O que o ecrã não mostra
Ao longo de 25 anos, Gabriela Cerqueira esteve à frente de várias equipas de produção de cinema. A vida nos bastidores de uma rodagem é como a de uma família, com amores e desamores, memórias e afectos. Não haveria cinema se não fosse assim
É uma história de afectos. Gabriela Cerqueira não a saberia contar de outra forma e, por isso, falar de cinema, da sua história do cinema, é contar uma história feita de nomes próprios, de momentos de rodagem que se confundem com memórias da vida, hoje guardadas em caixas que guardam álbuns de fotografias onde, por vezes, irrompem imagens que não se sabe se são de férias ou de momentos de trabalho. É falar de como foi fazer cinema imediatamente após o 25 de Abril de 1974, com um país por construir e outro por esclarecer, com um espírito de missão que não se media em horas de trabalho nem em escusas pelo cansaço. "Foi muito divertido", diz Gabriela Cerqueira, hoje consultora para o teatro no Centro Cultural de Belém, depois de anos como directora de produção em cinema, em produtoras ou como freelancer, depois ter começado, no início de tudo, em 1967, nas relações públicas da Pan American World Airways.
Comece-se por aí porque é, precisamente por causa da Pan America, e do seu fim em Portugal após a revolução, que Gabriela Cerqueira se descobre, aos 34 anos, com três filhos pela mão, sem emprego e com uma indemnização. Início de um filme neo-realista italiano, dir- -se-ia, para fazer jus à sua vida que começou, precisamente, com anos e anos a viver em Roma. Ou como num novelo romântico de Camilo Castelo Branco, autor que descobriu no plateau do primeiro filme no qual trabalhou, Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira (1978), como secretária de produção, "emprestada" pela Cinequipe, uma cooperativa que andou, entre 1975 e 1978, a palmilhar o país registando a revolução a acontecer. "São essas imagens que vemos hoje quando a RTP mostra documentários da época, filmes de luta, sobre a reforma agrária, soi disant revolucionários", recorda. Tudo filmado em película, faziam três programas semanais com os quais pagavam os filmes dos realizadores que compunham a cooperativa, os irmãos Matos Silva, Fernando e João, José Nascimento, Monique Rutler e Francisco Manso.
Filmando um novo país
Um deles, Nome Mulher, feito pelas jornalistas Maria Antónia Palla, Maria Antónia Fiadeiro e Teresa de Sousa, hoje no PÚBLICO, foi objecto de um processo em tribunal por um dos episódios, intitulado "O aborto não é crime", registar um método novo, o aborto por sucção, então em experimentação na margem sul do Tejo. "O director de fotografia desmaiou", conta agora Gabriela rindo. Era desta crueza que se faziam os documentários que guardavam as lutas das populações na apanha da azeitona, nos fechos de fábricas, nas conquistas nas empresas.
"Na altura existiam três cooperativas a fazer este trabalho, a Cinequipe, a Cinequanon, do Lauro António, e o Grupo Zero, do Alberto Seixas Santos". A confluência de linguagens tão distintas como o cinema e a televisão era semelhante ao esforço que diversas leituras políticas da realidade faziam para se juntarem nestas cooperativas ou, como também se chamavam, unidades de produção. "Havia uma vivência única, dentro de um espírito revolucionário, se calhar nem todos com a mesma consciência política, apenas a filmarem o que estava a acontecer, mas que, com o tempo, se percebe que o que se estava a fazer tinha a importância de um documento histórico", conta, recordando a importância que tiveram filmes como O Meu Nome É... (1978), de Fernando Matos Silva, sobre o processo de combate ao fascismo, e Pela Razão Que Têm (1976), filme de José Nascimento sobre a reforma agrária. Os filmes eram levados até às populações, em sessões de esclarecimento que percorriam o país, com o objectivo de o aproximar. O mesmo sentimento de exaltação voltou a sentir quando, em 1998, foi directora de produção do filme Capitães de Abril, de Maria de Medeiros (na produtora Mutantes, que criou para produzir o filme de Teresa Villaverde com o mesmo nome, 1998). Algumas centenas de figurantes, emocionados por se encontrarem no mesmo Largo do Carmo em que tinham estado no dia da revolução, começaram a cantar, espontaneamente, o hino nacional e o Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso, apanhando a equipa de surpresa. Momentos desses não se prevêem e ainda hoje a arrepiam. Fazem parte do que um director de produção não controla. Mas o resto, quer-se ambiciosamente invisível.
O segredo está nos pormenores
Gabriela Cerqueira diz que produzir é "pôr a máquina a funcionar". Fez a produção e o secretariado dos programas semanais da Cinequipe durante os três anos imediatamente anteriores a ter começado a escassear o dinheiro que a televisão pública tinha para pagar por esses programas. Mas enquanto durou, a equipa, bem como todo o cinema português, tinha encontro marcado ao fim da noite para ver as rushes (o material filmado nesse dia) nos estúdios da Tóbis, cujos interiores serviriam, como tantos outros filmes, de cenário para Amor de Perdição, de Oliveira. Foi aí que percebeu que a produção se descobre, e define, nos detalhes. "Fui para a Tóbis começar pelas coisas elementares: como elaborar um plano de trabalho, um levantamento de adereços, de guarda-roupa, de actores, no fundo, aprender a descascar um guião." É isso, explicado de forma simples, que distingue um filme de outro: "Um filme começa antes, na preparação. Sem isso não pode correr bem." É por isso que Gabriela diz que "fazer um filme é mais duro do que uma campanha política". Ela sabe-o, fez as de Otelo à Presidência da República, depois a primeira de Mário Soares e ainda esteve no início da de Jorge Sampaio. Mas, diz, se as campanhas cedem pelas intrigas partidárias, nas equipas de filmes os afectos não podem confundir-se com responsabilidades. "Um mau realizador é como um mau chefe, o efeito é em cascata e chega ao mais pequeno da escala." Gabriela trabalhou com muitos realizadores e ficou amiga de muitos actores. Lembra-se de um dia ter levado a actriz italiana Andréa Ferrol, que fazia um filme de Joaquim Leitão (Ao Fim da Noite, 1991) até ao atelier do escultor João Cutileiro e de ele mostrar à actriz uma escultura que tinha feito quando, muito anos antes, se tinha impressionado com ela no filme La Grand Bouffe (Marco Ferreti, 1973). Ou quando Claude Brasseur, actor em Matar Saudades, de Fernando Lopes (1989), queria esperar que Gabriela regressasse porque se recusava a comer outra pasta que não a que era feita pela produtora. Por isso, por causa de afectos, Gabriela Cerqueira fala de Fernando Lopes com particular candura: "Falava com um estagiário como se fosse o director de fotografia." Foi com o realizador que fez, por exemplo, O Fio do Horizonte (1993), a partir do romance de Antonio Tabucchi, e o documentário Lissabon, Wuppertal, Lisboa (1998), sobre a estada da coreógrafa Pina Bausch em Lisboa. Uma reportagem da revista Sete, entretanto extinta, que havia visitado Valpaços, o local de filmagens de Matar Saudades, contava como a vila se havia transformado, envolvendo- -se na rodagem. "Era tudo modesto, não havia quartos separados para ninguém, íamos comer a casa da mulher do médico, dançar na boîte em frente à pensão, técnicos, actores e população confundidos. Chegávamos a um café e púnhamos um anúncio a dizer que precisávamos de figurantes, e eles apareciam ali, por todo o lado", conta-nos. Depois recebiam, ao fim do dia, de dinheiro que guardava num saco de plástico, ou guardado num daqueles cofres que se compram em qualquer papelaria, porque um assalto a tinha precavido "e não havia transferências bancárias nem agências de figurantes".
A arte do improviso
Foram vários filmes feitos assim, improvisando por cima do que não havia, aprendendo a observar as equipas estrangeiras, "que vinham com assistentes para tudo, nós a rirmo-nos deles", mas eles a não terem o que Portugal oferecia: "Bom clima, preços baratos e bons técnicos." Isto antes de começarem a deslocar-se para o Leste da Europa, onde descobriram interiores até então fechados por causa do regime. Até ao início dos anos 1990, Portugal, "e muito o Alentejo", receberam equipas estrangeiras, sobretudo francesas e alemãs, que aqui rodavam filmes, telefilmes e séries de televisão, muitos deles da responsabilidade do Animatógrafo, de António da Cunha Telles, que recebia projectos para a Antenne 2 ou a TF1. Gabriela fez de tudo para, enquanto directora de produção ou responsável pela produção executiva, garantir que projectos assinados por nomes como Raúl Ruiz (Les Trois Couronnes du Matelot, 1983), Susanne Bier (Family Matters, 1994) e Samuel Fuller (Street of no Return, 1989) pudessem chegar ao fim. Mesmo que isso implicasse, como aconteceu com Lionheart (Franklyn Schaffner, 1987), gerir 200 pessoas em exteriores, entre elas crianças húngaras, francesas e portuguesas, para filmar as guerras das cruzadas, o que implicava secar as roupas em fornos de lenha depois de um dia de filmagens, para voltarem a ser molhadas a partir das quatro da manhã.
Esta dedicação era transversal às equipas portuguesas, significava poupar dinheiro para "que os realizadores pudessem ter o que queriam", "resolver problemas com imaginação" e "saber usar o charme, a maneira de ser e resolver os problemas". Lembra-se, um dia, de ter desafiado as dúvidas da equipa ao avançar para a travessia da Ponte 25 de Abril para que o dia não se perdesse e a cena se fizesse. "Não havia autorizações e ninguém acreditava ser possível", recorda. "Pode aprender-se muito passando um dia em rodagem, mesmo que seja cansativo, e é-o sempre." Todos os dias, antes de todos começarem, já a produção garantia que o filme que um dia veríamos na sala tinha começado muito antes, "de preferências com meses de preparação".