Humanos já o usavam há um milhão de anos

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Na gruta Wonderwerk, na África do Sul, onde foram encontrados vestígios de fogueiras deixados pelo Homo erectus Victor Fraile/REUTERS

Quando é que os nossos antepassados começaram a conseguir controlar e usar o fogo, em particular para cozinhar os seus alimentos? Talvez esse evento essencial à nossa evolução tenha surgido 300 mil anos antes do que se pensava

Um grupo de humanos pré-históricos vive numa gruta. Com 140 metros de comprimento, ela é mais parecida com um túnel, oferecendo sem dúvida um abrigo relativamente seguro contra as intempéries, os predadores e os inimigos. No interior, a uns 30 metros da entrada, avistam-se pequenas fogueiras a arder no chão e distinguem-se, na penumbra, as silhuetas de pessoas a preparar a refeição, grelhando pequenos animais e vegetais, como raízes ou tubérculos.

A cena não parece ter nada de invulgar. A vida quotidiana dos primeiros Homo sapiens e, há uns 400 mil anos, dos Neandertais decorria muito provavelmente assim. Só que, neste caso, os atarefados ateadores de fogueiras não são humanos modernos. Pertencem à espécie Homo erectus, um nosso antepassado mais longínquo e primitivo, que surgiu em África há cerca de dois milhões de anos. A gruta, hoje chamada Wonderwerk, situa- -se na orla do deserto de Kalahari, na actual África do Sul. E o doméstico entardecer ocorreu... há um milhão de anos.

Até aqui, ninguém sabia se o fogo poderia ter sido controlado tão cedo pelos humanos, uma vez que não existiam vestígios claros do seu uso para lá dos que foram encontrados numa gruta em Israel e que têm uns 700 mil anos. Mas hoje, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), uma equipa internacional de cientistas anuncia a descoberta dos primeiros vestígios arqueológicos que apontam claramente para o facto de Homo erectus ter começado a usar o fogo pelo menos 300 mil anos antes disso. Ainda não é possível afirmar que usava o fogo habitualmente, nem que lhe servia para cozinhar os alimentos, mas a nossa cena imaginária tornou-se de repente um pouco mais plausível.

Na gruta de Wonderwerk (que em africânder significa "milagre") já tinham sido descobertos, entre as décadas de 1970 e 1990, por Peter Beaumont, do Museu McGregor em Kimberley (a entidade de que depende a gruta), extensos vestígios de ocupação humana. Mas a partir de 2004, o grupo liderado por Michael Chazan, da Universidade de Toronto, e Liora Kolska Horwitz, da Universidade Hebraica em Jerusalém (co-autores dos resultados hoje publicados), recomeçou a examinar o local, em particular através de análises à escala microscópica das rochas sedimentares da gruta.

É assim que, com Francesco Berna e Paul Goldberg, da Universidade de Boston (autores principais do artigo), a equipa pode agora afirmar, como escreve na PNAS, que descobriu, numa camada de sedimentos com cerca de um milhão de anos, "provas inequívocas - na forma de ossos calcinados e restos de cinzas vegetais - de que o fogo foi utilizado na gruta" naquela altura remota.

Na gruta dos milagres

Os cientistas realizaram três tipos de estudos: uma análise da micromorfologia dos sedimentos; uma análise matemática que permite, a partir da espectrometria infravermelha dos objectos, inferir as temperaturas a que terão sido submetidos; e uma análise da descoloração dos objectos macroscópicos presentes na mesma camada sedimentar. E concluem que os ossos e vários objectos de pedra trabalhados, em particular, foram submetidos a temperaturas de 400 a 700 graus Celsius.

Ao mesmo tempo, num autêntico trabalho de detectives, excluíram a possibilidade de os vestígios terem sido transportados para dentro da gruta pelo vento ou pela água - ou de serem o resultado de uma combustão espontânea. Parece assim indubitável que os humanos que habitavam a gruta já usavam o fogo de forma deliberada e controlada. Por outro lado, as temperaturas atingidas mostram que as fogueiras eram provavelmente feitas com ervas e folhas - e não com lenha -, algo que também é confirmado pelo tipo de cinzas vegetais presentes nos sedimentos.

As implicações dos resultados poderão ser profundas, uma vez que o domínio do fogo constitui "um ponto de viragem na evolução humana", diz Michael Chazan num comunicado da Universidade de Toronto. "O impacto de os humanos terem começado a cozinhar os seus alimentos está bem documentado, mas conseguirem controlar o fogo terá influenciado todas as facetas da sociedade humana. A possibilidade de se reunirem em torno de uma fogueira poderá na realidade ter sido um aspecto essencial daquilo que nos torna humanos."

Os cientistas também salientam, no artigo, que os resultados constituem os indícios mais convincentes de sempre de uma hipótese emitida por Richard Wrangham, da Universidade de Harvard, nos EUA, para explicar a espectacular evolução humana. Há quem pense que foi o facto de os humanos primitivos passarem a comer carne (crua) que marcou a diferença, mas este especialista de antropologia biológica tem outra teoria: a "hipótese da comida cozinhada" (cooking hypothesis). Postula que o motor principal da evolução do cérebro humano foi precisamente o facto de termos começado a cozinhar os alimentos, o que nos permitiu passar menos tempo a digerir a comida - dando-nos uma fonte mais eficiente de energia e libertando tempo para desenvolvermos outras actividades. Ora, isso teria sido impossível sem o controlo do fogo. Wrangham especula ainda - com base em estudos da evolução da massa corporal, do tempo passado a alimentar-se e do tamanho dos molares de primatas humanos e não humanos - que a adopção de uma dieta cozinhada remonta de facto ao... Homo erectus.

"Estes resultados são importantes para a minha hipótese a dois títulos", diz Wrangham ao PÚBLICO. "Primeiro, mostram que os humanos já controlavam de facto o fogo há um milhão de anos. Segundo, que existem métodos para fazer análises rigorosas de outros locais. Claro que ainda há muito por fazer. Em particular, a equipa de Francesco Berna não mostrou que o fogo era utilizado para cozinhar, nem que era utilizado o ano todo - duas coisas que a hipótese da comida cozinhada prevê."

A hipótese de Wrangham ainda não gerou consenso entre os arqueólogos no que respeita à data da adopção da dieta cozinhada pelos humanos. "Ofer Bar-Yosef, de Harvard, e Will Roebroeks [da Universidade de Leiden, Holanda], discordam", explica-nos Wrangham. "Mas não pelo facto de terem conseguido pôr em causa o meu argumento de que é preciso supor que Homo erectus cozinhava os alimentos para explicar o pequeno tamanho dos seus dentes, a [forma da] sua caixa torácica ou a sua estreita pélvis. Questionam a minha hipótese porque acham que, se fosse verdade que os humanos conseguiram controlar o fogo tão cedo, já teríamos encontrado indícios mais convincentes." A partir de agora, esses indícios passaram a existir.

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