30 anos após a guerra entre o Reino Unido e a Argentina, a retórica substituiu os canhões

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Guerra de 1982 provocou mais de 900 mortos, precipitou a queda da ditadura argentina e deu a Thatcher as chaves para mais oito anos de poder. No 30.º aniversário, tensão diplomática está ao rubro, com os recursos petrolíferos em pano de fundo

Nas águas geladas do Atlântico Sul não se avistam manobras militares, nem se fazem planos para uma ofensiva. Mas a tranquilidade é apenas aparente neste recanto do mundo, onde há 30 anos começou o último grande conflito entre duas nações ocidentais - a guerra entre Argentina e Reino Unido pelo controlo das ilhas Malvinas (Falklands, para os britânicos). Agora, em vez de disparos de artilharia, trocam-se acusações, numa disputa territorial que, apesar do discurso patriótico inflamado, tem cada vez mais a ver com os anunciados recursos do arquipélago.

Quando hoje a Presidente Cristina Kirchner encabeçar as homenagens aos 649 soldados argentinos mortos na guerra e os britânicos recordarem, com indisfarçável orgulho, os feitos da task force enviada por Margaret Thatcher para repelir a invasão argentina, voltarão a ouvir-se velhos argumentos. Buenos Aires reclamará o seu direito inalienável às ilhas administradas desde 1833 pela coroa britânica, insistindo em que Londres aceite negociar o fim de um dos derradeiros "legados do colonialismo"; o Governo de David Cameron reafirmará que nada há a discutir enquanto os três mil habitantes do arquipélago, situado a mais de 12 mil quilómetros de distância, quiserem manter-se britânicos.

Mas se um novo conflito é hoje impensável, raramente nos últimos 30 anos a tensão diplomática esteve tão inflamada. E foi em Buenos Aires - onde as feridas da derrota que acelerou a queda da ditadura ainda não sararam - que a aproximação do aniversário mais se fez notar. Houve bandeiras britânicas queimadas, insultos aos "piratas" e palavras muito duras dirigidas ao outro lado do Atlântico.

Ainda em Fevereiro, Kirchner decidiu apresentar uma queixa formal nas Nações Unidas, acusando o Governo britânico de "estar uma vez mais a militarizar o Atlântico Sul". Dias antes, anunciava-se o envio para as Malvinas do HMS Dauntless, o mais moderno contratorpedeiro da Marinha britânica, na mesma altura em que o príncipe William chegava às ilhas para uma missão de treino como piloto de helicóptero - um papel idêntico ao desempenhado pelo seu tio, André, na guerra de 1982.

Londres desvalorizou a denúncia, falando em movimentações de rotina. Mas, semanas depois, irritou-se com a notícia de que o Governo argentino tinha informado 20 grandes empresas de que deveriam substituir a importações de produtos britânicos por outros oriundos de "nações que respeitem a sua integridade territorial". Apesar do impacto reduzido da medida - em 2011, as exportações britânicas para a Argentina não chegaram aos 500 milhões de euros -, Cameron pediu a intervenção da União Europeia e avisou Buenos Aires que se o boicote avançasse (até hoje não foi formalizado) iria repensar os investimentos que tem no país.

Cerco às ilhas

"O objectivo formal da estratégia do Governo é forçar o Reino Unido a negociar a soberania das ilhas", explica o historiador e analista argentino Rosendo Fraga, num comentário enviado por email ao PÚBLICO. Para isso, diz, Kirchner pôs em marcha duas tácticas paralelas: por um lado, tenta "globalizar o tema das Malvinas", levando as suas reivindicações aos fóruns internacionais; por outro, aumenta, com o apoio dos países vizinhos, a pressão sobre o arquipélago.

No final de 2011, os países sul-americanos proibiram a entrada nos seus portos dos barcos com a bandeira das Falklands e, pouco depois, Buenos Aires aplicou pela primeira vez um decreto que impede os navios que se dirigem para as ilhas de atravessarem as suas águas. Desde então, os produtos frescos trazidos do continente escasseiam ou pagam-se a preços astronómicos, o que fez renascer os sentimentos antiargentinos no arquipélago.

"Há muita gente que não andava para aí a gritar sobre a soberania e que agora está muito irritada", disse à Reuters Tim Miller, dono de uma loja em Port Stanley, capital das Malvinas e onde se concentra quase toda a sua população. Por toda a cidade, despontaram bandeiras britânicas e os visitantes argentinos, a maioria veteranos da guerra, são aconselhados a evitarem provocações aos habitantes. "Quando os argentinos falam das Malvinas, parece que falam de um território desabitado", queixou-se ao enviado do El País John Fowler, director adjunto do único jornal local, referindo-se à recusa de Buenos Aires em reconhecer aos habitantes o direito à autodeterminação - o argumento usado por Londres para rejeitar discutir a transferência de soberania daquele território ultramarino.

Mas ainda que o aniversário traga à memória recordações amargas, vive-se nas Malvinas um clima de optimismo, porque o futuro se apresenta risonho. As licenças de pesca vendidas aos barcos estrangeiros inverteram o declínio económico anterior à guerra e garantiram a auto-suficiência do arquipélago - apenas os custos de defesa estão a cargo de Londres, uma factura que muitos britânicos consideram, ainda assim, insustentável a longo prazo.

O ouro negro

As esperanças de prosperidade estão, no entanto, concentradas no petróleo que se acredita existir em redor das ilhas. As prospecções começaram nos anos de 1970 e duas décadas depois venderam-se as primeiras licenças, mas só a recente alta de preços tornou atractiva a exploração. Em 2010, a petrolífera britânica Rockhopper anunciou a descoberta de um poço com um potencial de produção de 500 milhões de barris, prometendo o início das explorações para 2016. "Com o petróleo, todo o modo de vida das Falklands vai mudar", disse ao Guardian Stephen Luxton, director dos recursos minerais do arquipélago.

Só que o eldorado dos ilhéus é, para a Argentina, a prova de que os britânicos fincaram as garras na região para se apropriarem de recursos alheios. "O petróleo e o gás do Atlântico Sul são propriedade do povo argentino", disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Hector Timerman, ao anunciar acções judiciais contra as empresas envolvidas na exploração. Londres denunciou a "intimidação legal" e lembrou que foi a Argentina que, em 2007, suspendeu os acordos que fixavam os limites territoriais para a exploração petrolífera, assinados pelo ex-Presidente Carlos Menem.

"Com a chegada da administração Kirchner [primeiro Nestor, em 2003, e depois a mulher, Cristina] assistiu-se a um endurecimento da política" para as Malvinas, disse ao PÚBLICO Bruno Tondini, do Centro Argentino de Estudos Internacionais. "Hoje existem aproximações para reactivar o diálogo, mas tendo claramente em vista a questão da soberania", o que o Reino Unido rejeita.

Há, no entanto, quem veja motivos menos patrióticos na actuação de Kirchner. "Faz tudo parte de um deliberado projecto oficial para usar as Malvinas como ferramenta política interna", disse ao PÚBLICO o jornalista Pepe Eliaschev, subscritor do manifesto Una Visión Alternativa em que 17 intelectuais criticam a "agitação nacionalista" e defendem que o futuro das ilhas não pode ignorar os desejos dos seus habitantes. "A Favor dos Piratas", escreveu no dia seguinte o jornal pró-governamental Crónica.

Eliaschev não duvida de que a vasta maioria dos argentinos apoie as reivindicações sobre as Malvinas e que a "tragédia imensa" da guerra continue por sarar, mas diz que "ao pôr a questão no topo da agenda quando há problemas gravíssimos por resolver, como a inflação ou a derrapagem da economia, há fortes razões para pensar que grande parte desta agitação política e diplomática tem muito de especulação."

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