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Congo: quando os padres e os feiticeiros lutavam pelo poder dos espíritos

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Baptismo é integrado como um ritual protector contra a bruxaria, diz Carlos Almeida

A evangelização do Congo, no século XVII, é descrita pelo antropólogo Carlos Almeida como uma luta em que o padre é visto pelos africanos como mais um especialista na manipulação dos espíritos que o Cristianismo combatia. Nicolau Ferreira (texto), Dario Cruz (foto)

Roma, 1692. Um padre capuchinho chegado de África traz consigo uma colecção de objectos estranhos, alvo de uma enorme curiosidade: "Pedaços de madeira que um rude artífice transformara em toscas figuras com medonhas carantonhas, todas adornadas de enfeites bizarros e horrendos." A descrição é feita num artigo de Carlos Almeida, do Instituto de Investigação Científica e Tropical, doutorado em Antropologia com a tese Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura Missionária sobre o Kongo e a região mbundu. O impacte que estes objectos tiveram na Europa deve-se à sua raridade e são um reflexo de um lado desconhecido da cristianização em África. "Tem-se subestimado a dimensão de coerção e de violência que está associada ao modo como os missionários perspectivaram a sua acção", diz. Esta violência é o resultado de uma competição pelo poder do sobrenatural entre a Igreja e os povos africanos, que não abandonaram a sua cosmologia, mas aproveitaram os elementos do cristianismo que lhes fazia sentido.

Quais são as bases da cosmologia destes povos?

Pensa-se o mundo ordenado entre uma existência terrena e uma existência além tudo. As pessoas circulam entre os dois mundos, sendo que os mortos não estão mortos, passam a existir numa outra dimensão que tem capacidade para interferir na vida terrena. Há vários meios para estabelecer a comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. No caso dos nganga, a dimensão em que actuam é mais individual, é o que nós chamaríamos do adivinho, curandeiro.

Como é que os missionários são integrados neste mundo?

Os missionários ou os padres católicos são, de certa maneira, integrados na vivência ritual e social como mais um especialista da manipulação do poder dos espíritos. Há uma questão de luta pelo poder, de quem controla esta função e o que os missionários sentem é que esta relação nunca está controlada.

Essa luta era só de um lado?

Era dos dois lados. Quando os padres perseguem estes rituais ou quando as autoridades políticas africanas servem os objectivos dos padres católicos e perseguem alguns destes rituais, isto é uma luta do poder. É uma luta pela manipulação destas funções espirituais, destas relações entre o mundo dos espíritos e o mundo dos vivos. Luta essa que é vista e pensada, em cada lado, de forma diferente.

Para estas sociedades, esta guerra não é única. O próprio sistema cosmológico permite que, sucessivamente, certas formas rituais de propiciar a comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos se sucedam. As mais poderosas substituem as menos poderosas. A chegada de outras culturas propicia esse tipo de relação.

Os padres eram só mais uns.

Exactamente. Nesse caso particular, os padres são rapidamente integrados na esfera do poder. Isto no caso do Congo. O que torna esta situação nova é o facto de os rituais de sacralização do poder terem integrado elementos simbólicos e rituais do cristianismo como um elemento de centralização do poder. O manicongo [o rei do Reino do Congo] tinha junto de si alguns elementos importantes desta função ritual, mas não tinha poder efectivo sobre eles. O cristianismo é muito rapidamente associado e integrado no próprio ritual de sacralização do poder. No caso do clero secular, os poucos padres que existiam eram subvencionados pela própria estrutura de poder no Congo. Tornam-se, de certa maneira, os ngangas privados da função política do Congo.

Porquê esta entrada tão rápida no poder?

Há aspectos da chegada dos europeus que têm ressonância com a cosmologia do Congo. Em primeiro lugar vêm do mar e a água é um elemento associado ao mundo dos espíritos, e são brancos, uma cor associada aos mortos. Depois, a cruz já era um elemento simbólico ligado à comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

A crónica de Rui de Pina [diplomata ao serviço de D. João II] relata que um senhor da corte do manicongo terá sonhado com uma mulher que lhe terá anunciado que o manicongo se deveria converter à nova fé. Tudo isto é relatado do ponto de vista do Cristianismo, uma espécie de Nossa Senhora que se anunciou àqueles povos. Mas, naquelas culturas, o sonho é uma das vias de comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. O sonho daquela pessoa teria necessariamente de ter uma leitura para aquelas sociedades de acordo com aquela cosmologia.

Então, num primeiro momento, o Cristianismo é bem aceite.

O que chamamos Cristianismo é uma coisa muito plástica. Temos tanto os padres seculares como os das ordens religiosas. Os jesuítas, por exemplo, tentam ir para o Congo em 1548, muito impulsionados pela Coroa. Eles chegam e as primeiras cartas são muito positivas sobre a receptividade, sobre a disponibilidade daquelas pessoas para o Cristianismo, mas rapidamente o caldo se entorna. Os jesuítas começam a colocar problemas que a elite política do Congo não quer aceitar.

Como por exemplo?

A questão do casamento. Estamos numa sociedade em que a poligamia era a regra. As alianças matrimoniais eram uma forma de o manicongo consolidar o seu poder. Quando o manicongo tenta casar com alguém que os missionários consideram ser um seu familiar estala o conflito. Os padres vão apercebendo-se que estas sociedades não aceitavam passivamente aquilo que lhes era proposto. Em função do seu sistema de referências tinham capacidade de aceitar e integrar certas coisas, atribuindo-lhes novos significados, mas de recusar outro tipo de coisas.

O baptismo é rapidamente integrado como um ritual de protecção contra a bruxaria, no qual o sal tinha uma grande influência simbólica. Porque já era um elemento protector usado em certos rituais. Daí que os padres começaram a dizer que os africanos não compreendem nada do baptismo e apenas os move o tomar o sal. Sublinham a necessidade de uma reforçada cristianização para que eles compreendessem toda a dimensão escatológica que era atribuída ao baptismo. E que traduzissem essa compreensão num comportamento de vida consentâneo com as virtudes cristãs, onde o casamento assumia relevância.

Por que chegaram à Europa tão poucos objectos de feitiçaria?

Uma das respostas possíveis é que os elementos que são capturados são destruídos lá, porque essa destruição tem uma função pedagógica para evidenciar a vacuidade daquelas crenças.

É uma posição de poder?

Sim, uma afirmação de poder do novo ritual e da nova crença. E a ausência de poder daqueles pedaços de pau e de objectos insignificantes que aquelas pessoas veneravam.

O que representa esta história do capuchinho que traz uma colecção de objectos de África?

Chamou-me à atenção o facto de estarmos consecutivamente a tropeçar com relatos de missionários que têm notícia de que ali ou acolá se está a "adorar o demónio", e vão a esses sítios e interrompem as cerimónias. As pessoas deixam os objectos rituais para trás e eles apoderam-se dos objectos. Mas só temos notícia de um missionário que trouxe para a Europa uma colecção destes objectos. Por que é que nunca houve nenhum outro que os tenha trazido? Sobretudo quando eles tinham mercado nos gabinetes de curiosidades.

A historiografia tem insistido muito numa espécie de co-existência e integração pacífica, até certo ponto harmoniosa, do Cristianismo nestas sociedades. Boa parte deste processo é pacífico, ou seja, não é protagonizado pelo poder que veio impor uma ideia de fora e essas dimensões resultam muito da dinâmica social e do diálogo cultural, que implica sempre imagens diferentes sobre os outros e portanto um contexto de mal-entendidos que vão propiciando essa aproximação. Mas pareceu-me que se tem subestimado a dimensão de coerção e de violência que está associada ao modo como os missionários perspectivaram e em muito larga medida executaram a sua acção.

Que violência era essa?

A violência estava latente não apenas no próprio discurso dos missionários sob estes povos. Muitas vezes encontramos referências que ao missionário lhe apetecia ter batido em alguém, ou ter tomado uma atitude ríspida e violenta, mas porque estava sozinho teve que mediar essa reacção. A própria acção dos missionários comportava uma dimensão de repressão. Que essa dimensão fosse acompanhada por algumas estruturas políticas do Congo, muito bem. Mas não deixa de haver essa dimensão repressiva, que se traduzia na perseguição das cerimónias, dos rituais, na captura de alguma destas pessoas e na destruição desses objectos.

Essa repressão era sistemática?

Há uma preocupação de perseguir estes rituais. Mas os meios de que os missionários dispõem não permitem uma acção repressiva sistemática. A coisa é muito mais "tive notícia que, ouvi que".

Num dos relatos que conta, fala-se de um padre que parece encetar uma luta entre o bem e o mal.

É um dos exemplos em que o padre tem notícia de que ali se estaria a executar um ritual e vai procurar reprimir e destruí-lo. Nesse confronto procura destruir o nkisi [um objecto de feitiçaria]. Deita-o para a fogueira, o nkisi não arde, lança-se para cima da fogueira, pisa-o, ele próprio fica queimado. Aquilo é uma batalha quase transcendente em que ele, de certa maneira, é Deus lutando contra o demónio.

O padre acreditava naquele confronto?

Há uma duplicidade no modo como os missionários olham para estes objectos. Ao mesmo tempo que encerram uma crença vã em superstições que não têm nenhum significado ou poder, são objectos através dos quais se "venera o demónio". Não são totalmente vãos, se os africanos querem por via desses objectos propiciar a chuva ou uma cura, para o missionário isso é vão, porque só Deus pode propiciar isso. Quanto muito, o demónio pode encontrar artimanhas para fazer com que essas coisas coincidam de maneira a desviar atenções da verdadeira fé. Ainda que eles não sejam eficazes para alcançar esses bens, são eficazes do ponto de vista da sua acção demoníaca. Não são rigorosamente pedaços de pau insignificantes. Estar a destruí-los é estar a destruir um elemento com uma certa energia diabólica.

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