TRÊS GRAÇAS, TRÊS GRÉCIAS, UM MUNDO
As Três Graças. Mitologia grega, era fatal. Deusas da alegria e da beleza, filhas de Zeus, já as vimos representadas em numerosas obras: Cranach, Rubens, Rafael, Boticelli, Canova. Mas graça pode ser também bênção, dádiva, mercê, inspiração, dom. E onde é que estas palavras se cruzam com a Grécia? Precisamente lá onde a Grécia se cruza com a arte. Por cá, tivemos nestes dias direito a três graças onde Portugal e a Grécia se cruzam e completam.
Primeiro exemplo, bem vivo: Nikias Skapinakis, agora com uma retrospectiva monumental no Museu Berardo, em Lisboa (Presente e Passado, 2012-1950, até 26 de Junho). Nascido em 1931, em Lisboa, mas grego de nome e ascendência (pai grego e mãe portuguesa), Nikias é autor de uma imensa obra pictórica e gráfica, tão imensa que apenas uma quinta parte nos é dada a ver, agora, num conjunto surpreendente, comissariado por Raquel Henriques da Silva. "O mais vasto depoimento que realizei sobre o meu trabalho", como diz Skapinakis. E lá estão, é verdade, As Três Graças (1967) na sua pessoalíssima visão da mitologia grega, como estão outras "três graças" rebeldes e nuas, empunhando uma bandeira negra (Now, 1970), na série Os caminhos da Liberdade, influenciada pela Pop Art; ou, no reverso do espelho, os fascinantes ensaios sobre a melancolia em Portugal (nos anos da ditadura), onde sobressai o óleo Tertúlia, com Cochofel, Joel Serrão e Abelaira (o filme O Teatro dos Outros, que Jorge Silva Melo fez sobre a obra de Nikias, já editado em DVD pela Midas, documenta também, segundo o próprio pintor, "com fotografias, quadros, filmes, de diversos autores meus contemporâneos, esse tempo do negrume português"); e, claro, entre numerosas obras das mais diversas dimensões, desde os desenhos a caneta em papel higiénico ou em papel de embrulho às telas feéricas da fase parafigurativa ou à fabulosa série de quartos ficcionados, lá estão, de novo, as mitologias gregas, fruto de um interesse ("pelas crónicas do Olimpo") que nele morava desde a infância, depois da "iniciação nas fabulosas descrições homéricas". Uma exposição para ver e rever, descobrindo aos poucos as raízes do seu indiscutível fascínio.
Outro exemplo, também recente e tão próximo, é A Terceira Miséria, livro de poemas de Hélia Correia (ed. Relógio de Água). Escrito de um jacto numa única noite, como ela explica a Carlos Vaz Marques numa entrevista que faz a capa da revista Ler de Abril. Tinha uma grande urgência em publicá-lo. Telefonou ao editor e disse: "Despacha-te que a Grécia de um dia para o outro acaba." Não acabou. Mas o livro aí está, como um grito abafado. "A terceira miséria é esta, a de hoje./ A de quem já não ouve nem pergunta./ A de quem não recorda. E, ao contrário/ Do orgulhoso Péricles, se torna/ Num entre os mais, num entre os que se entregam,/ Nos que vão misturar-se como um líquido/ Num líquido maior, perdida a forma,/ Desfeita em pó a estátua" (pág. 29). A poe-sia de Hélia é uma revolta contra a ditadura dos últimos séculos, a da ferocidade da supremacia onde a Grécia é uma chaga viva, entre tantas. Um tributo à Grécia, ou ao que nela vale a pena, com "dívidas confessadas" a Maria Gabriela Llansol, Hölderlin, Ésquilo, Nietzsche, Plutarco, Tucídides, Lord Byron ou Glenway Wescott.
Por fim, e a ele voltamos uma vez mais neste espaço, até porque neste contexto é obrigatório citá-lo, há ainda Periplus, Deambulações Luso-Gregas (ed. Éter), o disco que resultou da colaboração entre os cantores e compositores Amélia Muge e Michales Loukovikas e que, depois dos bem sucedidos espectáculos em Guimarães e na Culturgest, está agora nas lojas exposto à curiosidade dos melómanos. Nele, até Hélia Correia canta, e em grego antigo, o Epitáfio de Seikilos, talvez a primeira canção a ser escrita. "Ó mortal, deixa brilhar,/ a luz da vida no teu rosto;/ que a morte vai cobrar imposto/ e a todos abate, sem dó por igual." A tradução é de Hélia, o espírito é grego e universal. E - porque não? - também português.