Um dia depois, o golpe em Bissau ainda é um mistério

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A fronteira junto ao Senegal foi fechada na sequência do golpe AFP/JULIEN TACK

Há sobretudo perguntas sobre o golpe de Estado que abalou a Guiné-Bissau em tempo de eleições. As detenções sucedem-se e baralham análises

Nas ruas de Bissau, os golpistas estão fardados, mas não é claro quem está por detrás do golpe que, há dois dias, fez a Guiné regressar ao seu velho ciclo de violência. O primeiro-ministro e candidato presidencial, Carlos Gomes Júnior, o Presidente interino, Raimundo Pereira, e o chefe do Estado Maior das Forças Armadas, António Indjai, estavam ontem à noite detidos, tal como alguns ministros. E há membros do Governo refugiados nas delegações da União Europeia e da Cruz Vermelha.

Com os olhos da comunidade internacional postos sobre o seu pequeno território - onde vivem 3500 portugueses - e uma declaração do Conselho de Segurança da ONU a condenar "a ingerência de militares na política" do país, os golpistas disseram ontem que querem um governo de união nacional.

A sua motivação, explicaram em comunicado, foi evitar que as forças angolanas no país controlem os militares guineenses. Invocam um "documento secreto" de Gomes Júnior, alegadamente mandatando a Missão de Segurança Angolana na Guiné-Bissau (Missang), composta por menos de 300 efectivos, para "aniquilar as Forças Armadas da Guiné-Bissau".

O desagrado pela presença da Missang, cuja missão técnico-militar inclui a reforma das Forças Armadas, terá tido um efeito mobilizador do aparelho militar para o golpe. "Começou a criar-se a ideia de que eram a guarda pretoriana de Gomes Júnior", disse ao PÚBLICO Eduardo Costa Dias, investigador de Estudos Africanos no ISCTE-IUL (Instituto Universitário de Lisboa).

Um analista no terreno defendeu que, embora formalmente haja uma unidade de comando, os militares estão divididos. Há informações de que os pára-comandos recusaram juntar-se ao golpe, e que na marinha e no exército não há consenso. O Conselho de Segurança, no texto de condenação, é explícito neste ponto e diz que o golpe foi feito por "alguns elementos das Forças Armadas". Entre estes "alguns", estão, segundo a AFP noticiou já à noite, o vice-chefe de Estado-Maior, e os chefes do Exército, da Marinha e da Força Aérea - estes foram os homens que se reuniram com partidos da oposição. Uma fonte diplomática sublinha que a sua presença na reunião não traduz coesão militar.

Depois de 24 horas intensas de contactos, informação e contra-informação - e muitos rumores -, uma fonte em Bissau sublinhou a ideia de que o golpe "está no início e os cenários estão muito abertos".

Os olhos estão postos sobre Kumba Ialá. Porque o candidato e ex-Presidente rejeitou os resultados das eleições de Março (entre os cinco que contestaram), porque lançou várias ameaças públicas na sequência dos resultados (frases como "quem se aventurar a fazer campanha [na segunda volta] assumirá a responsabilidade por tudo o que aconteça") e porque os golpistas serão maioritariamente da sua etnia, balanta.

Na noite do golpe, Kumba fez um discurso cheio de sinais às 19h, às 20h, os golpistas detiveram o primeiro-ministro, às 20h30 o Presidente, e às 21h a televisão e sete rádios estavam em silêncio. As fronteiras foram fechadas, muitas embaixadas estão sob vigilância dos golpistas e a sede do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), do governo, foi atacada.

Quem são os golpistas? Incluem elementos das Forças Armadas mas, nas palavras de um observador do país, "é um exército que parece um queijo suíço, cujos buracos são preenchidos por pessoas próximas do Partido da Renovação Social, de Kumba Ialá", uma milícia cuja espinha dorsal é a base étnica - balanta, a mesma de Kumba Ialá. Será uma força de cerca de 300 homens, organizados de acordo com os clássicos três anéis de uma operação deste tipo: as forças nos locais, que prendem e ocupam pontos estratégicos; as que fazem a guarda (como barragens de estrada); e os mais distantes, na reserva, prontos para avançar.

Na primeira volta das eleições presidenciais, a 18 de Março, o ainda primeiro-ministro foi o mais votado, tendo obtido 48,97% dos votos de um escrutínio considerado justo por observadores internacionais mas que cinco opositores, entre eles o antigo Presidente Kumba Ialá, segundo com 23,26%, consideram ter sido manchado por fraudes.

Medo em Bissau

A reacção militar poderá, na opinião de Xavier Figueiredo, director do boletim África Confidencial, ser explicada por duas ordens de razões que levariam a uma redução da influência das Forças Armadas e da tutela que têm mantido sobre o poder político: a perspectiva de eleição de Gomes Júnior, um defensor da reforma do aparelho militar; e o receio de um reforço da presença militar estrangeira.

"Há uma convergência de interesses no sentido de adiar as eleições", considera Costa Dias. Já o director do África Monitor não arrisca falar em "aliança", mas refere "convergência de pensamento" entre golpistas e Kumba Ialá.

Apesar de não haver notícias de mortes e de só ter havido tiros de bazuca e armas ligeiras na quinta-feira à noite, o ambiente era ontem de medo em Bissau, com muitas pessoas fechadas em casa.

Contactadas pelo PÚBLICO, algumas não quiseram falar. Outras, ligadas a movimentos da sociedade civil, alegaram razões de segurança e o facto de terem recebido ameaças de morte para não se pronunciarem sobre o que está a acontecer. Era grande a incerteza sobre o paradeiro de muitas figuras ligadas ao Governo.

O presidente da CNE, Desejado Lima da Costa, terá conseguido fugir, depois de ter sido avisado para o risco de detenção. Fernando Gomes, ex-presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos e actual ministro do Trabalho, será um dos que foi levado de casa - uma das residências vandalizadas - e estará desaparecido, possivelmente também preso no forte de Amura. Uma lista de pessoas terá recebido ameaças de morte. Será o caso do jornalista António Aly Silva, que escreve sobre a Guiné-Bissau no blogue Ditadura do Consenso.

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