O nome é Hirst, Damien Hirst
Cadáveres e diamantes: 25 anos de uma que fez do choque a assinatura, retrato de uma persona autoritária, fascinante, vulgar. Ex-agent provocateur, agora sentado num trono oficial. A primeira retrospectiva de uma instituição inglesa dedicada a Damien Hirst, na Tate Modern.
Rápido. Rápido. Tira a fotografia
Quick. Quick. Take the photo
Aos 16 anos Damien Hirst faz-se fotografar ao lado de uma cabeça decepada numa morgue de Leeds. Estava aterrorizado quando tirou a fotografia, pediu ao seu amigo que fosse rápido. Dez anos depois, recupera essa imagem em With Dead Head (1991), auto-retrato inscrito na linhagem mórbida das fotografias de soldados americanos em Abu Ghraib. A fotografia recebe o visitante na primeira sala da primeira retrospectiva de uma instituição inglesa dedicada a Damien Hirst - intitulada, simplesmente, Damien Hirst, e desde anteontem na Tate Modern. Ao entrar encontram-se também a primeira Spot Painting (1986), e outros trabalhos menos conhecidos como What Goes Up Must Come Down (1994), escultura de equilíbrio instável onde uma bola de pingue-pongue é suspensa na corrente de ar produzida por um secador de cabelo.
With Dead Head contém as narrativas que Hirst viria desenvolver, anuncia a estratégia de choque que se tornaria a sua assinatura, e retrata a persona mediática, autoritária, fascinante e vulgar desenvolvida pelo artista. As restantes peças deste conjunto introdutório estão mais próximas de um universo naïf, vibrante e mordaz, que parece ter desinteressado Hirst. Na opinião de Miguel Amado, curador da Tate St Yves, a recontextualização fotográfica de With Dead Head é exemplar do modus operandi do artista que "exibe a sua vida privada no espaço público, personificando a sua obra, o que é apenas possível em sociedades ultra mediáticas, com um culto extremo da celebridade, como no Reino Unido. Nesse tipo de territórios, os 15 minutos de fama de Warhol tornaram-se todos os segundos de uma vida".
With Dead Head apresenta de forma literal o grande tema de uma obra: a dicotomia morte-vida, identificável no interesse pela conservação e dissecação de animais, na organização clínica de produtos farmacêuticos em gabinetes ou ainda na utilização da caveira, símbolo do eterno. É uma dicotomia com claras conotações religiosas, que o artista encena de forma litúrgica. A galeria, por regra constituída por paredes brancas, tem um carácter asséptico e analítico - tal como o laboratório científico, interpretado por Hirst como templo contemporâneo. Da mesma forma, Allan Kaprow e Robert Smithson, artistas conceptuais dos anos 60 e 70, descrevem a semelhanças entre a estrutura do museu e o túmulo, outro lugar com conotações religiosas, onde vida e morte coexistem. Kaprow aponta ainda para a função do museu como local de conservação, uma perspectiva que pode ser associada ao interesse de Hirst pelo universo farmacológico e taxidérmico.
Adrian Searle, crítico de arte do The Guardian, considera que Hirst estudou bem a história da arte e se diverte a jogar com a sua linguagem. Menciona a influência de Baudrillard, especificamente as suas ideias sobre simulacro e apropriação, que analisam o processo em que a transferência de um objecto para um novo contexto possibilita novos significados.
A Tate Modern é a localização ideal para expor uma obra que investiga estas temáticas. Além das clássicas paredes brancas de laboratório, o museu apresenta outras características próximas de uma igreja, como a estrutura e a escala da Turbine Hall, que se tornou local de romaria. O edifício encontra-se também ligado pela ponte Millennium à catedral de St. Paul, a igreja mais importante de Londres. O maior museu e a maior igreja da cidade unidos: o poder temporal e secular em uníssono e fricção.
É como se esta exposição fosse a canonização de Damien Hirst em vida, dando-lhe a credibilidade artística que parecia cada vez mais longínqua. Damien Hirst, o sacerdote desta igreja-museu, recebe o rebanho de fiéis no seu reino de cadáveres, comprimidos e diamantes.
Mal posso esperar para estar numa posição em que possa fazer arte realmente má e escapar impune.
I can"t wait to get into a position of making really bad art and get away with it
Hirst é um mago dos media. O grande número de jornalistas presentes na inauguração para a imprensa e as diferentes línguas ouvidas traduzem o interesse insaciável por um artista tornado marca global. Aquela que poderá vir a ser a exposição mais visitada de sempre na Tate Modern ocupa 14 salas do nível três do museu e analisa cerca de 25 anos de uma obra, incluindo peças como The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (1991), onde um tubarão é suspenso em formol, ou For the Love of God (2007), uma caveira coberta de diamantes. Hirst é apontado como um dos artistas vivos mais importantes de Inglaterra - à frente dele, apenas David Hockney -, e também como o mais rico do mundo. A estes títulos soma-se ainda o de artista menos unânime ou, mesmo, o de mais vilipendiado: é o homem que todos gostam de odiar. Embora o seu trabalho tenha produzido imagens icónicas disseminadas massivamente, é mais conhecido pelos mitos que rodeiam a sua vida pessoal e profissional e pela sua falta de pudor financeiro. Mas quem é esta estrela mediática conhecida no passado pelas noites de festa no Soho e afirmações polémicas, e, no presente, pelos seus lucros milionários?
A história de Damien Hirst começa com as repetidas rejeições por várias universidades, até ser aceite na Goldsmiths, de Londres, enquanto trabalhava como operário na construção civil. Ou talvez comece, de facto, com Freeze, a exposição de estudantes que organiza em 1988 num armazém abandonado da zona portuária de Docklands. Adrian Searle, avaliador externo na Goldsmiths no período em que Hirst ali estudou, recorda-o como "um aluno extremamente dotado, cativante e com uma capacidade incrível de mobilização". A Freeze marcou o início do fenómeno Young British Artists (YBA): um ambicioso grupo de jovens artistas ingleses, liderados por Hirst, provocou ondas de choque no mundo da arte contemporânea. A exposição apresentou ao mundo 16 artistas, entre os quais Gay Hume, Mat Collishaw e Sarah Lucas, e foi visitada por Nicolas Serota (director da Tate) e Charles Saatchi, importante coleccionador de arte que se tornou, até ao início dos anos 2000, um aliado de Hirst. As visitas de figuras incontornáveis da arte, facto inédito para uma exposição de estudantes, aliadas ao factor choque das peças, foram essenciais para a visibilidade da exposição e para a ascensão dos YBA.
O conteúdo e a forma chocantes das obras fazia-se acompanhar por afirmações polémicas e um estilo de vida hedonista, habitual no mundo da música, mas, à época, estranho no campo das artes visuais. Entre os vários trabalhos de YBA associados a uma estética de choque encontram-se Myra (1995), de Marcus Harvey, um quadro que reproduz a fotografia da infanticida dos anos 60 Myra Hindley, utilizando moldes de uma mão de criança; e Bullet Hole (1988), de Mat Collishaw, ampliação fotográfica de um ferimento de bala. Os jornais sensacionalistas ampliaram a polémica que rodeava os YBA, transformando-os em celebridades: de outsiders, alguns tornam-se figuras familiares na sociedade inglesa. Emily King, historiadora de design, curadora e colaboradora da revista Frieze e da Experimenta Design, conta-nos que "à epoca parecia incrível que um artista pudesse atrair tanta atenção". Lembra com nostalgia este período de grande efervescência que contava, ainda, com figuras como Tracey Emin ou Sam Taylor-Wood.
A institucionalização dos YBA começaria em 1993 com a presença, na Bienal de Veneza, de Collishaw e Hirst; dois anos depois, este receberia o Turner, o maior prémio de arte em Inglaterra. O processo continuaria em 1996 com a exposição Brilliant, no Walker Art Center de Minneapolis, e terminaria em 1997 com Sensation, que apresenta na Royal Academy obras da coleção Saatchi e marca a entrada definitiva dos YBA no sistema britânico de arte contemporânea.
Nos anos 2000, a fama e a fortuna de Hirst aumentam, ao mesmo tempo que crescem as críticas ao seu trabalho. Adrian Searle aponta "a pressão do mercado e das suas galerias (Gagosian e White Cube) como a causa para a perda de relevância". A fórmula de produção em série começa a apresentar sinais de desgaste. A notoriedade de Hirst prende-se cada vez mais com motivos periféricos à produção artística: os preços de venda (50 milhões de libras por For the Love of God); o leilão directo na Sotheby"s em 2008, que contorna as galerias que o representam; ou a sua prolificidade e omnipresença, visível, por exemplo, nos 1500 quadros da série Spot Paintings (1986-2011), exibidos simultaneamente no ano passado nas 11 galerias Gagosian, cadeia internacional que se estende de Londres a Los Angeles, passando por Atenas, Hong Kong, Paris e San Diego.
O esforço criativo parece ter-se progressivamente focado na criação de uma marca de persona pública. É aqui que as dúvidas se adensam. Hirst tem como único objectivo aumentar a conta bancária? Ou é um artista que expande a sua prática para um contexto totalizante, onde a sua vida deve ser lida como performance? Quer produzir um comentário crítico do mercado especulativo da arte, da sociedade ultra-mediatizada do espectáculo, e do poder do artista? Ou é um hábil manipulador? Todas as perguntas têm o mesmo resultado: Hirst pode fazer o que lhe apetece. Arte realmente má, por exemplo, como disse ao The Telegraph.
Que se lixe isso. Eu nunca exibiria na Tate. Isso é para artistas mortos
Screw that, I"d never show at Tate. That"s for dead artists
Em resposta a David Bowie, numa entrevista em 1996, Hirst recusou a possibilidade de mostrar trabalho na Tate, instituição inglesa de referência para a arte contemporânea. Dezasseis anos depois, a situação é outra. É um homem de meia idade com filhos, deixou de beber e consumir drogas há cinco anos, e inaugurou há dias uma exposição na Tate Modern. Mas a resposta dada a Bowie ainda é válida. Tal como o tubarão em formol, o Hirst de hoje é apenas um reflexo do artista em início de carreira: as recentes peças da linha formol já não conseguem reproduzir o efeito da primeira experiência de The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living que, de resto, por ter sido digerida insaciavelmente pelos media também não consegue o efeito das suas primeiras aparições. O tubarão Hirst está morto, viva o tubarão? A ida ao museu vai servir para rezar pela sua alma, ou para atirar pedras ao túmulo de vidro?
Paralelamente à retrospectiva, For the Love of God, a caveira de diamantes, será exibida durante algumas semanas na Turbine Hall, sempre acompanhada de um segurança - forma de fazer ecoar o leilão na Sotheby"s, onde Hirst apareceu rodeado de guarda-costas. O efeito igreja da Turbine Hall é expandido por este cenário obscuro que recria o ambiente de uma cripta ou de um túmulo, e envolve For the Love of God numa aura de relíquia.
A exposição cobre todo o percurso do artista, desde Boxes (1988), que apresentou na Freeze, até às Spot Paintings que cobriram as Gagosian em 2011 e que também aqui são omnipresentes. Na sua aparente diversidade de estruturas e temas, as peças constroem um todo coerente, ao ponto de, por vezes, a exposição parecer ser constituída por uma única peça, que se multiplica em diferentes personificações. As Spot Paintings lembram a organização clínica das vitrinas de comprimidos. Os animais em formol são um estado que precede a caveira. Mas talvez nada de isto interesse. Adrian Searle diz que "já ninguém pensa na obra de Hirst, apenas na polémica".
A exposição inclui peças icónicas como A Thousand Years (1990) ou Away from the Flock (1994), outra das peças em formol (no caso um cordeiro). A Thousand Years (1990) é talvez a mais impressionante e contém um ciclo de vida: larvas eclodem dentro de uma caixa branca, transformam-se em moscas, e alimentam-se do sangue de uma cabeça de vaca decepada. In and Out of Love (1991) analisa, da mesma forma, um ciclo de vida: a primeira sala apresenta telas monocromáticas onde foram coladas borboletas mortas e uma mesa com cinzeiros cheios de beatas, fósforos e pastilhas elásticas; a segunda sala apresenta telas brancas com crisálidas, no interior das quais se desenvolvem borboletas. Os insectos adultos voam pelo espaço e alimentam-se de frutas colocadas numa mesa central, como os cinzeiros da sala anterior. São verdadeiras encenações do Hirst todo-poderoso, capaz de recriar e controlar ciclos de vida.
Beautiful Inside My Head Forever (2007) é uma reconstrução parcial do conjunto de 244 peças que Hirst leiloou na Sotheby"s em 2008 e que personificam o estilo exuberante, mas muito pouco novo, adoptado no seu período mais recente. Pharmacy (2007), por outro lado, é uma das peças mais interessantes. Encena o interior de uma farmácia: gabinetes de medicamentos, balcão de atendimento, frascos de líquidos coloridos de outrora e os característicos néons verdes das farmácias actuais. A liturgia hirstiana atinge nesta obra um ponto alto que tem poucos paralelos no resto da exposição. The Acquired Inability to Escape (1991) é outro dos pontos altos: um gabinete de vidro que exibe uma mesa com um cinzeiro utilizado, um maço de tabaco e um cigarro acompanhado de um isqueiro, sublinhando a presença ausente do protagonista da narrativa sugerida, metáfora áspera de um trabalho e de uma vida alienantes e alienados. É nestes momentos que Hirst tem mais sucesso, quando questiona o contexto artístico e a sociedade do seu tempo, utilizando abordagens de significado fértil e de grande alcance.
Uma característica marcante da exposição, mas negligenciada em muitas descrições das obras, é o cheiro. A Thousand Years é marcante também pelo seu forte odor a putrefacção. In and Out of Love tem um cheiro artificial húmido e doce resultado das frutas e plantas e da alta temperatura da sala. Pharmacy tem um odor asséptico a medicamentos, característico de uma farmácia, e Crematorium (1996), enorme cinzeiro repleto de beatas e maços de tabaco vazios, traz à memória uma sala fechada onde ficaram esquecidos cigarros há muito apagados.
De acordo com o mapa, a exposição é constituída por 14 salas, mas ao lado da sala 14 o visitante depara-se com um outro espaço: uma loja. No interior vendem-se catálogos e outras publicações relacionadas com Hirst e recordações. A quantidade de merchandising é impressionante: skates, pratos, chapéus de chuva, porta-chaves, camisolas, serigrafias originais, todos com a assinatura Hirst (spots, borboletas, caveiras ou comprimidos). Questionada sobre a existência deste espaço comercial dentro da exposição, facto inédito na Tate Modern, cujo edifício inclui duas lojas permanentes, Ann Gallagher, curadora, é rápida a esclarecer que "não faz parte da seção expositiva, não é uma instalação". Acrescenta ainda que quando terminou de organizar a exposição "a loja não existia" e que não tem "nada a ver com esse assunto".
O agent provocateur parece testar, uma vez mais, os limites museológicos e artísticos com esta performance completada pelo público. Como em qualquer lugar de peregrinação, é dada oportunidade aos fiéis de adquirirem uma lembrança, com a novidade de a compra ser feita de forma pura: ainda dentro do templo. A inclusão dos vendilhões no interior da exposição sublinha o poder e os interesses económicos de um museu como a Tate Modern e de um artista como Hirst. Mas as dúvidas permanecem. O que pretende ele com este gesto? Por um lado, a loja incorpora uma dimensão auto-reflexiva da sua obra que continua a linha traçada, por exemplo, com o leilão da Sotheby"s e a caveira de diamantes. Por outro, o questionar da sua posição como artista e do museu como espaço expositivo é demasiado auto-centrado. Para Nayia Yiakoumaki, curadora na Whitechapel, esse é o maior problema da produção de Hirst, o facto de "inverter as regras do mundo da arte de modo puramente auto-referencial, a partir da posição de um artista muito poderoso e rico que tem controlo total da forma como os seus trabalhos são disseminados". "Para que Hirst conseguisse realmente provocar uma incisão no mundo da arte contemporânea", argumenta, "teria de abrir um novo campo de acção que pudesse ser utilizado por outros artistas, e não é o caso".
A exposição é uma tentativa de reintroduzir Hirst no circuito dos grandes museus de arte e no seu discurso, áreas onde, de momento, prima pela ausência, depois do efeito de esgotamento provocado pelas suas estratégias mediáticas e pela repetição de temas/formas. À excepção de uma sala dedicada ao seu trabalho, patente até há pouco na Tate Britain, e da presença de The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living no Metropolitan Museum de Nova Iorque, o seu trabalho não é visto nos grandes museus internacionais. É quase unânime que a primeira fase do trabalho de Hirst, até cerca de meados da década de 90, apresenta peças importantes. Miguel Amado considera que "independentemente das críticas que lhe possam ser feitas, teve a capacidade de traduzir o espírito do tempo, o mal-estar social e existencial de fim de século, visível no uso regular de fármacos, vistos como a pílula milagrosa". É também quase unânime que a sua produção mais recente apresenta um interesse reduzido. Mas talvez tenha direccionado a sua prática para uma dimensão performativa, em que as obras físicas são vestígios da persona que se constitui como obra principal.
O seu lugar na história parece garantido, a forma como será recordado não. A loja continua aberta até 9 de Setembro.