Lembrete: não voltar a ter uma banda popular. Deve haver um alarme interno qualquer programado por Manel Cruz que dispare perante salas grandes à pinha, interesses repetidos de multinacionais, pedidos de entrevistas em barda, telefone a tocar mais do que duas vezes por dia e uma ameaça concreta a uma consciência com o sono em dia. Imagina-se um som estridente, algo gerador de um tal desconforto que não haja outra hipótese que não seja desligar a ficha da corrente. O ponto máximo de interesse exterior coincidente na cronologia com o momento certo para exercer o direito ao suicídio. Por estes lados, o botão vermelho que inicia a contagem decrescente para a autodestruição está sempre convenientemente à mão.
"Éramos todos putos", diz Manel Cruz em relação aos tempos dos Ornatos Violeta, em que a saída para uma asfixiante espiral de popularidade e para salvar a amizade entre os músicos em ruína foi a mais simples de todas: acabar com tudo. Podiam ser putos e hoje saber lidar com a situação de uma outra forma. Mas os Supernada, onde Manel Cruz hoje se preenche enquanto animal do rock, parecem avançar por um campo minado com a cautela necessária para não pisar o dispositivo da popularidade. Soam a medida profiláctica. Com recurso a uma densidade e complexidade de formas que, não sendo impenetrável, serve para manter multidões à distância. "Essa atitude de criarmos um espaço em que não se abram precedentes que depois não queiramos alimentar", confirma o vocalista, "define o nosso espaço para que a expectativa dos outros também contemple essa vontade". Ou seja, se Manel Cruz se juntou a Ruca (guitarra), Eurico Amorim (teclados), Miguel Ramos (baixo) e Francisco Fonseca (bateria) na identificação de uma partilha estética mais intrincada na arte do rock, "inconscientemente dá vontade de fugir a esse lado [da popularidade], não porque seja pior mas porque obedece a uma perspectiva que nos parece mais profissional e menos artística". "Acredito que possa haver, da nossa parte, uma defesa ao sermos atraídos para essa complexidade", completa. "Não estamos a gravar uma novela de encomenda, estamos a fazer um filme de autor. Não somos só os directores de fotografias, este é o nosso filme".
Em grande medida, foi este fechar de portas ao mundo lá fora que dilatou espantosamente o período de gravação de Nada É Possível, disco que foi-se revelando esquivo e capaz de lhes escapar sempre que os cinco achavam que já lhe teriam deitado a mão. De acordo com aquela ideia de que um disco equivale a uma fotografia de uma formação em determinado momento, a certeza que foi ecoando na actividade do grupo é a de que desde que começaram a gravar em 2006 pareciam ter a objectiva apontada para o passado, permanentemente desfasados em relação àquilo que as canções tinham começado a exigir-lhes entretanto. O disco ganhou contornos de miragem e da impossibilidade que o seu título sugere. Agigantou-se, tornou-se um quebra-cabeças sobredimensionado com centenas de takes e, às tantas, esfriava o entusiasmo do grupo sempre que, por várias vezes, esbarraram num muro criativo para o qual não encontravam soluções. Manel: "O desânimo tem a ver com uma ideia do trabalho que se tem pela frente e como se encara isso. Às vezes resolve-se uma coisinha e de repente deixa de ser uma montanha de cenas na nossa cabeça e passa a "isto até vai ser fácil"; e há alturas em que se olha para a frente e só se vêem todas as dificuldades".
A ponto de terem chegado a equacionar libertarem-se do contrato e da obrigação de finalizarem o disco. "A dada altura foi assim", confessa Manel. "Ou pagamos a dívida ou arranjamos maneira de gostar disto". Arranjaram maneira. "Felizmente, as pessoas com quem nos comprometemos também queriam um disco de que gostássemos mesmo. Levou foi muito tempo". "A banda passou por uma fase grande de depressão", acrescenta Ruca. "Não havia banda. Estava cada um para seu lado". Mas o desânimo nunca foi tanto que levasse os cinco a perder o amor àquilo que já tinham construído em conjunto. "Como pessoas que somos e que andaram à procura de pérolas no meio do estrume, quando encontramos uma não a podemos deixar desaparecer". Palavra de vocalista. "As músicas acabam por salvar muitas bandas".
Os singles matamEste interminável processo de gravação em curso acabou por raspar tudo aquilo que eram tendências a que Miguel Ramos chama "um bocadinho mais pop ou o lado épico das canções" para dentro de uma incineradora. Por outro lado, acrescenta Eurico, músicas houve que tiveram o mesmo destino por serem mais exageradas na sua complexidade. Daí que o álbum se tenha tornado mais simples, mas não menos denso, à medida que se cansavam de melodias mais óbvias e de soluções demasiado rebuscadas. "Às vezes fazíamos uma música mais pop e que no momento nos dava prazer porque resultava, mas eram coisas que também nos cansavam rapidamente", reconhece Manel Cruz. "Dando tempo para que as coisas respirem, há umas que sobrevivem e essas são aquelas que continuam a inquietar-me um bocado". E Manel volta a sacar o trunfo dos Ornatos Violeta da manga para justificar um sentido mais apurado para farejar a léguas onde o cansaço (inevitável) vai acabar por se instalar mais facilmente. "Essa era uma das questões com os Ornatos: ‘Vamos deixar de tocar o single? Não vamos tocar aquelas que o pessoal mais quer ouvir?'. Há bandas que devem acabar por causa disso".
Nada É Possível nasce também da aceitação de que o estúdio não funciona enquanto mera encenação das ideias primordiais e espontâneas. Houve partes registadas enquanto Rui e Francisco aqueciam para gravar a secção rítmica dos temas "a sério" e acabaram por substituir essas mesmas ideias maturadas de meses e até anos; houve outros gravados de forma despreparada em condições de gravação menos ideais e que não conseguiram repetir nos estúdios bem equipados.
O álbum dos Supernada é, no fundo, um puzzle que foi crescendo com um permanente tira-e-põe, juntando com naturalidade numa mesma música uma bateria gravada em 2006, uma guitarra feita em 2008 e uma linha de voz que canta uma letra concebida e registada em 2010. O álbum, de certa forma, foi uma surpresa para os próprios músicos, pela sua qualidade mutante. "De repente, apareceu um disco que não estava planeado", admite Francisco.
Tratou-se, afinal, de um teste violento às canções para averiguar da sua resistência ao tempo. No fundo, deram "tempo para as coisas apodrecerem e as partes que estavam mal meterem nojo". E as canções novas, mais entusiasmantes no momento, acabavam por exigir uma permanente reconfiguração do material anterior. Em 2006, diziam em entrevistas que o primeiro álbum estava tão próximo do fim que só já pensavam no segundo. "Não era mentira, estava tudo pronto na altura", garante Eurico. "Este álbum esteve até para chamar-se Segundo Disco, porque para nós é um segundo disco - tirando três músicas, que já tínhamos tocado, as outras 15 ou 16 que tínhamos não estão aqui". Nessa altura, andavam com Queens of the Stone Age no carro de Francisco e que ouviam nas viagens de 80 quilómetros diários a partir do Porto para ensaiar em Vale de Cambra. A audição repetida do disco infiltrou-se na música, mas sempre com este carácter acidental que parece guiar-lhe os passos.
Cautela final: tal como o medo da popularidade se pressente nos Supernada, Manel Cruz não esconde que a longevidade do grupo não pode tornar-se uma preocupação. "A única maneira de isto acontecer é não termos expectativas e colocar a hipótese de que pode acabar". Aqui, dizem, se alguém anunciar um ano sabático não vai ouvir dos outros que é melhor adiar os planos para depois devido à agenda da banda. O segredo dos Supernada é nunca terem sido uma prioridade.