Viciados no passado

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JOHN SMITH/CORBIS

Nos anos 2000, refazer tornou-se uma obsessão: estes são os dias da reciclagem, do remake, da nostalgia como indústria. De Mad Men ou Amy Winehouse às cadeias de retro-food às louças Bordallo Pinheiro, nunca a cultura popular esteve tão viciada na sua própria história.

Há 20 anos, não faltava quem assumisse que em 2012 nos alimentaríamos de pílulas coloridas, que iríamos de férias de Verão até à lua, que andaríamos em carros voadores ou que a deslocação até Nova Iorque se faria por um túnel por baixo do Atlântico.

Afinal, ainda vamos até Nova Iorque de avião, os comboios ganharam novo alento, a alimentação biológica e o regresso à terra estão na ordem do dia e os grandes avanços tecnológicos privilegiam a comunicação através de aparelhos de bolso entre amigos, e não com extraterrestres.

Em 2012 escutamos música do passado, ou do presente, mas com um travo enorme de nostalgia: dos Black Keys a Lana Del Rey, dos Alabama Shakes a Florence and The Machine. E não é apenas uma questão de sonoridade, é também uma questão de roupas, de atitude, da forma como se está.

Vemos filmes que lembram a história do cinema como O Artista ou que evocam realizadores como Spielberg (Super 8, de J.J. Abrams) ou ícones de Hollywood como Marilyn Monroe (A Minha Semana com Marilyn). Ao mesmo tempo, regressam heróis de outrora, de Indiana Jones a Rambo.

Na TV, preferimos as séries que remetem para épocas passadas, como Mad Men, e quando compramos um amplificador para o iPhone tentamos encontrar qualquer coisa com aspecto de rádio dos anos 50. Na roupa, não descuramos o que é vintage, e designers de moda como Marc Jacobs ou Anna Sui tratam de recriar épocas prévias mal elas terminam. Quando tiramos fotos, gostamos que elas sejam filtradas para parecerem antiquadas, e quando se trata de decorar a casa qualquer objecto ou móvel de design retro serve para polir a coisa.

Nem a comida (há cadeias de retro-food), a pornografia (alusões eróticas e colecções de revistas de determinadas épocas) ou o universo dos videojogos são imunes a esta propensão. E que dizer da polémica do ano passado, em Espanha, quando a viúva de Jorge Luís Borges mandou retirar das livrarias El Hacedor (de Borges), uma recriação literária de Agustin Fernández Mallo, a partir do livro do escritor argentino?

Depois da década de 90, é como se vivêssemos no tempo dos "re" (reformulações, remisturas, reciclagens, revivalismos, remakes, reedições, retrospectivas e referências). Nenhuma área criativa parece imune à omnipresença do passado. "O passado ajuda-nos a dar sentido a coisas que se desenrolam à nossa frente a grande velocidade", escreve a docente da Universidade de Purchase Elizabeth Cuffey em Retro: the culture of revival. "Não é apenas por segurança que recorremos ao passado, é também por uma questão utilitária: queremos a vantagem do novo com o aspecto do velho. O novo é a ferramenta, não inevitavelmente o conteúdo, que é o somatório do actual e do antigo."

Indústria da nostalgia

Em momentos de desordem, quando parece não existir um rumo bem definido, tendemos a regressar ao que sempre conhecemos. Ao que consideramos ser estruturante. Portugal não passa ao lado desta inclinação, embora com nuances próprias, talvez porque a reconstrução da nossa memória seja, em grande parte, um processo em aberto.

A geração de 80 queria cortar com o passado. Por clivagem ideológica, mas também porque desejava descolar do Portugal saudosista, e colar-se à Europa cosmopolita. Criou-se, por isso, uma relação estranha com o passado cultural português, entre a quase indiferença e o conflito. Já neste século, aos poucos, o passado deixou de constituir estigma.

Não só o passado conotado com uma possível identidade portuguesa (do fado às peças de Bordalo Pinheiro), mas também o retro cosmopolita, vivido enquanto "marca", que foi surgindo ao longo dos anos por esse mundo fora. E Lisboa ou Porto seguem essa linha, através da proliferação de restaurantes, bares, cafés, festas, lojas de roupa, de discos, de objectos ou de mobiliário que cultivam esse gosto pelo vintage. Até as motas Vespa voltaram a circular pelas estradas e para bailar aí está a orquestra Real Combo Lisbonense, liderada pelo artista e músico João Paulo Feliciano, que recupera temas portugueses dos anos 50, sintoma de que já existe à-vontade na interacção com o passado.

Mas uma coisa é iluminar o passado ou reactivá-lo, fazendo-o dialogar com o presente. Outra é a simulação. A replicação. A estilização superficial. De todas as áreas criativas, aquela onde existe maior consciência da emergência de uma verdadeira indústria da nostalgia talvez seja a da música popular, pela sua força disseminadora e pela velocidade com que apreende o que se passa à volta, ao mesmo tempo reflectindo e impulsionando o sentir premente dos tempos actuais.

Nos últimos tempos, são incontáveis as bandas que regressaram ao activo (Pixies, The Police, Led Zeppelin, My Bloody Valentine, Stooges, Sex Pistols), os discos de tributo (Nirvana), as reedições (dos Beatles aos grupos mais obscuros de determinadas épocas) ou os concertos assentes na interpretação de álbuns clássicos (Primal Scream), que denunciam a obsessão da cultura pop pelo seu passado imediato.

É isso que Simon Reynolds, jornalista e ensaista inglês a viver em Los Angeles, proclama em Retromania: pop culture"s addiction to its own past, obra em que explora a obsessão actual pela história da cultura popular. "Graças à Internet, o passado está disponível para todos. No caso da música popular é fácil escutar tudo, ou quase tudo, o que foi gravado, o que contribui para que nunca deixemos verdadeiramente de lado o passado", dizia-nos aquando do lançamento do livro. "Dessa forma é difícil formar-se uma identidade, uma direcção, algo de que a maior parte das bandas dos últimos dez anos carece. Ou seja, não é possível dar uma resposta imaginativa a tantos estímulos à nossa volta."

Passado, presente e futuro, ao mesmo tempo

Depois da Segunda Guerra Mundial, e em particular dos anos 50, quando no Ocidente se forjou a condição teenager - teoria cada vez mais posta em causa [ler Teenage - the creation of youth culture, de Jon Savage, que inventaria uma série de subculturas jovens do início do século XX] -, que distinguimos as décadas pela cultura, combinação de comportamentos, identidades grupais, criações e consumos, da música à moda, do cinema à TV. Para todas as décadas temos um imaginário, rituais, roupas e orientações.

Aconteceu nos anos 50 com os rockers. Nos 60 com mods e hippies. Nos 70 com o punk e disco. Nos 80 com o hip-hop e a cultura raver. Nos 90 com diversas expressões da música de dança e com o grunge. Mas a década de 2000 parece ter deixado um vazio. Parece não ter deixado um rasto. Parece não ter uma identidade. Não porque não tenha ocorrido nada, mas porque o que aconteceu adveio por excesso, de forma pulverizada e rápida, não chegando a formar um todo coerente. É como se a cultura popular da última década se devorasse a si própria, em ciclos cada vez mais curtos, dificultando novas orientações. É como se o arquivo da história fosse engrossando com o tempo, disseminando-se com a Internet, o YouTube e as mais recentes tecnologias.

No caso da música, diz Reynolds, esse facto contribui para criar a ideia de que todos os géneros já foram revisitados. Para ele, o último fenómeno com características novas foi o movimento Rave nos anos 90.

"Sempre existiram artistas estilisticamente anacrónicos ou redundantes. A diferença é que antes eram marginais", diz, pensando nos anos 2000, marcados pelo regresso do rock (White Stripes, The Hives), do pós-punk (Franz Ferdinand), da folk (Fleet Foxes, Devendra Banhart), da soul (Amy Winehouse, Adele) ou da pop electrónica dos 80 (Lady Gaga).

Parece que vivemos num contexto de cultura derivativa, onde existe uma enorme dispersão, uma impossibilidade de focagem, pelo facto de a informação que nos chega ser demasiado amplificada. Hoje, talvez pela primeira vez na História, temos a sensação de que podemos aceder a todas as obras, de diferentes épocas, num ápice. Dantes, o acesso ao passado era parcial. Agora tornou-se cumulativo. Não admira que subsista uma impressão de que passado, presente e futuro se sucedem, não apenas um atrás do outro, mas todos ao mesmo tempo, conectando-se entre si, permeáveis. Em vez de uma história com percurso preciso e contínuo, temos regressos, anacronismos, descontinuidades, recuperações e convivências.

Sim, sempre foi assim. Mas agora essa consciência entra-nos pelos olhos dentro. Ou seja, continuam a existir desenvolvimentos e mudanças - e não apenas revivalismos ou recalcamentos do passado -, mas agora são inevitavelmente percepcionados de outra forma. Mais subtilmente.

"Continuo a encontrar, todos os anos, muitos discos que me agradam, embora seja diferente do que acontecia nos anos 80 ou 90", diz Reynolds. "Não por ser mais velho, como alguns poderão pensar, mas pela sensação de que a música se desligou da realidade do mundo, tornou-se epidérmica, uma espécie de funcionalidade. O problema dos suportes digitais é que eles não são exclusivamente para a música. Ou seja, acabamos por ouvir imensa música enquanto fazemos muitas outras coisas. Acaba por ser uma experiência prática, não artística."

"Mas quando um disco é bom não me preocupa se é ou não inovador", acrescenta. "Gosto de projectos actuais como Metronomy, Chairlift, Grimes ou Ariel Pink, mas tenho pena que a sua frescura não esteja ligada a uma disposição, não chegando a formar qualquer coisa como a cultura rave e jungle nos anos 90, que implicava uma identidade."

Do ponto de vista do consumidor, em décadas passadas aceder à música implicava esforço, relações de convivialidade; emprestavam-se discos, gravavam-se cassetes. Hoje tudo parece disponível. "Dantes existia alguma frustração porque não se acedia a muitas coisas, mas existia essa pulsão do desejo. Hoje há excesso de coisas, a quantidade substitui a qualidade da experiência. Não existe nada melhor, para mim, do que ficar preso a um disco, mas essa experiência é cada vez mais difícil. Em parte por isso, existe uma espécie de regresso ao vinil, à cassete, aos concertos, à experiência física. É preciso estar lá."

Hoje, o choque do novo continua a fazer-se sentir, mas manifesta-se de maneira diversa. "Os Animal Collective, Gonjasufi, o grime, o dubstep, esse tipo de coisas, continuam a inovar, misturando passado com elementos contemporâneos, mas a sensação de uma certa pureza inovadora foi-se", diz Reynolds. "A sensação de que estamos a ouvir qualquer coisa que nunca ouvíramos é cada vez mais difícil de advir."

Excesso de História

Resta saber se a pureza inovadora, como lhe chama Reynolds, não constitui uma idealização, qualquer coisa que não existe verdadeiramente. Encontrar uma voz singular implica adoptar e abraçar filiações, comunidades e discursos. Não se cria a partir do nada, mas sim da desordem. "Sim, é verdade, mas ao mesmo tempo, quando surge qualquer coisa de singular, é mais fácil, de imediato, no segundo seguinte, aparecerem quatro ou cinco a fazerem o mesmo, porque a tecnologia o permite. E lá se vai esse efeito de novidade."

Por outro lado, afirma, "as influências eram qualquer coisa de involuntário. A diferença é quando as influências são um fim em si mesmo e não um ponto de partida. Não existe nenhum problema em ser-se influenciado pelo passado. As peças de Shakespeare eram baseadas em velhas histórias ou lendas. Mas muitas das bandas rock de hoje limitam-se a evocar os dias gloriosos dos Led Zeppelin ou de Jimi Hendrix. As influências parecem ser escolhidas a dedo, como se fossem um portfolio do gosto, arrumadas em diversas prateleiras. É como se as pessoas as procurassem, o que é muito estranho, porque supostamente seria qualquer coisa sobre a qual não teriam grande controlo."

O excesso de História acaba por produzir um outro efeito peculiar. Se até há décadas atrás era aceite que pais e filhos consumiam coisas diferentes, hoje essa distinção é mais difícil de realizar. Há três anos, em entrevista a Lawrence Grossberg, um dos pais dos Estudos Culturais nos Estados Unidos, este dizia-nos que a sua geração - os baby-boomers dos anos 60 - havia crescido a pensar que a sua identidade residia na juventude, nessa ideia de que "tínhamos de parecer, agir e vestir como se tivéssemos sempre 20 anos, o que começou a criar um problema para os jovens que são, realmente, jovens". "De repente, toda a gente é jovem, e agora consumo a mesma música que os meus filhos", concluía.

Ou seja, a realidade mudou, ao nível da criação e dos consumos, mas as grelhas de leitura não. No caso da música, continuamos à procura de cenas, movimentos e revoluções, mas a forma como o cenário pop se tem rearranjado na última década exige outro tipo de leituras.

Não só porque já existe uma geração pós-Internet que cresceu com essa realidade, e tem um entendimento diferente da História (circular e não linear) e porque existem cada vez mais sintomas de que, em países pós-colonialistas e novas potências fora do âmbito ocidental, há um potencial cultural renovador, em parte alicerçado na forma como aí se lida com o fardo da História. Sem reverência e de forma descomplexada.

O Ocidente transporta excesso de memória. Tornámo-nos demasiado auto-conscientes. Tudo nos parece desligado da existência. E não é apenas nas artes e na cultura. Não é difícil encontrar pontos de contacto com aquilo que se passa hoje ao nível das grandes narrativas políticas. Uma sensação de entropia. De paralisia. De fim de qualquer coisa.

E no entanto, no meio da desordem, do intemperança de informação, da proliferação de suportes, de maneiras de ouvir, ver, ler, em todo o lado, a toda a hora, tanto criadores como consumidores não têm apenas como única opção regressar nostalgicamente ao que conhecem.

Podem perceber procedimentos em aberto, não recear a desarrumação e o que não conhecem, deixando-se envolver emocionalmente - sem passarem o tempo a sinalizar influências, signos que se repetem, variações das variações já entrevistas - quando vão um espectáculo, vêem um filme ou ouvem um disco. Às vezes basta valorizar a memória sem ficar preso à História e não temer incongruências e contradições - como a de um tempo potencialmente tecnológico imerso em nostalgia - porque é nesse fluxo que muitas vezes nasce qualquer coisa de novo e intenso.

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