Só faltam dois quilómetros para chegar até Eça de Queirós
O destino é a Quinta da Vila Nova e a partida é a estação de Aregos. Poucos reconhecerão estes nomes: "Tormes" é toponímia ficcional a contaminar o real desde A Cidade e as Serras. Percorremos o Caminho de Jacinto que é, afinal, o caminho de Eça. Andreia Marques Pereira (texto) Nelson Garrido (fotos)
Os comboios já não param aqui regularmente. Evirem de Barca d"Alva é apenas uma recordação, desde que em 1990 foi terminado o serviço ferroviário na estação fronteiriça da Linha do Douro. Os comboios que aqui param são muito diferentes daquele que um dia trouxe Jacinto de Paris - e quem diz Jacinto diz Eça de Queirós: por exemplo, este que parte sábado de manhã da estação de Campanhã chega carregado de grafitti. Mas Aregos continua a ver desembarcar passageiros, mais que não seja em peregrinação literária - e, neste caso, esse espírito junta-se ao de caminheiro, já que o grupo de 61 pessoas foi reunido pelo Grupo de Montanha do Académico Futebol Clube.
Imaginamos a pacatez da velha estação - ainda "clara e simples, à beira do rio", ainda com "um jardinzinho breve" -, momentaneamente perturbada pela chegada do comboio - nós chegamos de carro e o grupo de dezenas com mochilas às costas e alguns bastões nas mãos já meteu pés ao caminho, sob um sol descarado. Ao Caminho de Jacinto, assim se chama o percurso que nos preparamos para fazer na peugada dos relatos de A Cidade e as Serras, obra de Eça de Queirós inspirada em cenários do seu próprio percurso biográfico. E a ficção queirosiana contaminou de tal maneira o real nestas paragens que Aregos até vestiu a toponímia livresca - Aregos ou Tormes surgem indissociáveis; e à Quinta da Vila Nova, uma das casas ancestrais da família da mulher de Eça, agora Fundação Eça de Queiroz e nosso destino primeiro, poucos chamarão outra coisa que não Tormes, a casa ancestral dos "Jacintos". Para os viajantes mais incautos, à saída da estação quatro painéis transportam-nos para A Cidade e as Serras: com partida do número 202 dos Campos Elíseos e chegada à mesa do famoso arroz de favas; pelo meio sobe-se a serra em égua e burro e vive-se uma "odisseia" interior.
"É já ali", "estamos quase"
Ainda estamos nas margens dos carris quando enfrentamos uma secessão no grupo. Uns sobem pela estrada asfaltada; outros pelo caminho de terra e pedras - "este é o verdadeiro caminho", dizem. Não dura muito, porque ambos se encontram um pouco mais à frente, no asfalto. Entretanto caminhamos com a linha, um canavial e o rio, apressado mas sem sobressaltos, ao lado.
O caminho é sempre a subir e o rio passará rapidamente a ser cenário esquivo, mostrando-se e escondendo-se ao sabor das curvas da serra. Os passos no asfalto são sol de pouca dura, em breve nova placa nos atira para fora, para um empedrado de paralelos que sobe para se embrenhar em casas e segue, a tempos, entre muros de granito rugosos e mugosos.
Em poucos minutos já estamos em plena natureza e o cenário é tão bucólico quanto seria de esperar, nestas paragens remotas, escavadas em degraus que compõem vales que se vão encaixando numa tapeçaria que por estes dias se mostra mais seca do que verdejante, com intromissões amarelas das mimosas em explosão primaveril. Ainda assim, ouve-se o burburinho nervoso de águas que escorrem sem sempre se verem, juntamente com o chilreio de pássaros (e na nossa ignorância ornitológica imaginamos que os melros com que Jacinto se encantou façam parte do coro).
António Freitas e Joaquim Mendes são os principais dinamizadores do Grupo de Montanha do Académico Futebol Clube e se hoje estamos aqui entre dezenas de outros caminhantes é pelo seu entusiasmo. Poderíamos, aliás, ser mais, não fosse a logística do sítio a visitar, a Fundação Eça de Queiroz, desaconselhar mais inscrições. Mas a procura foi elevada, talvez por ser uma caminhada temática, reflecte António Freitas, enquanto nos embrenhamos na paisagem. Foi de organização fácil, o percurso já está desenhado (e, como vamos vendo, bem assinalado). "Já aconteceu termos de ir de tesoura para limpar caminhos", conta. Caminhadas é o que este grupo mais organiza, até por falta de elementos jovens. É um círculo vicioso: "Os mais jovens querem mais aventura, mais escalada", afirma, "e isso não é para nós".
Por vários momentos, também esta caminhada não nos parece para nós. Os dois quilómetros até Tormes fazem-se longuíssimos (e no final parece consensual que a distância é, afinal, maior). Ao nosso lado, Artur Pereira "arrasta 120 quilos encosta acima", brinca. Depois do Kilimanjaro, por exemplo, os seus quilos podem bem com o "Caminho de Jacinto", embora, avalia, este seja um percurso de nível médio apenas porque é curto.
As máquinas fotográficas disparam para a Igreja de Santa Cruz do Douro, onde Eça de Queirós está sepultado desde 1989; e a Casa do Lodeiro - uma das casas senhoriais assinalada no roteiro da Fundação Eça de Queiroz - intromete-se em paisagem povoada por outras mais modestas, outras arruinadas. É um local "literário" também - e trágico: aqui se viveu a história de Fanny Owen, a que Camilo Castelo Branco fez referência em várias obras e que Agustina Bessa-Luís contou em Fanny Owen (que serviu de base ao argumento de Francisca, de Manoel de Oliveira).
Há quem assegure que se subirmos de costas, qual caranguejo, diminuem o esforço e as dores musculares. Não experimentamos, mas chegamos a ponderar trocar a caminhada pela escalada, tal a inclinação que por vezes enfrentamos. E muitas vezes pensamos que não aguentaremos. "É já ali", "estamos quase", "isto não custa nada": são muitas as variações que escutamos do que é a "mentira branca", chamemos-lhe assim, preferida dos "caminheiros", dir-nos-á António Almeida Santos. O certo é que, assegura-nos, nestas andanças do pedestrianismo "ninguém fica para trás". E haja fôlego para desfrutar da paisagem e da confraternização que fazem a filosofia do pedestrianismo, continua António.
Álbum de memórias
Não temos a ingenuidade de Jacinto, quando pergunta a Zé Fernandes, "Logo se vê, da estação, Tormes?", contudo, a nossa noção do "muito no alto, numa prega da serra, entre arvoredo", que foi a resposta, está muito desfasada. Quando avistamos a casa parece-nos um oásis, granítico.
É na pequena escadaria da igrejinha da casa, defronte para o portal encimado por cruz de pedra, que nos sentamos pela primeira vez em duas horas de ascensão. Para lá deste, o enorme pátio lajeado, rodeado de edifícios cobertos de hera; o principal está virado para nós em enorme arco, sob o qual Eça viu "duas escadarias paralelas que são de um mau gosto incomparável". Não descortinamos senão uma ruralidade ancestral graciosa nestas fachadas, que se prolonga num jardinzinho formal, seco, na eira abaixo e no enorme terraço sobre a paisagem: nesga de rio, o vale onde subimos mas onde agora não vislumbramos caminho possível, montes que entram pelo horizonte. Pelo nosso nariz entra a fartura das laranjeiras e tangerineiras, com as quais, confessamos, matamos a sede.
Sandra é a guia que nos ensina os passos de Eça de Queirós na casa que é agora também a fundação que leva o seu nome. Cruzamos o real e o literário mal passamos a porta. Já não há vestígios do celeiro que ocupava todas as divisões da casa, quando Eça aqui veio pela primeira vez; mas mantêm-se as três únicas peças de mobiliário que ele encontrou: o arcaz de sacristia, a "cadeira de Jacinto" de espaldar alto e couro gasto que Eça descreveu tal e qual no livro, e a "mesa do arroz de favas".
No resto da casa encontram-se peças e objectos que vieram da casa parisiense do escritor, já depois da sua morte, em 1900, reunidos pela sua filha mais velha, Maria, o primeiro membro da família a viver aqui. Podemos ver, por exemplo, a mesa de trabalho de Eça - alta, porque ele escrevia em pé -, com o tinteiro dourado, a vassourinha, o pisa-papéis que é um pássaro (e que veremos replicado na loja da fundação, como castão de bengalas); várias edições e traduções das obras de Eça; fotografias de família; a cabaia em tons de verde, azul e amarelo, presente do conde de Aroso e para a qual, dizia Eça, "faltava pança para encher as suas pregas"; o que resta da sua biblioteca pessoal; quadros (incluindo um do rei D. Carlos).
Na sala de estar, é a viúva do neto do escritor Maria da Graça Salema de Castro, presidente vitalícia da fundação e residente na casa, que nos recebe ("E vão descer [o "Caminho de Jacinto]? Também o fiz muitas vezes e até a minha sogra, não havia outro meio") entre mais mobiliário parisiense ( incluindo uma masseira e uma sequeira bretãs, presentes de Ramalho Ortigão) e objectos pessoais, como o seu monóculo, alianças, relógios, alfinetes e até a sua Legião de Honra - que convivem numa sala moderna, com televisão e DVD.
O "Caminho de Jacinto" pode terminar aqui, mas o nosso roteiro queirosiano segue. Na cozinha. Não na de Tormes, que visitamos também, mas num restaurante típico local onde o menu é um émulo da primeira refeição de Eça nestas paragens: canja de galinha, frango alourado e arroz de favas, e leite-creme. Mas, até aí, temos mais uma hora de caminho. A subir a serra, com as palavras de Jacinto na boca: "Ah! Que beleza!".
CONTACTOS
Académico Futebol Clube
(Grupo de Montanha)
Rua Costa Cabral, 186 - Porto
Tel.: 225 020 129; 225 020 384
www.academicofc.pt
Até ao final do ano, tem actividades todos os meses, excepto em Agosto. Os pontos altos são deslocações a Espanha - no final de Abril a Santiago de Compostela-Finisterra e em Junho aos Pirenéus. Fundação Eça de QueirozQuinta de Tormes, Baião
4640-424 Santa Cruz do Douro
Tel.: 254 882 120
www.feq.ptO caminhoO Caminho de Jacinto é um percurso livre e não necessita de acompanhamento de guia. Os 2,68 quilómetros estão bem sinalizados e é possível fazer o download do mapa no site da Fundação Eça de Queiroz. A partida faz-se na estação de Aregos e a chegada é a Tormes - a visita aqui custa 3,5 euros.
Onde comerCasa do Lavrador
Lugar do Martírio
4640-420 Sta. Cruz do Douro
Baião - Tel.: 254 885 143
www.casadolavrador.org