História de uma escola de Belas Artes em três andamentos

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Algumas das obras expostas: Nadir Afonso, Leonardo, Acácio Lino e, nesta página, Júlio Resende, com as linhas a desaparecerLegenda Em delit am, conullum zzril illa aut alis nit adignaIpsero, vatium orus consimo C. Ignocaetem mis inc vidi ia? P. M. Nihili tabemunum CORTESIA FBAUP

Cinco Séculos de Desenho na Colecção da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto é uma história contada em dois lugares e três capítulos. É o elogio do desenho nas suas diversas expressões, no percurso evolutivo da escola do Porto

Começa com a Vitória de Samotrácia do Museu do Louvre e termina com o Largo dos Grilos no centro histórico portuense o terceiro núcleo da exposição Cinco Séculos de Desenho na Colecção da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), inaugurada no dia 23 de Março no Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR).

É verdade que a jóia da colecção é o valioso desenho de Leonardo da Vinci, que concita as atenções maiores nos dois primeiros núcleos da exposição, inaugurados anteriormente (15 de Março a 22 de Abril) na FBAUP (ver caixa). Mas o acervo que agora se pode visitar no MNSR (até 20 de Maio), reunindo desenhos dos séculos XX e XXI, vai permitir actualizar a história da Escola de Belas Artes do Porto desde a sua fundação, no início do século XIX.

"Estão aqui os grandes mestres da escola do Porto desde meados do século XX, como Barata Feyo, Augusto Gomes, Dórdio Gomes, António Cruz ou Júlio Resende", diz Francisco Laranjo, director da FBAUP e comissário-geral da exposição, ao guiar o PÚBLICO numa visita quando ela estava ainda em montagem no Soares dos Reis. Mas o principal interesse desta mostra está no facto de a sua realização - a encerrar o programa do centenário da UP - ter sido pretexto para Francisco Laranjo lançar o repto a artistas e ex-alunos das Belas Artes no Porto no último meio século para que doassem à colecção da escola uma obra que ficasse a registar a sua passagem.

"Os estudantes deixavam as suas provas na escola, até à reforma de 1957, mas nesta data deixou de haver essa obrigatoriedade", explica o director da FBAUP. As Belas Artes ficaram assim "com meio século da sua história praticamente perdido, sem pontes para o futuro". Um hiato que agora foi colmatado com a dádiva de mais de duas centenas de trabalhos dos ex-alunos mais recentes. "Vamos mostrar agora essas peças, mas há muitas que continuam a chegar, e que já não vamos conseguir expor no Soares dos Reis", diz Francisco Laranjo, notando a boa receptividade ao seu apelo.

O visitante pode, pois, encontrar agora no MNSR trabalhos de vários artistas cujas obras não estavam contempladas na colecção da FBAUP. Alguns exemplos: os recentemente desaparecidos Fernando Lanhas e Ângelo de Sousa, mas também Jorge Pinheiro e José Rodrigues, Graça Morais e Emerenciano, Nadir Afonso e Alcino Soutinho, Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura.

Os paradigmas do desenho

Alcino Soutinho doou à escola um desenho de 2006 do projecto que fez para um pavilhão das Belas Artes no Porto. É a expressão da sua actividade de "pintor quase clandestino", diz o próprio, referindo-se a esse seu hobby paralelo à arquitectura. "O desenho é um instrumento decisivo para o trabalho oficinal dos arquitectos", nota Soutinho ao PÚBLICO, na inauguração da exposição no MNSR.

Joana Rêgo e Mário Bismarck, artistas de diferentes gerações, estiveram também na inauguração da exposição, onde viram as suas obras representadas. Joana Rêgo correspondeu ao apelo da escola oferecendo o quadro A Linha (2009), que denota um entendimento do desenho fora dos cânones tradicionais. "A evolução na maneira de pensar o desenho faz parte da história. Sou defensora de que se deve aprender a desenhar, para depois explorar novas formas de pensar o desenho", diz a pintora e professora.

O desenho de Mário Bismarck já se encontrava na FBAUP desde 1992, ano em que prestou provas quando se candidatou a professor. "Esta exposição, com os seus três núcleos, mostra bem a evolução dos vários paradigmas do desenho", diz este artista e docente na FBAUP. E acrescenta que "a competência normalmente associada ao desenho não se esgota nessa coisa de saber representar, ou organizar, ou projectar", e que o pior que se pode fazer é "estabelecer uma definição semântica e cerrada" dessa disciplina.

Paisagens e Arquitectura

Esse risco não se corre no percurso do terceiro núcleo da exposição. Centrada nessa "disciplina fundacional" das Belas Artes, como lhe chama Francisco Laranjo, a retrospectiva abre com uma ala dedicada ao desenho de modelo. O primeiro trabalho é uma "cópia" da Vitória de Samotrácia, a famosa escultura sem cabeça nem braços que está na escadaria principal do Louvre, um trabalho de Acácio Lino de Magalhães de 1904. Os primeiros desenhos das primeiras décadas do século XX exibem ainda os carimbos da Academia Portuense de Belas-Artes e a numeração das provas. Nesse alinhamento, paralelamente a nomes desconhecidos ou que ficaram na obscuridade, surgem nus femininos de Augusto Gomes e Gustavo Bastos, ao lado de provas de curso já de grande fôlego de António Cruz e Lagoa Henriques (ambos de 1963), Tito Reboredo (1971) e Manuel Casal Aguiar (1981). Pelo meio, o visitante terá aquela que pode muito bem ser a última oportunidade para admirar dois pequenos desenhos a tinta-da- -china e aguada sobre papel que Júlio Resende fez em Paris, em 1947, e cujas linhas estão praticamente a desaparecer.

As salas relativas à segunda metade do século XX e aos anos mais recentes documentam a evolução do entendimento do desenho como técnica e estética. Alguns exemplos: uma peça de Gerardo Burmester na fronteira com a pintura, a escultura e a instalação; um painel de Rute Rosas feito de fios e tecido; um trabalho de Silvestre Pestana, um dos pioneiros da videoarte na Escola do Porto; ou a obra Diagrama de decomposição, de Clara Menéres.

Esta viagem pela história do desenho - documentada com textos de apoio, e que vai ter ainda um catálogo bilingue português-inglês - termina numa ala dedicada ao tema Paisagens e Arquitectura. Aí podemos ver, além do referido desenho de Alcino Soutinho, o inconfundível traço de Álvaro Siza, ao lado de trabalhos de Eduardo Souto de Moura, Nadir Afonso, José Bernardo Távora (o pai, Fernando Távora, "continua a ser um autor em falta na colecção", lamenta Laranjo) e Fernando Lanhas. É deste arquitecto-pintor desaparecido em Fevereiro o desenho de linhas depuradas a representar a monumentalidade ancestral do Largo dos Grilos, junto à Sé do Porto. "O Fernando Lanhas deu-me a escolher entre um retrato de Pessoa de 1950 e este desenho já do ano 2000. Eu escolhi o Porto", justifica Francisco Laranjo.

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