O olho vivo de Saul Bass
A Laurence King reuniu os trabalhos de Saul Bass em livro: A Life in Film & Design traça o percurso modernista de um dos pais do design gráfico, autor das introduções e cartazes de filmes de Hitchcock, Preminger ou Billy Wilder.
Nos créditos iniciais de Psico de Alfred Hitchcock (1960), o título do filme surge sozinho, em letras brancas, no centro de um ecrã negro. De repente, como que cortadas pelas notas gritantes dos violinos de Bernard Herrman, a palavra psycho divide-se por três linhas, movendo-se nervosamente, por instantes, até voltar à sua forma estável. Esse sintoma de perturbação fará "raccord" com outro momento no filme: o assassínio da personagem de Janet Leigh na sequência do duche, cena frenética de quase cinquenta cortes e método pouco habitual em Hitchcock, que costuma preferir sequências prolongadas para suspender a tensão do espectador.
Esses dois momentos marcaram a memória dos espectadores de uma das maiores obras de Hitch. No entanto, não foram pensadas nem realizadas por ele. Quem as visualizou e dirigiu - e ocupou esse espaço sagrado de um dos mestres da história do cinema - foi um designer gráfico: Saul Bass. Quem é este cineasta?
Inventar o design
"Saul Bass foi um dos designers, em meados do séc. XX, que produziu imagens cuja profundidade e complexidade revelaram as verdadeiras possibilidades culturais do design gráfico", explica Alice Rawsthorn ao Ípsilon, crítica de design do International Herald Tribune. "À semelhança de Paul Rand nos EUA, Richard Hollis no Reino Unido ou Wim Crouwel na Holanda, Saul Bass produzia um trabalho que cumpria os objectivos funcionais pedidos a qualquer projecto de design, mas com uma concepção e execução de tal forma imaginativa que trazia com ele todo um outro conjunto de qualidades." Foi essa riqueza e modernidade no traço de Bass - desenhos que, pela sua simplicidade e vanguarda, possuíam um poder de sugestão que se reconhecia no âmbito do cinema - que chamou a atenção da indústria cinematográfica. Até 1941, ainda em Nova Iorque (onde nasceu em 1920), Bass trabalha, desta forma, no desenho e na promoção de filmes dos estúdios United Artists, Warner Brothers ou Twentieth Century Fox.Mas as formas simplistas com que os filmes são promovidos, ditados por critérios promocionais redutores e infantis, fazem com que Bass se desiluda no seu ambiente de criação. Mais do que mero ilustrador de serviço, o designer procurava uma plataforma de expressão com um maior fundo artístico, respeitando a sofisticação do espectador e chamando o seu olhar para as vanguardas artísticas do início do século. Ou nas palavras do próprio: "elevar a promoção dos filmes aos patamares estabelecidos por Man Ray e Jean Cocteau". Segundo Alice Rawsthorn, "o surrealismo foi uma influência importante para Bass, mas a principal influência foi o construtivismo russo e as imagens em movimento de György Kepes, que foi seu professor nas aulas nocturnas de Brooklyn College, assim como o seu mentor e compatriota László Moholy-Nagy." Para a crítica de design, Bass levou essa influência, mais tarde, para um terreno de massas - o cinema - evocando para isso outra obra-prima de Hitchcock: "Vemos isso na sequência de abertura de A Mulher que Viveu Duas Vezes [Vertigo, 1958] - abre com um plano do rosto de uma mulher a banhar-se em sangue e foca-se, depois, num frenesim de espirais que rodopiam dentro do seu olho." Bass teve essa ideia a partir de um livro encontrado numa livraria de segunda-mão, em Nova Iorque, escrito pelo matemático francês Jules-Antoine Lissajous (1822-1880). As suas formas nunca mais saíram da cabeça de Bass, e quando perguntou a Hitchcock de que tratava o seu filme ("obsessão", respondeu), soube imediatamente como ilustrar esse sentimento.
L.A., epicentro artístico
Bass só encontrou o ambiente necessário para essa criatividade quando se muda, em 1946, para Los Angeles. Nos primeiros anos do pós-guerra, a cidade é a capital criativa do país, abraçando o modernismo e virando-se para um espírito de vanguarda progressista. Entre os seus habitantes, o artista Man Ray, o arquitecto Richard Neutra, o filósofo Theodor Adorno ou o encenador Bertolt Brecht. Forma-se um grupo modernista à volta da revista Arts & Architecture (em que Bass participa graficamente) que promove o cruzamento entre design, arquitectura, música e fotografia, juntando o fotógrafo Moholy-Nagy, o pintor Hans Hofmann e o arquitecto Mies van der Rohe na mesma publicação, tal como trabalhos do fotógrafo Herbert Matter e do designer Alvin Lustig, influências decisivas em Bass. Por sua vez, Hollywood vê chegar autores com um gosto artístico formado, entre os quais os europeus Josef von Stenberg, Billy Wilder ou Otto Preminger, estes dois últimos responsáveis por alguns dos trabalhos mais conhecidos de Bass no cinema (o designer trabalhou em 13 filmes de Preminger, onde se encontram os emblemáticos O Homem do Braço de Ouro, 1955; Bom Dia, Tristeza, 1958; e Anatomia de um Crime, 1959).O realizador Bruno de Almeida (The Lovebirds, 2007; Bobby Cassidy, 2009) contextualiza os cruzamentos artísticos vividos nesse momento em Hollywood: "Nos anos 50, existe uma acentuada complexidade dramática e estética que tem convergências entre a música jazz, o cinema experimental e a pintura expressionista. É por essa altura que surge Saul Bass." Uma dinâmica que encontra os seus inícios no marcante trabalho gráfico de Falsa Acusação (1950; Joseph Mankiewicz), que arrisca a promoção de um filme com um trabalho gráfico modernista, abdicando de destacar nomes ou desenhar poses barrocas de actores conhecidos.
Bruno de Almeida lembra ainda que "Bass usou técnicas vindas da banda desenhada ou do cinema de vanguarda, e isso abriu muitas portas para se poder pensar na imagem de maneira diferente. Ele próprio foi consultor visual em certos filmes e alargou os horizontes dos cineastas com quem trabalhou." Assim, e para além de assumir funções de realização em Psycho, fez o mesmo para Amor Sem Barreiras (West Side Story, 1961, de Jerome Robbins e Robert Wise) na famosa cena de introdução e nos seus créditos finais, assim como na emblemática cena de corrida que abre "O Grande Prémio" (1966) de John Frankenheimer. Almeida salienta O Homem do Braço de Ouro e Anatomia de um Crime como "trabalhos geniais, tal como os filmes, assim como A Mulher que Viveu Duas Vezes e Intriga Internacional (1959) de Hitchcock." Do mesmo modo, destaca "a utilização magnífica da cor e das estátuas no genérico de Spartacus (1960; Stanley Kubrick), tal como Walk on the Wild Side (1962; Edward Dmytryk) e Uma Segunda Vida (1966; John Frankenheimer), uma das melhores sequências de abertura que conheço."
Ao cortar com o passado meramente decorativo das fichas técnicas, Bass transformou-as num trabalho abstracto e minimalista sobre o espírito dos filmes. André da Loba, ilustrador português com trabalhos no New York Times, Washington Post, Time ou Newsweek, afirma que "o trabalho de Saul Bass segue a filosofia do arquitecto Mies van der Rohe: less is more, [uma ideia] apropriada por Milton Glaser para o design que defende a redução dos elementos ao essencial para fazer passar uma mensagem." André da Loba refere a influência que Bass no seu próprio trabalho: "Gosto muito da abertura de Exodus [1960; Otto Preminger], do fim de "Amor Sem Barreiras" ou do começo de Anatomia de um Crime, que tentei "copiar" tantas vezes, tal como o genérico de introdução de O Grande Prémio. Mas o meu trabalho preferido é o cartaz de Bom Dia, Tristeza: aquele branco todo à volta de meia dúzia de pinceladas ainda hoje me dá arrepios." Ou como o próprio Bass explicou, "puxar uma ideia até aos limites em termos de abstracção e ambiguidade, mas mantendo-a legível. De certo modo, tornar o pensamento visível."
Alice Rawsthorn acredita que "estilisticamente, o trabalho de Bass nos anos 50 e no início da década de 60, sobretudo os genéricos influenciados pelo construtivismo, tem raízes fortes na sua época. Mas em termos conceptuais, mantém-se tão forte e fresco como era no seu tempo." Foi Martin Scorsese, na década de 1990, que reconheceu essa sensibilidade, cumprindo um gesto recorrente da sua própria carreira, explica Bruno de Almeida: "Com Saul Bass, Scorsese presta homenagem à tradição do cinema clássico, tal como fez com Bernard Herrmann na banda sonora de Taxi Driver [1976] ou Elmer Bernstein em A Idade da Inocência [1993]". Acrescentamos a memorável introdução de Tudo Bons Rapazes (1990), O Cabo do Medo (1991) ou o tom apocalíptico de Casino (1995), que anunciam a recorrente condenação em que caem as personagens de Scorsese.
Uma marca
Mas foi no campo das marcas que Saul Bass desenvolveu o seu trabalho mais conciso, oferecendo uma identidade a corporações como a Bell e AT&T, Warner ou Minolta, através de logotipos e campanhas promocionais. Gonçalo Cabral, designer gráfico responsável pela "brand identity" de empresas com a TAP ou CTT, explica que "Saul Bass, tal como Paul Rand, foi pioneiro no desenho das marcas, uma referência por conseguir resumi-las a uma ideia simples que fique na memória e consiga ser replicada. Naquela altura, não era normal alguém fazer isso." O designer português sublinha o âmbito transversal do olhar de Bass: "Todas as suas marcas contém essa essência do desenho, uma capacidade que também está presente nos próprios genéricos dos filmes. São trabalhos que servem uma composição, e quando retiradas desse espaço, mantêm-se uma marca fortíssima. A maior parte das pessoas reconhece-as sem saber de quem são ou o que são, mas se virem aquela mão ["O Homem do Braço de Ouro"], vão reconhecer uma sinergia muito forte."Bass cumpriu a sua própria ambição de afastar barreiras criativas entre disciplinas e concentrar o trabalho sobre a imagem numa mensagem. Juntamente com a sua mulher Elaine, foi responsável pela realização de 7 filmes promocionais, resultantes de encomendas de corporações mas que extrapolavam a mera função comercial e se debruçavam sobre o poder criativo humano. Why Man Creates (1968), produzido pela Kaiser Aluminum, chegou mesmo a ganhar o Óscar de Melhor Documentário (em formato de curta).
Gonçalo Cabral reconhece-se nos objectivos de trabalho de Bass, algo que dá "muita importância à arte e ao desenho" dentro do contexto empresarial. Mas o momento actual do mercado publicitário tende a favorecer outras formas de expressão. "Isso hoje perdeu-se com as capacidades tecnológicas e as [suas] modas, tornou-se mais fácil os designers perderem a parte experimental do desenho." Tendemos, portanto, para "uma cultura cheia de informação e ruído, enquanto que a identidade visual deveria conter sempre a simplicidade e essência do que uma marca deve ser." Para o designer, "estamos na era dos ecrãs, enche-se tudo de brilhos, sombras e esferas", algo que podemos também associar ao domínio crescente das novas tecnologias, na indústria cinematográfica, que favorece o espalhafato digital em vez da essência do traço. Mas para Gonçalo Cabral, "uma dia, voltaremos à essência, é por ela que se consegue criar algo novo em vez de embelezar ou polir."
Por outro lado, Alice Rawsthorn consegue ainda ver a influência de Saul Bass nas novas plataformas de imagem que dominam o nosso presente. "Tanto Moholy como Kepes foram responsáveis pelo trabalho teórico que acabou por desenvolver as imagens digitais que estão nos nossos computadores e ecrãs de telefone. Bass, por sua vez, foi um dos primeiros designers a aplicar as experimentações avant-garde a um nível de massas nos seus genéricos para filmes." Ou seja, "sem os genéricos de Bass, as imagens dos jogos de vídeo e a net não seriam as mesmas." O que nos dirá essa simbiose num consumo de imagens que Bass depurou mas que abriu, também, um novo espaço à experimentação? Com Hitchcock, Saul Bass já nos parecia sugerir uma certa perturbação quando quis resumir o nosso instinto ao essencial e dividiu, aos nossos olhos, o nosso desejo de ver sempre mais: "psicose".