Os rinocerontes de Ricardo Araújo Pereira

1O auditório da livraria foi enchendo. Quando Arnaldo Bloch falou em Ionesco, já havia uma multidão de pé e gente sentada no chão. Cronista, romancista, descendente contundente de uma dinastia de judeus brasileiros (os épicos irmãos Bloch, também conhecidos como Karamabloch), Arnaldo estava ali para apresentar a colectânea de crónicas Se Não Entenderes Eu Conto de Novo, Pá, primeira edição no Brasil de Ricardo Araújo Pereira.

Eu assistia na segunda fila e a seguir tinha de ir para casa tratar desta coluna. Nem me ocorrera a ideia de escrever sobre o Ricardo. Partilhamos a mesma editora, a Tinta-da-China, que ali se estreava como Tinta-da-China Brasil. Mas Arnaldo falou em Ionesco, Ricardo respondeu como respondeu e o acontecimento começou a sobrepor-se.

Porque foi disso que se tratou, terça-feira, na livraria Travessa do Leblon, um acontecimento (no sentido que Caetano Veloso dá à palavra acontecimento numa fala-canção sobre Gilberto Gil: a aparição de uma pessoa).

Em ano e meio de Rio de Janeiro não assisti a nada comparável e no fim ouvi cariocas dizerem o mesmo.

2 Arnaldo falava, claro, do absurdo de estar vivo. Então, voltando-se para Ricardo, disse:

- O Eugene Ionesco, não sei se é uma das suas leituras...

Aprumado como um ex-fugitivo do Colégio Militar que nunca perdeu as maneiras, Ricardo murmurou que não porque não ouvira bem. Acabava de conhecer Arnaldo, não tinham combinado nada da conversa. Só percebeu que ele falava de Ionesco quando Arnaldo repetiu o nome. E aí, no segundo seguinte, já estava a tirar da cartola O Rinoceronte como se tivesse relido a peça na véspera.

3 Escrita no fim dos anos 50, O Rinoceronte de Ionesco tem sido descrita como uma sátira ao fascismo, especificamente à histeria colectiva em torno de Hitler que favoreceu a ascensão nazi. Numa pequena cidade europeia, as pessoas começam a transformar-se em rinocerontes. Rapidamente o insólito se transforma em lugar comum. Toda a gente quer ser rinoceronte porque ser rinoceronte passou a ser normal. Toda a gente menos um homem que continua a ver como um rinoceronte é um rinoceronte. Esse homem é a oposição, aquele que não se rende, o último homem. Quando toda a gente passou a ser besta, é difícil ser o último homem: continuar a pensar.

4 Um dia antes da apresentação de Ricardo, aconteceu noutra livraria do Rio, a Argumento, a apresentação de dois livros brasileiros, um sobre a literatura pensante de Clarice Lispector, tal como a define o ensaísta Evando Nascimento, e outro sobre a antítese entre poesia e filosofia, tal como a entende o poeta e ensaísta Antonio Cícero. Além dos autores, na mesa estavam o cronista e ensaísta Francisco Bosco e esse poeta de todas as artes que é Caetano Veloso. As cadeiras eram poucas, havia magotes em bicos de pés a espreitar por cima das estantes, guerra de ombros, de cabeças, e no duelo entre anglófilos (Cícero, Caetano) e francófilos (Nascimento, Bosco) nem Horácio faltou.

Não é todos os dias que se juntam quatro a discutir como a literatura pensa o que a filosofia não pode pensar ou a poesia é necessariamente o que a filosofia não é, e não pensam o mesmo, o que não quer dizer que se oponham. E nem todos os dias, e sobretudo em nenhum outro lugar ouviríamos dizer com naturalidade que a trupe Barthes-Foucault-e-etc peca por algo de frufru, sem que a conversa ceda ou conceda ao fácil.

Não é o lugar comum do que se associa às cabeças cariocas, mas nenhuma daquelas quatro cabeças entrará na categoria rinoceronte, e a centrífuga cabeça de Caetano Veloso, que tanta pancada leva dos seus leitores cariocas por disparar nas mais imprevisíveis direcções, é o melhor exemplo de como no meio dos rinocerontes podemos sempre continuar a pensar.

5 O trabalho do humorista é esse, respondeu o Ricardo na Travessa, e todas as respostas dele foram também o contrário do lugar comum que os cariocas associam aos portugueses, do lugar comum em geral. Por exemplo, o lugar comum do humorista que diz: mais que fazer rir quero fazer pensar. O que os cariocas viram na Travessa foi que Ricardo Araújo Pereira faz rir porque faz pensar. E como um homem não é um rinoceronte, mas o único animal que sabe que vai morrer, o derradeiro trabalho do humorista, diz Ricardo, é fazer-nos rir da própria morte.

- Eis a minha mensagem para o Brasil, dizer-vos que vão todos morrer.

Antes do Rio, Ricardo esteve no festival Risadaria em São Paulo. Ele tinha três medos: que não entendessem, que entendessem mas não rissem, que não entendessem mas rissem. Não vi, mas os ecos que chegaram são grande êxito. Acredito que tenha sido como no Rio: rimos porque entendemos.

Diante do óbvio as crianças perguntam porque é óbvio, lembrou Ricardo. É essa espécie de imaturidade que os humoristas têm de ter. Maturidade é para quem chegou ao seu limite.

6 Além dos rinocerontes, na Travessa apareceram gatos e baratas. Quando era estagiário do Jornal de Letras, Ricardo foi entrevistar Adília Lopes, de quem era grande admirador, tal como acontece com muitos leitores brasileiros de poesia. Há um curtíssimo poema de Adília chamado Autobiografia sumária que diz: "Os meus gatos / gostam de brincar / com as minhas baratas." Fascinado, Ricardo levou a Adília uma densa interpretação: o que há de mais felino e arguto em nós gosta de brincar com o que há de mais vil e repugnante em nós. Adília respondeu que em casa tinha gatos e tinha baratas e que os gatos iam para a cozinha brincar com as baratas. Ricardo imitou as mãos de Adília a fazer de patinhas de gatos.

Adília explicou-lhe, em suma, como o poema era literal. Mas isso não quer dizer que não seja as duas coisas: literal e tudo o que Ricardo viu nele. O trabalho do humorista também será esse, esmiuçar o literal.

7 A propósito, quando a SIC ouviu o título Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios, achou que era melhor trocar "esmiúça" porque as pessoas não sabiam o significado da palavra, contou Ricardo. Os Gato insistiram e pelo menos umas 4000 pessoas foram ver o significado a um dicionário online durante a emissão do programa. Ficaram a saber. Ricardo acha bem. Quem quer saber vai saber.

Entre dois países separados pela mesma língua parece-me um bom lema.

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