esteves, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Desportiva e ex-director do Centro Nacional de Medicina Desportiva. "Além disso, há mais casos do que as pessoas pensam, porque algumas mortes de jovens no interior passam despercebidas."
"O número de casos pode estar a aumentar um pouco em valores absolutos, mas não em termos relativos. Como há muito mais gente a praticar desporto, talvez haja mais mortes súbitas", acrescenta Nuno Cardim, cardiologista e coordenador do centro de miocardiopatia hipertrófica do Hospital da Luz.
João Paulo Almeida, médico do Benfica, acrescenta ainda um outro factor que, além da mediatização e da maior comunicação entre países, terá contribuído para o aumento do número de casos conhecidos: "Os atletas têm hoje cargas de treino que não eram habituais há dez ou 15 anos. E, portanto, os factores de risco aumentam."
A morte de um futebolista italiano em plena acção causou alguma surpresa nos especialistas em medicina desportiva. É que Itália é o modelo nesta área, tendo previsto na lei, desde os anos de 1980, exames médicos obrigatórios para os desportistas, que são sujeitos a testes semestrais e fazem avaliações anuais mais profundas, incluindo, entre outros, electrocardiogramas (em repouso e em esforço), ecocardiogramas e exames de urina.
"O rastreio médico-desportivo em Itália é muito mais exigente do que na maioria dos países e só é feito por médicos credenciados", explica João Paulo Almeida. Fonseca Esteves acrescenta que Portugal e França também têm exames deste tipo, embora no nosso país a teoria ainda esteja longe da prática.
Falta especialização
A lei portuguesa prevê que todos os desportistas inscritos nas federações sejam sujeitos anualmente a um exame de aptidão que inclui um electrocardiograma, além de uma radiografia de tórax de três em três anos. O problema para Fonseca Esteves é os exames não serem conduzidos por médicos especializados em medicina desportiva.
"Entre 1990 e 2004, analisei 82.423 atletas e reprovei 133, 115 dos quais por causa cardiovascular", conta Fonseca Esteves. E acrescenta: "Temos mais de 500 mil praticantes federados e muitos deles vão aos sítios errados. Há gente de medicina do trabalho a fazer estes exames, o que é um escândalo", critica, numa preocupação que é partilhada por João Paulo Almeida. "Só médicos credenciados deviam fazer estes exames médico-desportivos, que deviam ser guardados e autenticados. Já fizemos esta sugestão à tutela", conta o médico do Benfica.
Mas afinal por que razão é tão importante ser especialista em cardiologia desportiva? "Uma coisa é ler 60 electrocardiogramas de atletas, outra é de 60 doentes", diz Fonseca Esteves. "Às vezes, é muito difícil separar as alterações fisiológicas provocadas pela prática desportiva das alterações provocadas pelas doenças, mesmo recorrendo a exames mais sofisticados, como ecocardiogramas", acrescenta Nuno Cardim. Sublinha a importância destes meios complementares de diagnóstico, uma ideia aceite na Europa, mas contestada nos Estados Unidos, por motivações económicas.
Como evitar a morte súbita?
Cada vez que um desportista morre em acção regressa-se sempre à pergunta: como é possível evitar isto? E os especialistas regressam sempre à resposta-mãe. "A única forma de evitar a morte súbita é fazer estes exames e que eles sejam feitos por profissionais qualificados", diz Joaquim Fonseca Esteves. Alerta, por outro lado, para o efeito do uso de substâncias dopantes e para a importância das autópsias "para determinar a causa correcta e profunda da morte". "Estes exames evitaram já muitas mortes. Se não existissem, era o descalabro total", acrescenta João Paulo Almeida.
Algumas vezes, não é possível de todo evitar a morte súbita, porque há doenças congénitas indetectáveis, cuja primeira manifestação é a própria morte. Mas o médico do Benfica também alerta para "situações intercorrentes, como gripes e infecções, que, se não forem tidas em linha de conta, podem levar a incapacidades temporárias e resultar em problemas cardíacos em casos de esforços elevados": "Por isso é que no Benfica um atleta com gripe ou infecções não se pode treinar."
Além de salientar que qualquer adolescente que queira praticar desporto deve fazer um exame físico e um electrocardiograma, o cardiologista Nuno Cardim aponta ainda outro tipo de prevenção. "A morte súbita não é o fim da história, é o princípio. Deve alertar imediatamente toda a família, para ser examinada, porque muitas vezes está associada a doenças cardíacas que são hereditárias", diz. Revela que a Sociedade Portuguesa de Cardiologia está a organizar o registo nacional de miocardiopatia hipertrófica.
Em Coimbra está também a decorrer um rastreio de desportistas amadores, sob o lema Dá-nos 5 minutos e nós damos-te 1 Vida, até porque "a morte súbita cardíaca está entre as cinco principais causas de morte nos jovens", como disse Rui Providência, coordenador do projecto.